sexta-feira, 11 de março de 2005

Édipo

Admito que estou apreensivo. É a primeira vez que ela vem à minha casa. Falamo-nos diariamente - quase ao menos - mas não houve a oportunidade dela vir aqui. O relógio, como é de costume nessas situações, parece que fica imóvel. Levanto-me e sento-me inúmeras vezes. Abro a geladeira e depois a fecho, sem pegar nada lá dentro. Caminho em direção à porta e depois faço o percurso inverso. Volto, destranco e tranco a porta. Não estou confortável. Olho para o meu pequeno apartamento procurando algo que possa estar fora da ordem e ela venha a reclamar, apontar como desvio da minha norma. Sei que ele está um pouco sujo, mas, agora, não há nada que eu possa fazer. Pelo menos organizado está. E, principalmente, guardei todos os indícios de solidão e tristeza pelos quais eu passei nos últimos meses.

Saí de sua casa quando eu percebi que a minha vida era mais da porta para fora que dentro das quatro paredes. Havíamos vivido 20 anos juntos. Nos últimos tempos nos suportávamos. Saí e resolvemos manter a civilidade. Eu usava um argumento para me convencer: todo o tempo não poderia ter sido em vão. Ligava para ela como que obrigado. Não era agradável. A conversa beirava a burocracia.

Senti que ela perdia o interesse, de uma maneira geral. Ela, que sempre fora bastante alegre, organizava festas para os familiares, mesas enormes com pessoas completamente desconhecidas para mim. Não pertencia àquele mundo, àquela realidade. Já ela, ela era a favor da união sangüínea, diferenças seriam diminuídas, amigos formados pelo sobrenome em comum. Nós não brigávamos nunca, mas esse teria sido um bom motivo para discussões. E, agora, ela perdeu por completo a empolgação. As suas falas são decoradas, quase ladainhas. Reclama de tudo, argumenta que estava sozinha, que se sente perdida, que não há ninguém. Não sei lidar como isso e apenas a escuto, sem pronunciar nenhuma palavra. Não quero me envolver, não acho que é da minha conta, que eu devo fazer alguma coisa. Mantenho-me à distância dos fatos e sou apenas um observador frio da sua queda.

Não creio que a sua doença tenha começado por minha causa. Pelo menos não quero ter essa culpa, já que não vejo utilidade nesse sentimento. Mas é coincidência demais ela ter piorado assim que eu saí de casa. Ela começou a murchar, acinzentar-se, desistir da vida. A doença veio logo em seguida. Não havia mais porquê dela lutar contra. Entregou-se à fatalidade e esperou o inevitável.

Neste dia ela vem à minha casa porque eu moro mais perto do hospital que ela. Quero demonstrar que eu posso viver sozinho, sem ela. Parecer independente, este é o intuito. Mas me parece que quanto mais luto para me desvencilhar dela, mais me perco de mim mesmo e de todos a minha volta. Com a independência tão almejada, veio a solidão profunda. Eu passo dias inteiros, finais de semana sem abrir a boca para conversar com qualquer pessoa. Saí de casa poucas vezes. E para nunca me divertir. Todas as festas não tem mais nenhuma graça porque não me atingem. São distantes da minha realidade de solitário. Chego a pensar que para sempre viverei assim. Todos os meus planos estão naufragando. Continuo porque não tenho opção ou sou covarde, ou para provar que eu conseguirei sobreviver.

Vivemos o mesmo sentimento, apenas distanciados um do outro. E não há forma de consertarmos, deve ser assim. Eu não quero diferente, ela não enxerga outra forma ou tem medo de tentar.

E, então, a campainha soa...

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