quarta-feira, 9 de outubro de 2019

Nietzsche sobre religião e governo

NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano, vol. I.

472. Religião e governo. — Enquanto o Estado ou, mais precisamente, o governo se souber investido da tutela de uma multidão menor de idade, e por causa dela considerar se a religião deve ser mantida ou eliminada, muito provavelmente se decidirá pela conservação da religião. Pois esta satisfaz o ânimo do indivíduo em tempos de perda, de privação, de terror, de desconfiança, ou seja, quando o governo se sente incapaz de diretamente fazer algo para atenuar o sofrimento psíquico da pessoa: mesmo em se tratando de males universais, inevitáveis, inicialmente irremediáveis (fomes coletivas, crises monetárias, guerras), a religião confere à massa uma atitude calma, paciente e confiante. Onde as deficiências necessárias ou casuais do governo estatal, ou as perigosas conseqüências de interesses dinásticos, fazem-se notórias para o homem perspicaz e o dispõem à rebeldia, os não perspicazes pensam enxergar o dedo de Deus e pacientemente se submetem às determinações do alto (conceito em que habitualmente se fundem os modos humano e divino de governar): assim se preserva a paz civil interna e a continuidade do desenvolvimento. O poder que reside na unidade do sentimento popular, em opiniões e fins comuns a todos, é protegido e selado pela religião, excetuando os raros casos em que o clero e o poder estatal não chegam a um acordo quanto ao preço e entram em conflito. Normalmente o Estado sabe conquistar os sacerdotes, porque tem necessidade de sua privatíssima, oculta educação das almas, e estima servidores que aparentemente, exteriormente, representam um interesse bastante diverso. Sem a ajuda dos sacerdotes nenhum poder é capaz, ainda hoje, de tornar-se "legítimo": como bem entendeu Napoleão. — Assim, governo tutelar absoluto e cuidadosa preservação da religião caminham necessariamente juntos. Nisto se pressupõe que as pessoas e classes governantes sejam esclarecidas a respeito das vantagens que a religião lhes oferece, e que até certo ponto se sintam superiores a ela, na medida em que a usam como instrumento: eis aqui a origem do livre-pensar. — Mas o que ocorre, quando começa a prevalecer a concepção totalmente diversa de governo que é ensinada nos Estados democráticos? Quando nele se enxerga apenas o instrumento da vontade popular, não um "alto" em comparação a um "baixo", mas meramente uma função do único soberano, do povo? Também nesse caso o governo só poderá ter a mesma atitude do povo ante a religião; toda propagação das Luzes terá de encontrar eco em seus representantes, uma utilização e exploração das forças motrizes e consolações religiosas para fins estatais não será tão fácil (a não ser que poderosos líderes partidários exerçam temporariamente uma influência semelhante à do despotismo esclarecido). Mas se o Estado já não pode tirar proveito da religião, ou se o povo pensa muito variadamente sobre coisas religiosas para permitir ao governo um procedimento homogêneo e uniforme nas medidas religiosas — então necessariamente aparecerá o recurso de tratar a religião como assunto privado e remetê-la à consciência e ao costume de cada indivíduo. A primeira consequência é que a sensibilidade religiosa aparece fortalecida, na medida em que movimentos seus escondidos e oprimidos, aos quais o Estado, involuntária ou intencionalmente, não concedia nenhum sopro vital, agora irrompem e se exaltam ao extremo; mais tarde se vê que a religião é sobrepujada por seitas, e que uma profusão de dentes de dragão foi semeada, no momento em que a religião se transformou em coisa privada. A visão dessa luta, o hostil desnudamento de todas as fraquezas dos credos religiosos, afinal já não admite outra saída senão a de que todo indivíduo melhor e mais dotado faça da irreligiosidade seu assunto privado: mentalidade que então prevalece também no espírito dos governantes e que, quase contra a vontade deles, dá às medidas que tomam um caráter hostil à religião. Tão logo isto sucede, a disposição dos homens ainda motivados religiosamente, que antes adoravam o Estado como algo semi- ou inteiramente sagrado, torna-se decididamente hostil ao Estado; eles ficam à espreita das medidas do governo, procuram obstruir, atravessar, inquietar o máximo que puderem, e com o ardor de sua oposição impelem o partido contrário, o anti-religioso, a um entusiasmo quase fanático pelo Estado; no que ainda concorre secretamente o fato de nesses círculos os ânimos, desde a separação da religião, sentirem um vazio e buscarem provisoriamente criar, com a dedicação ao Estado, um substituto, uma espécie de preenchimento. Após essas lutas de transição, que talvez durem bastante, finalmente se decidirá se os partidos religiosos ainda são fortes o bastante para restabelecer o antigo estado de coisas e fazer girar a roda para trás: caso em que o despotismo esclarecido (talvez menos esclarecido e mais temeroso do que antes) inevitavelmente receberá nas mãos o Estado, — ou se os partidos não religiosos predominam, e por algumas gerações dificultam e afinal tornam impossível a multiplicação dos adversários, talvez mediante a educação e o sistema escolar. Mas então diminui também neles o entusiasmo pelo Estado; torna-se cada vez mais evidente que com a adoração religiosa, para a qual o Estado é um mistério, uma instituição acima do mundo, também foi abalada a relação piedosa e reverente para com ele. Daí em diante os indivíduos só vêem nele o aspecto em que lhes pode ser útil ou prejudicial, e disputam entre si, usando de todos os meios para obter influência sobre ele. Mas essa concorrência logo se torna grande demais, os homens e os partidos mudam rápido demais, derrubam uns aos outros montanha abaixo, de maneira selvagem demais, quando mal alcançaram o topo. A todas as medidas executadas por um governo falta a garantia da duração; as pessoas recuam ante empreendimentos que necessitariam décadas, séculos de crescimento tranqüilo, para produzir frutos maduros. Ninguém sente mais obrigação ante uma lei, senão curvar-se momentaneamente ao poder que introduziu a lei: mas logo começam a miná-la com um novo poder, uma nova maioria a ser formada. Enfim — pode-se dizer com segurança — a suspeita em relação a todos os que governam, a percepção do que há de inútil e desgastante nessas lutas de pouco fôlego tem de levar os homens a uma decisão totalmente nova: a abolição do conceito de Estado, a supressão da oposição "privado e público". As sociedades privadas incorporam passo a passo os negócios do Estado: mesmo o resíduo mais tenaz do velho trabalho de governar (por exemplo, as atividades que se destinam a proteger as pessoas privadas umas das outras) termina a cargo de empreendedores privados. O desprezo, o declínio e a morte do Estado, a liberação da pessoa privada (guardo-me de dizer: do indivíduo), são conseqüência da noção democrática de Estado; nisso está sua missão. Se ele cumpriu a sua tarefa — que, como tudo humano, traz em si muita razão e muita desrazão —, se todas as recaídas da velha doença foram superadas, então se abrirá uma nova página no livro de fábulas da humanidade, em que serão lidas todas as espécies de histórias estranhas e talvez alguma coisa boa. — Repetindo brevemente o que foi dito: os interesses do governo tutelar e os interesses da religião caminham de mãos dadas, de modo que, quando esta última começa a definhar, também o fundamento do Estado é abalado. A crença numa ordenação divina das coisas políticas, no mistério que seria a existência do Estado, é de procedência religiosa: se desaparecer a religião, o Estado inevitavelmente perderá seu antigo véu de Ísis e não mais despertará reverência. Observada de perto, a soberania do povo serve para afugentar também o último encanto e superstição no âmbito destes sentimentos; a democracia moderna é a forma histórica do declínio do Estado. — Mas a perspectiva que resulta desse forte declínio não é infeliz em todos os aspectos: entre as características dos seres humanos, a sagacidade e o interesse pessoal são as mais bem desenvolvidas; se o Estado não mais corresponder às exigências dessas forças, não ocorrerá de maneira alguma o caos: uma invenção ainda mais pertinente que aquilo que era o Estado, isto sim, triunfará sobre o Estado. Quantas forças organizadoras a humanidade já não viu se extinguirem — por exemplo, a do clã hereditário, que por milênios foi bem mais poderosa que a da família, e que muito antes desta já reinava e ordenava. Nós mesmos vemos a significativa noção legal e política da família, que um dia predominou em toda a extensão do mundo romano, tornar-se cada vez mais pálida e impotente. Assim, uma geração posterior também verá o Estado se tornar insignificante em vários trechos da Terra — algo que muitos homens da atualidade não podem conceber sem medo e horror. Trabalhar pela difusão e realização dessa ideia é certamente outra coisa: é preciso pensar muito presunçosamente de sua própria razão e mal compreender a história pela metade, para já agora pôr as mãos no arado — já que ainda ninguém pode mostrar as sementes que depois serão lançadas no terreno rasgado. Confiemos, portanto, na "sagacidade e interesse pessoal dos homens", para que o Estado subsista por bastante tempo ainda, e sejam rechaçadas as tentativas destruidoras de supostos sábios zelosos e precipitados!

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