sexta-feira, 1 de junho de 2018

Contra uma esquerda

Eu não sou de esquerda. Se de esquerda quiser dizer uma empatia absoluta com todo ou qualquer sofrimento. Ou mesmo, se for ser sempre contaminado pela tristeza de situações tristes, degradantes. Sempre me mantenho à distância desses momentos mais melodramáticos, cada vez mais cotidianos, infelizmente. Talvez eu seja frio [ou cerebral] demais para ser de esquerda, ou anestesiado por gerações de imagens e situações devastadoras. Minha compaixão foi dilacerada. Poucas vezes vejo algo que me captura, me atravessa de uma maneira a eu não poder desviar os olhos.

Isso não quer dizer, porém, que eu ache a absurda discrepância entre os modos de vida e as formas e privilégios de uns [poucos] sobre outros [muitos] - ou muitas outras - aceitável. Ao contrário. É óbvio, para mim, que há algo absolutamente errado com os fatos cotidianos do país e do mundo - e os exemplos são muitos e repetidos ao cansaço. É só lembrar o fato de que apenas seis pessoas - todos homens - possuem o mesmo patrimônio de metade da população brasileira, ou seja de 100 milhões de pessoas. Talvez escrever o número com todos os seus zeros possa dar melhor a discrepância da situação: 100.000.000.

Essa informação me agride como um soco na cara. Isso, entretanto, não me credencia, no meu ver, a ser considerado de esquerda. Ou a uma esquerda que se mantém atrelada a determinados dogmas, ou que nasce apenas querendo mudar o crupiê do cassino de cartas marcadas em que estamos sempre sendo roubados. Eu não sou de esquerda se isso for um qualificativo, uma posição de superioridade, um atestado de isenção moral, em que se há uma linha clara que separa os bons dos ruins. Ou quando se tenta pensar numa sociedade absolutamente igualitária, e se nivela, ou melhor, se estabelece um teto por baixo, fazendo com que todos tenham a mesma característica. Para mim, democracia é diferença, ou não pode ser chamada assim.

Eu me importo com igualdades de solos e não de tetos. E isso não quer dizer uma competição irrefreada por ser "melhor", para subir o sarrafo, ao contrário. Isso também não quer dizer uma liberdade absoluta, ou uma autorização insana por gastar todos os recursos que temos acesso. Diria que é quase o inverso: um mergulho em si, para tentar se descobrir, em todas as suas potencialidades. Já é óbvio, ou deveria ser, que a Terra não mais suporta ser explorada e estragada, os animais não aguentam mais ficar acuados, serem favelizados, as matas não toleram mais serem arrasadas, o solo, espoliado, os rios, os mares, assoreados com venenos plásticos.

Para mim, não é possível pensar numa sociedade em que negros são assassinados industrialmente, com o requinte cruel de o motivo das mortes ser apenas por serem negros. Ou em que as mulheres são vistas apenas como apêndices para as decisões masculinas. Em que os indígenas são encarados apenas como exóticos seres que colorem o folclore. Que os animais se tornem apenas alimentos matáveis ou seres aprisionados como troféus, dignos unicamente de pena. Que os ecossistemas são pensados como vazios demográficos que se precisa explorar. Que a única lógica para a grande maioria do planeta seja extrativista, de exploração até o esgotamento e, consequentemente, o abandono. Não é possível que a única forma de viver é compartilhar uma cidade suja e barulhenta, a bordo de um carro sujo e barulhento, enquanto construo minha carreira como um empresário de mim mesmo, e me vendo como produto descartável em redes de contatos antissociais. Não é possível viver feliz em um mundo em que o dinheiro é o único indexador de todas as outras coisas. Que a arte seja encarada como um escapismo, uma terapia ocupacional, ou um verniz de relevância social, um selo de superioridade no grupo, acessível a apenas alguns divinamente escolhidos. Que apenas uns e outros tenham acesso a bens de saúde, de educação, de segurança, de, enfim, condições mínimas que os colocam em clara vantagem em relação à imensa maioria da população, no jogo que compartilhamos as regras compulsoriamente. É um absurdo que se julgue o caráter de pessoas por suas preferências - sexuais, religiosas, futebolística, política. É bizarro que se tente convencer os outros que as suas próprias opiniões são as únicas que importam.

Mas essas atitudes não me fazem ser de esquerda. Ou não deveriam fazer. É apenas respeitar a dignidade ontológica de cada um dos seres de serem o que desejarem ser, a cada momento.

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