domingo, 29 de março de 2015

Negação da individualidade

"Sentindo necessidade imediata de ordem, e de dar nome ao que existe, apelidou-a de Pequena
Flor." Quando se lê essa frase de Clarice Linspector em "A menor mulher do mundo", conto que Verissimo considera ser o melhor em língua portuguesa, muitas ideias brotam na cabeça. Principalmente quando se lê esse conto logo depois de passar por "Elegbara", a reunião de narrativas curtas de Alberto Mussa, em especial "A cabeça de Zumbi" e "O último neandertal". Há algo aí que junta as duas [ou três] pontas e que nos leva a um outro formato de pensamento.

Ao fim de "... Zumbi", Mussa escreve:
Mas não por muito tempo. Porque Zumbi, mortal eterno, atingindo o ápice do seu ideal, tinha diluído a própria individualidade, disseminando-se como um ente coletivo. Nenhum dos filhos de Deus ousou semelhante grandeza.
Assim, vez por outra, Pernambuco continuava a ver o rosto de Zumbi. Até em mulheres; até em crianças; até em brancos.
Por isso a angústia dos que vêm às cercanias de Palmares ou simplesmente contemplam a serra da Barriga: porque se esconde naquelas matas uma possível negação da singularidade dos seres e da própria ontologia humana; porque, vagando pelas brenhas, certamente ainda há algum Zumbi para morrer.
Ao fim de "... neandertal", ele deixa como moral a seguinte passagem:
Se os nomes comuns serviam para destacar do real tangível classes de entidades de existência meramente cognitiva, os nomes próprios desencadearam a sensação falsa de que cada pessoa era em si uma classe, uma entidade única, criando o artifício da personalidade. Os demais conceitos — alma, família, beleza, propriedade — surgiriam como atributos secundários dessa idéia.
Os neandertais refratários a tal perversão certamente anteviram os efeitos que iria produzir. Não cabe discutir se foram ou não foram mais inteligentes. Fique apenas a imagem do último deles, a um só tempo solitário e coletivo, como que a demonstrar que o indivíduo é uma falácia; que a consciência é uma falácia; que o próprio ser — em sua furna — também é uma falácia.
O que as três narrativas fazem é questionar, de modo brando no caso de Lispector, ou diretamente no de Mussa, a certeza da individualidade, de um existir em separado dos demais, a ideia de que há "um homem" em vez de "os homens", ou ainda "os seres". Um duvidar de que há um ente puro, isolado, em vez de ser simplesmente como que mergulhado num grande mar infinito [talvez os hindus chamem isso de brahman]; um ser em que é impossível determinar as fronteiras, demonstrando como somos unos - e a própria ideia de plural ou singular se torna complicada, já que não haveria nenhuma diferença em relação a isso.

Lispector mostra a surpresa do explorador francês Michel Petre ao encontrar um mulher negra de 45 centímetros no meio de uma tribo de pigmeus na África equatorial. Ele está tomado de um espanto que o leva para longe de todas as certezas acumuladas por anos de ciência racional europeia. Encontra algo que desafia a sua lógica, o que estava acostumado, as verdades assentadas dentro de si. Seu deus, nesse momento, morreu. Não tinha mais em que se apoiar. Era só dúvida. Espalhado, perdido, vagando, sem um porto. Era puro devir. Seu incômodo cresce, não pode trafegar nessas águas tão turbulentas sem algum tipo de apoio. "Na certa, apenas por não ser louco, é que sua alma não desvairou nem perdeu os limites", escreve Lispector. Decide dar à pequena mulher um nome, algo que a retira desse fundo em que ela se confundia, em que ela se sentia parte integrante, e criar uma perspectiva em relação aos demais, como um pintor renascentista. Na necessidade de criar uma "ordem", uma direção, um sentido; fazer um recorte no mundo para que essa parte em separado pudesse ser enxergada. "E, para conseguir classificá-la entre as realidades reconhecíveis, logo passou a colher dados a seu respeito."

Os pigmeus não teriam necessidade de se identificar: "Os Likoualas usam poucos nomes, chamam as coisas por gestos e sons animais." Uma senhora, mãe de uma noiva, personagem do conto, sugere que a tristeza que ela exala não é "humana", mas de "animal". Nós e eles. Uma separação, um limite, uma borda, uma fronteira que nos coloca sobre os demais, hierarquicamente. Já o pai de outra família imagina a pigmeu servindo a sua mesa. Um escravo, um menor, um outro. O mesmo raciocínio.

O explorador sente mal-estar porque sua Pequena Flor sorri. Sorri sem motivo - para ele - sem razão, que ele enxergue. Sorri porque está viva. Está feliz simplesmente por se percebe viva e não morta. Por ser e por não não-ser. Ela não precisa de mais nada além disso, não precisa de qualquer outra bengala para se apoiar e justificar para si sua vida. Ela vive e é isso. Essa falta de motivo aparente violenta o explorador que tem seus apoios, seus objetivos, seus futuros a cumprir. "Esse riso, o explorador constrangido não conseguiu classificar." Como assim sorrir sem razão? Ela sorria porque o amava - e não amava a ele, explorador, simplesmente, mas amava o que o mundo lhe apresentava, amava, por fim, a vida, o viver, o estar viva. Ele fica constrangido e sorri de volta, querendo entender como funciona o diálogo, mas logo volta a si, à razão, à sua História, se recompõe. Toma notas, organiza, classifica. Tenta estabelecer novamente um limite entre um e outro, a divisão da comunhão que havia se estabelecido. A volta a si, dentro de si, o mergulho em sua individualidade, sua subjetividade.

Mussa é explícito no seu argumento: "os nomes próprios desencadearam a sensação falsa de que cada pessoa era em si uma classe, uma entidade única, criando o artifício da personalidade. Os demais conceitos — alma, família, beleza, propriedade — surgiriam como atributos secundários dessa idéia." No seu conto, ele mostra como o neandertal negou a separação do seu entorno, se misturando com o fundo, que todos eram apenas um e um era todos. Ou como o objetivo de vida de Zumbi era não ser ele, apenas, mas ser muitos, todos serem ele e ele ser todos - todos serem todos.

Não é uma defesa de uma forma mais sábia de lidar com o mundo, de viver, de existir enfim, apenas a demonstração que, com esse prognóstico, afirma-se a ideia de um ser único em separação do restante, "como que a demonstrar... que o próprio ser — em sua furna — também é uma falácia". O ser como momento em que o devir é aprisionado, um limite para o espraiar de vida, de força, de vontade nietzschiana - não como uma possibilidade infinita, tal qual Heidegger defende na sua obra capital. Mas um ser que fosse uma fronteira estabelecida, uma determinação de algo que existe independentemente dos demais. Um ser que é quase um não-ser por ser a cristalização de um determinado modo de ser, em vez de se deixar flutuar, navegar, nadar ao sabor do tempo. Um ser que, mesmo que em alguns casos seja momentâneo, permite que se separe, se torne único.

É possível em nossa sociedade extremamente neurotizada e neurotizante ainda se pensar sem a noção do indivíduo? Não é indispensável se pensar movimentos que girem de um lado para o outro, que demonstrem que há a necessidade também de uma constituição para depois haver uma destituição? O equilíbrio dinâmico entre os pontos cardeais? Como perder a soberba de se imaginar único?

Nenhum comentário: