sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Retrospectiva 2014: Gol da Alemanha

Fim do ano é o momento do balanço do que houve no último ciclo solar. E neste 2014, houve o fim da guerra fria para Cuba, com a canetada do Obama que deu a primeira picaretada no muro metafórico deles, exatos 25 anos depois da queda do outro, o alemão. Tivemos também uma eleição extremada em que fomos obrigados a escolher entre um playboy que carrega em sua biografia todos os cacoetes excludentes apresentados em mais de 500 anos da elite brasileira, e uma desenvolvimentista que parece seguir, quase que ironicamente, a linha econômica da ditadura que ela queria derrubar. Escolhemos a menos pior, mas que nos faz pensar que o fundo do poço, nesse caso, é um fundo falso. Houve ainda a descida da nave num asteroide, a prisão algo inédita de corruptores no Brasil, e até o grave problema de saúde da Andressa Urach - pobre coitada. Mas nada mexeu mais comigo, diretamente, que a Copa do Mundo e a goleada sofrida pela seleção brasileira para a Alemanha.



A Copa foi um evento sui generis. Talvez único, numa posição bastante distante dos seus pares, seja dentro da histórias das outras copas, seja na história brasileira na competição, ou até mesmo na relação de grandes fracassos brasileiros no esporte. Mesmo para fãs ocasionais do futebol, como eu, a Copa, e a participação brasileira nela, suscitou uma miríade de interpretações.

A começar, ou ainda antes do começo, houve o #nãovaitercopa. Ainda sob o reflexo das grandes manifestações do ano passado, muita gente tentou, senão impedir a realização da competição - já que seria pedir demais -, criar uma recepção crítica a um evento que não foi pedido por ninguém, nos foi empurrado goela [já ia escrever goleada...] abaixo, criou nada mais que estádios nas cidades-sede, que, em muitos casos, já se metamorfosearam em elefantes brancos. Os organizadores [políticos, homens de negócio, "gente de bem"], como sempre, priorizando o visitante em vez de pensar nas populações que diariamente enfrentam transportes ruins, cidades sujas, educação cada vez mais mecanizada, sentimento de insegurança [infundado ou não, não importa].

Apesar destes e de outros pesares, Dilma fez o discurso, tomou a vaia e o Brasil rolou a bola em São Paulo. A partir de então, vivemos diariamente durante todo o torneio o dilema remédio/veneno do que seria a maior característica do que se chama nossa identidade. Primeiro veio o remédio: Não houve problemas graves de organização nos estádios, aeroportos, ruas das cidades. Funcionando em escala de emergência, sem muitas opções extras, tudo deu razoavelmente certo. Graças, muitas vezes ouvimos isso, ao bom humor e a hospitalidade do brasileiro - esse sujeito que de Norte a Sul, Nordeste a Sudeste, gosta de receber e mostrar a casa para as visitas sempre com um sorriso estampado como troféu.

Essa emergência, porém, não funcionou dentro do campo. Sem prolongar em grandes explicações técnicas, porque não saberia fazer, ficou claro o quanto os jogadores brasileiros carregaram sobre os ombros, junto às mãos dos companheiros que eles levavam a campo, a responsabilidade de ganhar a competição. A obrigação de fazer o brasileiro feliz. A tentativa de salvar a pátria. Em vez de jogadores de futebol, eram candidatos a heróis. Não podia dar certo.

O que ficou demonstrado com a goleada para a Alemanha de 7 a 1 foi algo além disso, porém. Lembro que no dia seguinte, acordei muito cedo para ler tudo o que eu consegui encontrar na internet do mundo inteiro e tentar encontrar um cosmos no caos que tinha se instalado em mim. Algo era muito fora da minha normalidade, da minha expectativa, para que eu conseguisse, ao menos, entender. Era por demais distante da realidade, aquela que tradicionalmente estamos acostumados. Instaurou-se um novo mundo. Pensei que era um sentimento generalizado. Nem tanto.

Para muita gente, essa derrota não teve tanto impacto quanto as derrotas em 1950 ou 1982, porque não seria tão surpreendente assim. A goleada para a Alemanha seria uma consequência natural de uma seleção formada por jogadores do mesmo país do Santos, que também foi goleado pelo Barcelona numa final do mundial de clubes recente. Ou os sucessivos sacodes que os nossos times tinham levado dos times europeus. Seria apenas o passo seguinte. Nada tinha me preparado para o 7 a 1, entretanto. Nada.

A explicação faz sentido - concordo - mas só faz sentido após o evento. Esse é o retrato "veneno" de nossas características. Se somos hospitaleiros, solícitos, simpáticos, também tratamos todas as nossas riquezas como commodities. A elite sempre suga o que temos de melhor e exporta, fazendo com que apenas poucos e privilegiados lucrem com isso. Foi assim com o pau-brasil, com a cana-de-açúcar, com o café, com a borracha. Foi assim com os escravos, continua sendo com os índios. É assim com os nossos recursos hídricos, com os nossos minérios, com o nosso solo. Com o desmatamento para plantação de soja, para a criação de gado. Com o fim dos biomas Mata Atlântica e Cerrado. Com o genocídio em curso para a criação de Belo Monte e congêneres - cuja energia é necessária, segundo a opinião de muita gente boa, apenas para a produção de alumínio e outras indústrias primárias. É assim com os nossos jogadores de futebol.

Criamos verdadeiras indústrias de exportação de jogadores e, pior, os vendemos ainda "verde", para que "amadureçam" na Europa, pegando todos os trejeitos de lá. Nossos jogadores são produtos, nada além de produtos, cada vez menos valorizados no mercado internacional, para os cartolas, agentes, donos de empresas de marketing esportivo. Estamos vendendo todos, remexendo o solo, levando cada um que aparecer, com o simples intuito de lucrar o máximo e agora. Parece que vivemos sempre em esquema de contingência. Como se só soubéssemos funcionar em estado de emergência. Mas o rio só corre para um mesmo lado: novamente apenas alguns poucos ganham muito, enquanto a grande maioria só se alimenta de sonhos cada vez mais amargos.

Para piorar, após a maior vergonha da história do futebol - daquele time, lembra?, que iria nos dar mais um orgulho para estamparmos no peito - a empresa que controla o esporte no país, orgulhosa de ser privada, escolheu dois velhos nomes para coordenar nossa principal categoria. Sendo o auxiliar técnico um ex-agente de jogadores. Como demonstrando claramente qual o caminho que quer continuar a seguir. Se após a derrota de 1950, criou-se um incipiente profissionalismo que há gente que defenda que nos deu a geração de 1958 e 1962; se em 1982 houve uma mudança de mentalidade que acabou com o futebol-arte, para criar o futebol-brucutu, que também veio a dar numa conquista de copa, em 1994, a derrota deste ano provocou apenas um aumento da sangria, um alargamento da nossa ferida, um aprofundamento da nossa tragédia sempre anunciada.

O futebol, como já filosofou Nenê Prancha, é dos esportes mais surpreendentes que há. Mas eu não arregalaria nenhum olho caso o Brasil nunca mais ganhasse qualquer campeonato relevante. Se se transformasse num país do segundo escalão do esporte. Não é agouro. Não é torcida contra. É decepção. Tristeza. Impotência. Sei que qualquer previsão é um chute num estádio às escuras, mas arrisco dizer o seguinte: neste ano selamos a sete gols nosso destino futebolístico.

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