quarta-feira, 21 de agosto de 2019

Negando Thatcher

Uma das maneiras de marcar o início desse nosso período de ultracapitalismo de cunho neoliberal seria a famosa frase de Margaret Thatcher: "There's no such thing as society", dita em uma entrevista em 1987. Apesar de na continuação da frase Thatcher sugerir que as pessoas tomem conta também dos vizinhos, depois, claro, de cuidarem de si próprias, tal sentença, tirada do seu contexto mais restrito, e dita por quem foi dita, ganhou a conotação que entrou para a História: o que há são tão e somente indivíduos ["e suas famílias", ela completou, demarcando bem claramente o tipo de conjunto que ela queria isolar].

A mulher que desestruturou a Inglaterra, transformando a velha Albion numa ilha em que cada um luta por si [sua família e seus vizinhos] contra os demais, conseguiu enfraquecer os laços comunitários, além daqueles determinados por ela e pela ideologia que ela apoiava / era apoiada por. Jogou nas costas de cada um o peso dos seus próprios fracassos e, principal e igualmente, do seu sucesso.

Essa sentença representa um mundo em que, para usar mais uma vez a manjada metáfora da vida como teatro, cada uma das pessoas se pensa como um ator no seu próprio monólogo, num mundo lotado, portanto, de... monólogos sem plateias - que, por isso mesmo, não dialogam. Não deve ser coincidência que a definição de direita de Deleuze no Abecedário se pareça tanto com essa frase.

Ao fim do seu mandato, Thatcher afirmou, com uma inteligência aguda, que seu principal legado era o Labour. Dito em outras palavras, o que ela deixava para o mundo de mais importante era o fato de até mesmo os seus adversários só terem sua cartilha para seguir, sem desconsiderá-la em nenhum momento. O mesmo pode ser dito para a tal frase acima: estamos há mais de 30 anos tentando refutá-la, negá-la, rechaçá-la, mas, em vez de nos afastarmos e criarmos um mundo nosso, continuamos orbitando ao redor de sua atmosfera tóxica. Thatcher é a banca e continua a dar as cartas; nós somos meros, quando muito, jogadores autorizados a brincar com os adultos. E, claro, eles mudam as regras quando quiserem.

Desde então, só conseguimos criar grupos pseudo-comunitários, como as igrejas neopentecostais trabalhadas na teologia da prosperidade, que funcionam basicamente como coaches espirituais nos programando para atingir o lucro e aliviando nossas dores cotidianas em busca de nosso grande objetivo: o sucesso. E pouco mais.

Nessas pseudo-comunidades, somos todos "eleitos", "ungidos", "consagrados" para o sucesso. Ninguém, coincidentemente, nasceu para o fracasso, ninguém é personagem secundário, poucos são os que aguentam o anonimato. Todos querem o centro do palco, 15 minutos de felicidade, hitar no Twitter. O mais curioso: raramente conseguimos dar respostas outras que não clichês quando somos perguntados sobre o que é o sucesso. Além de repetir os lugares-comuns, o que verdadeiramente queremos? O que é esse sucesso senão uma versão do Paraíso cristão repaginada [pela Martin Claret] ou levada às telas pela Record?

Os nossos desejos foram tomados de assalto pelo marketing publicitário e as redes sociais já conseguem prever nossos anseios com mais precisão que nós mesmos. O que sobrou para nós, mesmos? O deserto da vontade, que apenas cresce e cresce, tomando totalmente nossas vidas. Não temos nem um desejo que já não foi empacotado para presente e parcelado em 3x sem juros no cartão de crédito. Ficou o nada, o vazio, o eco das nossas vozes diante do abismo.

E, para piorar, nos últimos anos, apareceram versões desse ultracapitalismo neoliberal carregadas de testosterona, violência e fragilidade masculina. Alguns com cabelo laranja, outros com fixações anais, orais e outras infantilidades. Como, agora, massacrado diariamente pela quantidade imensa de más notícias, voltar a sentir alguma coisa que não seja uma grande aversão e ódio à tanatocracia vigente, à essa poderosa máquina estatal de moer gentes e mundos, deixando para trás apenas cinza de queimada, terra seca e monoculturas de exploração para exportação?

Não sei, mesmo, mas eu quero ao menos parar de acreditar na frase de Thatcher. Já tá bom, chega. E não é para cair numa inversão boba, de sentido haribô, em que todos somos conectados religiosamente uns aos outros, claro que não, mas, talvez, pensando em perder completamente a minha pretensa excepcionalidade, o meu caráter de indivíduo, isolado, e pensando que cada corpo é afetado a partir de encontros com outros corpos. Talvez conseguindo - não sei como - mostrar para mim mesmo que é muito mais provável que o inverso da famosa frase produza bem mais felicidade, porque a solidão é triste pra dedéu. Já estive lá e não aconselho. Ou seja, repetir para mim que não existe tal coisa como o indivíduo, só há associações. Definitivamente, eu quero dedicar o que resta da minha vida a produzir encontros felizes, isto é, encontros que aumentem a minha potência de agir.

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