segunda-feira, 5 de maio de 2014

'O vazio' - 'Desironia'

Qual é a vantagem de se escrever mal? Poder escrever o que quiser, sem se importar com os eventuais e exigentes leitores. Aproveito essa minha sorte para recomeçar a contar uma ficção, que foi iniciada há anos, porque eu preciso terminá-la. Esse trecho abaixo é o capítulo chamado "O vazio". Para ler outros trechos, clique aqui.

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Sinto um vazio imenso dentro de mim. Um vazio que não tem culpa, nome, rosto ou sensação. Apenas o nada, que se traduz numa angústia sem razão ou num tédio imenso. Não é bom nem ruim, apenas não é. É como se eu tocasse o que não existe, como se isso fosse possível. Corro para colocar qualquer coisa nesse vácuo, que puxa tudo à volta, como uma força de sucção, com uma pressão negativa. Coloco algo, mas logo esse algo é sugado e some e o vazio reaparece. Como se o buraco por onde sai todas as coisas fosse maior que qualquer coisa que eu colocasse ali. Há uma fome que não pode ser saciada, há uma voracidade que eu não sei controlar.

O tempo se transforma em um grão de areia que vai descendo vagarosamente pela ampulheta, mas que logo me afoga, e eu percebo que é mais um dia, é menos um dia. Eu fico apreensivo, e tento lutar contra isso – juro que tento – mas o buraco é maior que o meu corpo, e eu mesmo sou sugado e logo não consigo respirar e corro para tentar voltar à tona. Faço novamente o caminho, de colocar algo nessa sangria, tentando estancar a hemorragia, amarro forte, mas me vejo esvaindo, esvaziando, sumindo, desaparecer.

Não me cobro, não mais. Não participo da vida, da vida cotidiana, do ganhar dinheiro, do fazer as coisas normalmente. Vivo da renda que meu pai me deixou, um apartamento, que alugado paga as minhas parcas contas. Sou barato, sou quase de graça. Vejo o sol lá fora, acho bonito, mas não quero participar disso. Não tenho vontade. Não tenho vontade de nada.

A única forma em que me perco do tempo, em que o tempo sai de mim, em que ele não se mostra tão presente, tão real, volta para um lado detrás dos meus olhos, é esquecido numa prateleira que eu não sei bem qual é, é quando escrevo. Por mais falso que possa parecer. Eu escrevo e o tempo se transforma em elástico, perde a noção do seu tiquetaquear, do seu ponteiro de cada segundo que gira em torno do centro.

Me sinto ainda muito ferido, um animal com medo que quer se manter dentro da própria caverna na expectativa que o corpo se regenere, se isso for possível – desconfio que não é. Quando não estou na queda-livre da angústia, a sensação não é a do fim do mundo. Não é bom, mas o ruim que me aparece é mais parecido com uma refeição sem gosto, não de comida estragada. Eu estou com fome e a como e me sinto alimentado e continuo esperando, esperando o tempo passar, e passa tempo tão devagar, que eu vejo a poeira se escondendo pelos cantos e eu não tenho vontade de varrer, quero apenas esperar que vá. Depois de tanto tempo, com a ferida rasgada, com tanta hemorragia, já não sei se é possível.

Às vezes consigo substituir a angústia por um similar de pior qualidade: a ansiedade. A diferença é que a angústia é sem motivo, é isolada, acontece comigo sem qualquer razão de ser. A ansiedade sempre tem uma causa externa, algo ou alguém que me torna inseguro, que faz me sentir andando no Saara de areia movediça. Há dias em que eu prefiro me sentir ansioso que angustiado, já que ansioso, eu me engano, eu posso fazer algo. Eu sei por onde lutar, o que caminhar, que tipo de dança pedir. Não adianta. Não muda em nada o resultado. Parece que tudo o que eu faço é inútil, sem graça, sem gosto.

Só me resta fazer o que eu posso: viver. Com a maior dignidade que eu encontrar. É quase nenhuma, mas é o que eu tenho agora. Sou um bicho que não quer aparecer, que só espera  o que o porvir me reserva, sem qualquer esperança, nem expectativa. Com receio de outros ataques, com receio dos próprios pensamentos, das próprias lembranças. Que queria não sentir o que verdadeiramente sente. 

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