sábado, 29 de novembro de 2014

'Dos caminhos do criador', Nietzsche

Queres, meu irmão, partir para o isolamento? Queres procurar o caminho que a ti próprio conduz? Hesite um momento ainda e escuta.

"Quem procura facilmente se perde. Todo o isolamento é um pecado". Assim fala a multidão, o rebanho; e tu pertenceste ao rebanho por muito tempo.

Por muito tempo ainda falará, no fundo de ti próprio, a voz do rebanho. E quando disseres: "A minha conciência já nada tem de comum com a vossa", tal será para ti queixume e dor.

Pois é ainda essa consciência comum que produziu tal dor; e o último clarão dessa consiciência lança ainda um reflexo sobre a tristeza.

Mas tu queres seguir esse caminho da tristeza, o caminho que conduz a ti próprio? Então mostra-me se para tal possuis o direito e a força.

És força nova e direito novo? Primeiro motor? Roda que gira por si própria? Podes obrigar as próprias estrelas a gravitar ao teu redor?

Ai de mim! vêem-se tantas cobiças estendidas para os cumes! Tantas contorções ambiciosas! Mostra-me que não és um disfrutador nem um ambicioso.

Ai de mim! há tantos pensamentos elevados que apenas agem à maneira de um fole: ao dilatarem-se aumentam o vazio.

Dizes-te livre? O que pretendo conhecer é o teu pensamento soberano; não me interessa saber qual o jugo que sacudiste de ti.

És daqueles que têm o direito a subtraírem-se ao jugo? Muitos perderam a última parcela do seu valor no dia em que se libertaram da servidão.

Livre de quê? Pouco importa a Zaratustra. Mas que o teu olhor me diga claramente para que fim és livre.

Saberás prescrever a ti próprio o teu bem e o teu mal, e suspender acima da tua cabeça o teu amor erigido em lei? Saberás ser o seu próprio juiz e o vingador da tua própria lei?

Terrível é um tal diálogo, frente a frente com o juiz e o vingador da nossa própria lei! Assim um astro se vê precipitado no espaço vazio e no hálito glacial da solidão.

Ainda hoje sofres da multidão, ó solitário; ainda hoje dispões da tua coragem inteira, e das tuas esperanças.

Mas venha o dia em que te cansarás da tua solidão, em que o teu orgulho vergará, em que a tua coragem rangerá os dentes. Então hás-de gritar: "Estou só!"

Um dia a tua grandeza escapará ao teu olhar e a tua baixeza apertar-te-á o pescoço, o teu pensamento mais sublime te apavorará, como um fantasma. Um dia gritarás: "Tudo é falso!"

Há sentimentos que procuram matar o solitário; se falham, então que ele os mate! Mas haverá em ti o estofo de um assassino?

Meu irmão, conheces já esta palavra: desprezo? E esse cúmulo da tua justiça... ser justo par com aqueles que te desprezam?

Obrigaste muita gente a mudar de opinião a teu respeito; querem-te terrivelmente mal por isso. Aproximaste-te deles, mas seguiste o teu caminho; nunca to perdoarão.

Passas além deles; mas quanto mais te elevas, mais pequeno te tornas aos olhos dos invejosos. Aqueles a quem mais se odeia, é o que possui asas.

"Como poderíeis ser justos para comigo? deverias tu dizer-lhes. Escolhi para meu quinhão a vossa injustiça".

Eles lançam sobre o solitário a injustiça e a imundície; mas, meu irmão, se quiseres ser uma estrela, não é por isso que os iluminarás menos.

Livra-te dos bons e dos justos. Gostam de pôr na cruz aqueles que são os inventores da sua própria virtude - odeiam o solitário.

Livra-te da santa simplicidade. Tudo o que não é simples lhe parece sacrílego; também ela gosta de brincar com o fogo - o fogo dos autos-de-fé.

E livra-te também dos teus acessos de ternura pelos homens. É comum no solitário ser demasiado rápido a estender a mão à primeira pessoa que lhe aparece.

Há muita gente a quem não deverás estender a mão, mas a pata; e esforça-te por que a tua pata tenha garras!

Mas serás sempre, para ti próprio, o teu pior inimigo; por todo o lado de emboscada, és tu que a ti próprio te espreitas no fundo das cavernas e das florestas.

Solitário, tu segues o caminho que a ti próprio conduz. E nesse caminho encontrar-te-ás a ti próprio, e aos teus sete demônios.

Sentir-te-ás herético e feiticeiro e adivinho e louco e céptico e sacrílego e malfeitor aos teus próprios olhos.

Ser-te-á necessário consumires-te na tua própria chama; como poderias nascer de novo, se te não houvesses consumido primeiramente?

Solitário, tu segues o caminho dos criadores. Dos teus sete demônios tentas fazer nascer um Deus.

Solitário, tu segues o caminho dos apaixonados; é a ti que amas e por isso te desprezas como só os apaixonados sabem desprezar.

É por desprezo que o apaixonado quer criar. Conhecerá o amor aquele que se não sentiu obrigado a desprezar o que amava?

Retira-te para a tua solidão, ó meu irmão, com o teu amor e a tua vontade criadora; só mais tarde te seguirá a justiça, com o seu pé coxo.

Retira-te para a tua solidão, meu irmão, as minhas lágrimas te seguem. Amo o homem que quer criar o que o ultrapassa, e disso perece.

Assim falava Zaratustra.

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