quinta-feira, 5 de março de 2015

Rio 450 anos: o que temos para comemorar?

Em qualquer viagem, é inevitável fazer comparações com o seu país, seu estado, sua cidade. Você fica pensando, a cada curva no mapa, a cada estátua desvendada, o que é diferente da sua casa e o que é igual de todos endereços tão familiares. Tenta fazer uma brincadeira de espelho e encaixar a alameda da sua casa dentro da avenida do hotel. Colocar o boteco no pub. A Medina na favela. O Cristo na Torre. Lembra da dificuldade de tomar um ônibus na hora que enfrenta a dificuldade de tomar um trem. Percebe os tempos - longos, curtos, médios, ondulados. Os gostos. As temperaturas. Os cheiros que te remetem para as memórias mais longínquas, em cascatas. As pessoas andando nas ruas. Como se olham. Como se tocam. Como se vestem. Você compara, converte, mede com uma fita métrica do seu bairro, tenta falar com o mesmo alfabeto, léxico e gramática que você usa cotidianamente. É uma tentativa de tornar próximo aquilo que é, a cada momento, estrangeiro. Isso tudo acontece sempre, sempre que você toma um avião para sair do mesmo lugar de sempre. Mas uma viagem a Lisboa multiplica esse sentimento exponencialmente. São tantas familiaridades, tantos traços em comum, que às vezes o caminho é exatamente o oposto: o que temos de diferente?

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Quando Pessoa, travestido de Bernardo Soares - o heterônimo mais próximo do autor, segundo os entendidos -, diz que a sua "pátria é a língua portuguesa", percebo o quanto temos - portugueses e brasileiros - de diferente aí. O contexto da citação até pode não ser exatamente este, mas pode-se sugerir que há, aí, um elogio da literatura, da palavra escrita. Dessa tradição tão europeia de passar as suas histórias e a História ao longo do tempo por essa mídia chamada papel. Língua, literatura, cultura escrita, essa tradição tão vindo nas caravelas para o resto do mundo.

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Os brasileiros não podemos - no sentido de "deveríamos" - falar que compartilhamos a mesma pátria. Nossa pátria não é formada das mesmas letras, nem da mesma terra. Temos, sim, essa herança, o que é inegável  - e a capacidade de se emocionar ao ler o próprio Pessoa nos mostra o quanto deste passado está presente.

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Se pudesse sugerir onde fica nossa pátria, eu arriscaria: na música. É lá onde o povo-popular se encontra. Foi lá que o Brasil oficialmente desobedeceu os impostos ibéricos de maneira mais clara, e tal qual Édipo, começamos a caminhar, cegos e sozinhos (mas qual caminhar sozinho não é uma metáfora para a cegueira?).

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Não quer dizer que não tivemos Glauber, Machado [Machado!], Oiticica, todos grandes Macunaímas. Mas é na música que estabelecemos mais claramente nossas fronteiras sentimentais nacionais. E, de certa forma, é o que nos mantém unidos.

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Isso mostra como nós somos diferentes da tradição estritamente europeia. Todo país europeu tem o seu Cervantes, Goethe, Shakespeare. Nós, claro, temos Machado, temos Drummond, que as pessoas adoram tirar fotos e arrancar seus óculos, mas a representatividade da literatura em nosso cotidiano é irrisória. Pense, como um entre tantos exemplos, em nossas tiragens para lançamentos de um livro grande [sem ser um Paulo Coelho ou "50 tons de cinza" da vida] e compare com o que acontece em Portugal.

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Nossa tradição tem muito, mesmo que nós, brasileiros-preconceituosos, não queiramos, de índio e africano: somos muito mais corpo que alma. Muito mais rua que casa. Somos muito mais ginga, requebrado, rebolado. Samba, xaxado, afoxé. Mesmo o pessoal mais ao sul, mais ligado à Europa. [E, sim, estou generalizando para efeito de divagação.] Nosso pensamento não é cartesiano. Nosso tempo não respeita o horário. Nossas estações são diferentes. Não somos europeus em exílio, como disse Borges sobre sua Buenos Aires - e ele mesmo estava errado.

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Por isso não entendo a comemoração dos 450 anos do Rio. Quer dizer, entendo, mas não concordo. Comemorar o quê? Comemorar o início de uma cidade que tentava ser europeia? Comemorar o marco inicial da expulsão dos índios que aqui estavam? O genocídio? A destruição do sistema ecológico daqui? O maior porto de escravos das Américas? A elite que sempre governou para a própria elite?

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O pessoal do andar de baixo teve que se virar. A necessidade de sobrevivência fez com que eles criassem, inventassem, transformassem a massa que era entregue para eles em algo novo. Sem muito planejamento, sem muita visão do todo, sem pensar muito no amanhã. Era o que tinha para aquele hoje. Tinham que desviar das pedras e pedregulhos e montanhas no meio do caminho.

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O que ficou disso, o que é comemorado agora nos 450 anos? O folclórico, o vazio, o malandro sem malandragem, o sambista de panamá da Uruguaiana e camisa listrada azul pronto para se exibir para a câmera do turista gringo. Falta sangue nas veias. Mas não falta nas ruelas.

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Perto da minha casa, o filho do Andrei Bastos, que eu tive a honra de entrevistar certa vez, Alex Schomaker Bastos, foi assassinado por assaltantes. Os pais e amigos do menino fizeram uma homenagem a ele, com cartazes colados no ponto onde ele esperava o ônibus. Parece que os cartazes foram retirados, mas a família colou tudo de novo. Agora, há uma patrulhinha parada ao lado para dar mais "segurança" ao lugar. E o prefeito prometeu transformar o lugar e construir uma pracinha. No primeiro caso, uma medida paliativa que apenas empurra o problema da violência para alguns metros adiante ou para trás. No segundo caso, uma medida hipócrita.

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O que temos para comemorar? A Baía de Guanabara e as praias constantemente poluídas? Os ônibus caríssimos e ineficientes? As contas dos donos das empresas de ônibus na Suíça? A violência em crescimento vertiginoso nas áreas menos privilegiadas? A crise de abastecimento de água? O futebol e as escolas de samba caídos em descrença? O custo de vida estratosférico e subindo? O prefeito mentindo sobre as obras para as Olimpíadas? A inexistente herança da passagem da Copa do Mundo? O que temos para comemorar?

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