sexta-feira, 16 de maio de 2014

O maior legado da Copa

Quando a presidenta pede pelo espírito hospitaleiro do brasileiro para recebermos bem os estrangeiros que virão para a Copa, ela dá mostras como os políticos tradicionais em geral não estão enxergando bem nesta mudança que acontece em nossas identidades. Desde junho do ano passado, estamos passando pelo processo - doloroso e tortuoso - do nascimento de novas formas de nos identificar como pertencentes a um mesmo grupo humano que atende pelo nome de brasileiros. Mas parece que muita gente não quer ou não consegue enxergar isso.

A gestação dessas novas identidades começou em um tempo indeterminado no passado. Uns dirão 12 anos; outros, 20 anos. Haverá aqueles que lembrarão seu 30º aniversário ano que vem. Não importa a data exata, assim como o nascimento, a gestação é um movimento contínuo. O próprio nascimento não tem data para acabar: 2014? 2015? 2016? 2018? 2022? Um dia vai acabar?

O que me parece inegável - e o que dá para sentir na pele - é que estamos trocando de roupagem. Não quer dizer que não vamos aproveitar adereços antigos, não é isso. Não deixaremos necessariamente de ser o país do futebol, por exemplo. Mas o movimento contra a Copa do Mundo deveria ser levado e muito em conta nessa nossa autoavaliação - inclusive, deveríamos relembrar sempre a nossa fracassada organização do esporte no Brasil.

Em uma palestra na Semana de Alunos da Filosofia da PUC-Rio, Bernardo Boelsums fez um paralelo bem criativo entre o nascimento do que seria esse país do futebol e a Copa de 1950. O pano de fundo era Heidegger, e a sua proposta de que, para se encontrar o ser de qualquer ente, ou seja, ter contato com a nossa existência máxima, mas apenas por um instante, em um quase lapso, termos que nos esvaziar por completo. Ou, numa expressão muito repetida de Heidegger "olhar o abismo".

Para Bernardo, a enorme euforia, o clima de já-ganhou, o oba-oba - quase justificáveis - que antecederam a derrota para o Uruguai no famoso episódio de Maracanã fizeram a nossa queda ser ainda mais esmagadora. Quanto maior a autoconfiança, maior o barulho ao estabacar-se. Ou, para citar uma frase original do futebol: só acaba quando termina.

O vazio que se seguiu, o silêncio que se ouviu após o gol de Ghiggia teria criado as condições para o país ser três vezes campeão em quase sequência [1958-1962-1970], com uma interrupção exatamente no momento em que o país novamente se achou acima do bem e do mal, em 1966. Clima, aliás, parecido com o que tivemos em 2006, com o tal quadrado mágico e a farra na Alemanha, por exemplo. O resultado de pouco trabalho e muita fama é sempre, mais ou menos, o mesmo.

Com essa Copa de 2014 e a ausência de empolgação genuína nas ruas - parece que só os meios de comunicação e os publicitários estão ligados na competição -, fica a suspeita de que pode até haver Copa, mas dá para imaginar que o Brasil, o país, que sairá desse corredor estreito será diferente daquele que entrará. Com ou sem o hexa.

Esses seguidos eventos de grandes proporções que acontecem no Brasil, além de um processo longo, mas ainda no início, de amadurecimento da própria nação, estão nos obrigando a refletir sobre o que é o país, o que é pertencer a essa nação, o que queremos e o que podemos fazer para alcançar o que queremos. Nas palavras de Heidegger, estamos pensando o que é o ser do Brasil - o que não fazíamos havia muito tempo. Esse é certamente o maior legado da Copa.

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