terça-feira, 19 de agosto de 2014

Tristeza que tem fim com um samba

Quando eu fiz a minha pós-graduação em Arte e filosofia, minha monografia versou sobre a forma como Machado de Assis teria psicografado o caráter do brasileiro - esse ser inefável - ao comentar como iria escrever sua mais famosa obra: "com a pena da galhofa e a tinta da melancolia". Ou seja, o "exterior", a pena, desse sujeito bem humorado, feliz e contente, seria apenas um disfarce para o verdadeiro interior, que esconderia uma tristeza inconteste.

Não sei se hoje eu ainda aceitaria repetir essa definição, a começar por essa divisão tão metafisicamente clara [ou seria claramente metafísica?], ou mesmo por pensar esse binômio não daria mais conta [se é que um dia deu] do que seria esse sujeito brasileiro; ou, ainda, por duvidar de qualquer possibilidade de definição totalizante.

De qualquer forma, a relação deste provável lado sombrio da personalidade do brasileiro sempre me chamou bastante a atenção, porque, de certa forma, comprovaria a tese do palhaço que esconde a tristeza interna fazendo piada. Tese esta muito bem representada, aliás e infelizmente, pelo suicídio semana passada do Robin Williams.

Por mais que eu suspeite de que Machado tenha feito um gol nesse seu chute, me espanto quando encontro representantes nas artes de brasileiros que mostram esse caráter mais obscuro, não abertamente resplandecente, como cada vez mais é a regra. Acontece todas as vezes que penso no Goeldi, por exemplo. De toda forma, o samba, mais amplamente a música popular feita no Brasil desde a bossa nova até o fim dos anos 1970, é, provavelmente, a mais representativa dessa mistura entre os dois polos.

Talvez o marco inaugural desse período, a criação de "Orfeu negro", quando Vinicius e Tom trabalham pela primeira vez juntos, já comprove isso. Como se sabe, a música mais famosa da peça, depois filme, chama-se "Felicidade", mas versa sobre a tristeza, aquela que não tem fim, enquanto o seu antagônico teria, sim.

Recentemente eu tive um estalo quando vi [ou ouvi] Caetano Veloso dialogando com essa tradição. O baiano de Santo Amaro nunca escondeu que a sua maior influência seria João Gilberto, o deus espírito santo da santíssima trindade bossa-novística, e seu último disco comprova como até hoje ele acha a bossa nova foda. Nessa música, mesmo, ele admite como João Gilberto teria dado razão para que não nos sentíssemos apenas o fruto de três raças tristes, mas o resultado de uma mistura única, que, como toda miscigenação, é forte exatamente por ter elementos diversos.

Vinte anos antes, pelo menos, Caetano já tentava dar uma resposta-continuação para essa questão levantada por Machado e incrementado por Vinicius e a bossa nova: a tristeza, a melancolia está presente em nossa psiquê coletiva? Seria essa a alma que estaria dentro do corpo do brasileiro arquetípico? Junto com Gil, Caetano, em uma dessas músicas que já nascem clássicas, admite que a "tristeza é senhora / desde que o samba é samba". Um dos elementos parece ser essa mesmo, portanto.

"Desde que o samba é samba", apesar de ter uma letra bem curtinha, parece se inserir completamente na história da música brasileira. No verso seguinte, fala sobre a questão do racismo, do preconceito de cor, que é parte mais que integrante da tradição do samba, talvez seja a sua essência [no sentido de origem]: "A lágrima clara sobre a pele escura". Uma das interpretações lembra a imagem do homem e da mulher negros, descendentes de escravos, da maior violência que o Brasil e, antes, Portugal, produziu nessas violentas terras, que é o ícone do samba, do sambista, chorando. "A noite, a chuva que cai lá fora", refletindo a mesma imagem, de um continente negro, [galhofento? feliz? sambista?] que está triste, chora.

Os versos seguintes reforçam o clima melancólico, que já tinha sido lembrado pelas frases iniciais: "Solidão apavora / Tudo demorando em ser tão ruim". Mas o seguinte já começa a mudança: "Mas alguma coisa acontece / No quando agora em mim". A primeira parte seria uma referência a "Sampa"? Se alguma coisa acontece no coração de Caetano "só quando [ele] cruza a Ipiranga e a avenida São João", isto é, só então, lá dentro da cidade maior do Brasil ele pode sentir, gostar, ser São Paulo, em "Desde que o samba...", ele afirma essa "alguma coisa acontece" neste momento exato, "agora". É mais urgente. O samba, que nessa música está bastante embebido de bossa nova, e que pode ser uma metonímia para música e, por que não?, para a arte, e arte brasileira especificamente, circula no sangue de Caetano+Gil, a todo momento, sempre, nunca para. Assim, eles descobrem como fugir da dualidade melancolia x galhofa, para uma relação de mudança:

"Cantando eu mando a tristeza embora". Pela primeira vez, há uma atitude, há um posicionamento ativo, algo que se possa fazer. E não é trabalhar, ou qualquer ato ligado às tradições do chamado Ocidente, mas o cantar, o divertir-se, o, seguindo o modo de viver de quem é sambista, portanto, viver a vida como ela é. E o cantar não esconde a tristeza. O cantar é o transformar a tristeza em outro algo.

Em uma entrevista em que ele fala sobre essa música, Caetano lembra muito da última parte da letra, que continua esse raciocínio e lembra outros:
O samba ainda vai nascer
O samba ainda não chegou
O samba não vai morrer
Veja o dia ainda não raiou
O samba é o pai do prazer
O samba é o filho da dor
O grande poder transformador
Os quatro primeiro versos seriam a afirmação de que esse elemento fora das práticas utilitárias, no caso o samba, a música, a arte, não se perde, não acaba, mesmo com o mundo se transformando em algo cada vez mais ligado a relações pragmáticas. Lembra muito a fala do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro quando se refere aos índios, esses marginalizados por definição, como aqueles que vão nos ensinar, nós do centro, a viver após a catástrofe iminente do nosso mundo. E lembra o próprio Caetano em "Um índio", que coloca o personagem geralmente ligado preconceituosamente a um passado remoto, arcaico, tradicionalista, descendo de uma "estrela colorida / brilhante" para nos revelar, nós os donos da hegemonia, o "óbvio".

Os três últimos versos reforçam a tradição talvez iniciada por Machado, mas com uma pequena mudança, um twist: o samba, a música, a arte, e a arte brasileira nascem a partir da tristeza [dor, melancolia] e transforma essa dor em alegria [prazer, galhofa]. Ele não nega a tradição brasileira, a herança que recebeu, ao contrário, a reafirma, mas acrescentando um detalhe pequeno, que mostraria uma posição mais própria dos indivíduos.

A arte, esse estado de espírito produzido pelo artista, é o "entre" os dois polos que, talvez, um dia, nos definiram - e que podem, de alguma forma, ainda nos definir. Um entre que não separa dois elementos concomitantes, mas que se transmutam um no outro. Um sendo o elemento originário do outro. Em vez de serem elementos duais do mesmo corpo, são o mesmo elemento, apenas transformado pelo fogo da arte.

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