segunda-feira, 9 de junho de 2014

Termos em disputa

Que a linguagem foi o grande tema da filosofia no século XX, isso, quem já ouviu falar de Wittgenstein, Heidegger, ou do próprio Benjamin, não há como negar. Acredito que seja fruto ainda da chamada "morte de Deus", anunciada com estardalhaço por Nietzsche, ou seja, do fim dos parâmetros superiores que controlavam, comandavam o que era certo ou errado, bom ou mau, verdade ou não-verdade. A partir de então, cada palavra teve que se virar sozinha, a partir da interpretação dos interlocutores que a estão usando.

Não é incomum que, antes de falar sobre qualquer assunto, o pensador passe um tempo justificando a utilização do termo que virá a seguir. É o caso, por exemplo, da palavra "autoridade", no famoso texto "O que é autoridade", em Entre o passado e o futuro, de Hannah Arendt. Igualmente comum que se procure noções que fogem do senso comum [e aí já começamos: "senso comum" no sentido Arendtiano, de um terreno/momento em que as pessoas dividem a mesma opinião] para expressões consagradas. É o caso, igualmente conhecido, de "verdade", na filosofia de Heidegger.

A história é conhecida e criticada. Heidegger teria analisado Platão, mas não somente ele, para demonstrar o momento em que a noção de verdade muda. Num primeiro momento, é apresentado como a retitude de um conceito em relação a uma ideia. Em outros termos: quando um termo corresponderia a uma coisa (ente) - a forma de interpretação usual, mas não única, da atualidade. Quando pensamos em "casa", por exemplo, muitas informações nos inundam, mas há um senso comum sobre o que seria "casa". Se disputássemos cada conceito, toda frase viria com um aposto. A verdade, num segundo momento da filosofia de Platão, nos revela Heidegger, seria descrita com a famosa palavra "alétheia", que, grosso modo, quer dizer "desvelamento".

Seguindo essa interpretação, para Heidegger, só seria possível encontrar o que é verdade, em poucos momentos, quando ela [a verdade] saísse do velamento, do esconderijo, e aparecesse. Heidegger é um pensador que, como sabe quem conhece sua principal obra, quer falar sobre o "ser", ou seja, o que nós, eu, você, todo mundo, seríamos sem o auxílio das carapuças que usamos diariamente. Sem ser jornalista, irmão, amigo, ex-marido, estudante, sem esses penduricalhos mundanos, ou, por outro lado, com a soma de todos eles, o que nós somos, o que é o nosso ser.

O filósofo alemão lembra que o ser tende a se esconder e só se apresentaria em determinados momentos, como em um flash. É o momento da verdade, ou melhor, a verdade em si. Não seríamos capazes de sermos verdadeiros em todos os momentos, mas há situações que somos. É fácil de entender com um exemplo bobo.

Sabe quando escutamos uma música [ou vemos um filme, ou olhamos um quadro etc.] que nos toca profundamente? Esse seria o momento em que teríamos contato com o ser. Não é comum, não é corriqueiro. Mas acontece. E, para comprovar como a linguagem é o tema dessa conversa aqui, nessa situação, quando vemos [ouvimos, observamos...] a verdade, não a conseguimos colocá-la em palavras.

Recorremos aos tais penduricalhos - o que Heidegger chama de "entes" - para tentar transmitir essa emoção, essa abertura, mas nunca passamos a verdadeira relação com o ser,com a exceção apenas de você conseguir provocar o mesmo "desvelamento" naquele que lê [ouve, vê...]. Falamos sobre a história da música, da banda, sobre a trajetória dos músicos, sobre suas influências, sobre os instrumentos, recursos utilizados, sobre as novidades supostamente apresentadas... mas isso não é o ser, isso são só entes que encobrem o ser. A verdade foi o que mexeu conosco e não dá para ser apreendida.

Recentemente, percebi como os termos em disputa causam problemas [graves ou pequenos, não importa] no cotidiano, exatamente pela falta de um senso comum. A polêmica envolvendo a hashtag #nãovaitercopa é um exemplo disso. Não acredito que os criadores desse slogan pensaram em sã consciência que conseguiriam expulsar a Copa do Mundo do Brasil. Bastaria pensar em Maquiavel e lembrar que o governo tem a força militar e a usará para impedir qualquer tipo de manifestação mais exaltada.

Mesmo que os criadores do slogan, ou seus primeiros bradadores, tivessem acreditado nessa utopia, de que a Fifa retiraria do Brasil a organização da competição, a poucos meses da realização do evento, não acredito [outra vez] que tenham ficado exatamente decepcionados com os resultados da massificação desse grito de guerra. Porque a expressão era isso tudo aí que eu escrevi: uma hashtag, um slogan, um grito de guerra. Em todos os casos, ela carrega mais um desejo que uma profecia. E o desejo não precisa ser completamente realizado, porque o desejo é móvel, nunca estanque, e tende a ser nunca realizado mesmo, por completo.

De certa forma, é difícil de entender mesmo: vai ter Copa e não vai ter Copa. É claro que Brasil e Croácia vão entrar em campo num Itaquerão não concluído na próxima quinta-feira para dar o pontapé inicial da competição. Mas, de certa forma, ao tornar a expressão "não vai ter Copa" comum, os manifestantes fizeram algo ainda mais difícil que cancelar a competição: fizeram uma nação inteira acostumada a viver a vida no fluxo a interromper o processo e pensar sobre o assunto.

O resultado disso é a enxurrada de justificativas para dizer o óbvio: que vamos todos [ou a grande maioria] torcer pela seleção. Um jogo de alto nível bem jogado é uma das possibilidades, arriscaria, de nós encontrarmos a verdade desvelada, para citar o Heidegger aí de cima, e isso é mais complicado que terminar as obras do aeroporto Galeão. Mas ninguém, com a exceção do governo e de seus partidários, apoia a maneira como essa Copa foi realizada. Ou seja, com essa confusão toda, com esse debate exacerbado, reforçamos uma distinção que está caindo bastante em desuso: privado x público. Vai ter Copa, privadamente, não vai ter Copa, publicamente.

ps. Qualquer crítica aqui ao governo não é um apoio ao lado direito-negro da força, ao contrário: a tentativa é forçar que atitudes mais à esquerda sejam tomadas. Porque pensar que o PT seja de esquerda é esquecer que os bancos brasileiros tiveram os maiores lucros da História nos últimos 12 anos.

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