quinta-feira, 11 de junho de 2020

2 a 2 [Ficção]

Esse jogo não pode ser um a um
Jackson do Pandeiro

Da varanda do terceiro andar, Melissa observa os meninos correndo atrás da bola. Na frente, Diego, ponta do pé, mãozinha côncava para trás e peito estufado, elegância copiada da televisão. Sua dupla, Dominguinhos, recebe a bola em profundidade e toca para o golzinho vazio para marcar. Mesmo com toda a sua velocidade, Breno não chega a tempo de defender a meta e olha de cenho fechado para Alê, com as mãos nas cadeiras, como se não tivesse responsabilidade no desfecho. Diego e Dominguinhos começam uma dancinha, mãos nos joelhos, balançando quadril e cabeça coordenadamente. De cabeça quente, Breno pede para tomar água. Isolado, Alê parte sem se despedir. “Ih, vai arregar, é?”, Dominguinhos fala. “Ele vai é chorar”, Diego completa. “Assim vai acabar a partida, Alê”, Breno tenta outra tática. O garoto não fala nada antes de pegar o elevador.

“Por que você não desce?”, Cecília se aproxima da menina na varanda, com uma boneca na mão: “Pelo que eu vejo eles estão precisando de mais alguém”. Breno tinha improvisado balizas com os chinelos e entrado para o gol, enquanto Diego e Dominguinhos jogavam um-toque. A bola quica e Diego fuzila o gol, sem chance para Breno. “Eu não sei jogar...” “Mas você pode tentar”, insiste a mãe. A menina pega a boneca da mão da mãe e vai direto para o quarto.

***

“Par” “Ímpar” “Do-lá-si... já!” “Quatro, seis. Escolho Dominguinhos.” “Monstro”, “Breno”, “Rodney”, “Minhoca, vai jogar?” “Vou pra casa”, “Então, deixa ver...” “Chama o Marcinho”, Dominguinhos cochicha para Diego: “Marcinho”, “Peraí”, Junior, que tirava o outro time, interrompe: “se o Minhoca não jogar, vai faltar um.” Os garotos se entreolham e enxergam ao longe, mas atenta, Melissa, de short e tênis, pronta para entrar em campo. “Tem a Melissa”, propõe Breno. “Mas ela é mulé!”, corta Diego. “Ela sabe jogar bola?”, inquire Dominguinhos. “Você quer jogar, Melissa?”, Breno pergunta. A menina abre sem perceber um sorriso, mas fica travada, sem conseguir articular palavra, mesmo que um simples sim, e tenta reunir forças para responder, balançando a cabeça... “Não no meu time”, cortou de novo Diego, “Pô, Diego, teu time já tá com Dominguinhos e Bruno. Coloca a Melissa para equilibrar”, insistiu Junior. “Rodney vem para cá, então, Marcinho vai para aí, junto com o Alê e Índio, e Melissa joga de café-com-leite”, “Fechou. Quem fizer três primeiro vence”.

A menina estava excitadíssima, mas igualmente assustada. Nunca tinha jogado com os meninos – e com as meninas não achava graça. Gostava do estilo de Diego, mesmo que um pouco afetado, da velocidade de Breno, da habilidade de Dominguinhos, com aqueles cabelos louros sujos. Breno se aproxima dela. “Fica aqui no meio, tá? Eu vou jogar do seu lado. Se a bola for para você, passa para mim.” Ainda sem conseguir dizer nada, ela assente com a cabeça.

A partida começa com Diego tabelando rapidamente com Dominguinhos e partindo para dentro do campo adversário. Eles estavam no campinho da praça, terra suja que forçava o uso de kichute, sob o risco de pegar bicho no pé. Às vezes, Diego se arriscava para mostrar que não tinha frescura, mas Dominguinhos, filho de dona Zuleica e de seu Domingos, jamais ficava descalço. Breno não tinha tênis sobrando e, virava e mexia, estava coçando a sola.

Assim que entrou na área, Diego tromba com Alê e rola no chão, se enfarinhando de areia, para a careta de Melissa. “É um mascarado”, Alê foi o primeiro a gritar, com as mãos para o alto. Percebendo que não tinha surtido efeito, Diego se levanta, mancando de primeira, depois perfeitamente.
No tiro de meta, Marcinho bate na direção de Junior, na meia esquerda, do lado de Melissa. Ela fica assustada com a velocidade do jogo e é logo ultrapassada pelo adversário, que lança Monstro. Monstro entra na área e só toca na saída de Rodney: 1 a 0. “Assim não dá, ela vai acabar com o nosso time!”, grita Diego, batendo na coxa. Breno se aproxima dela novamente: “Não fica com medo da bola... encara!” “Tá bom”, ela consegue, finalmente, responder alguma coisa.

A bola sai do meio e Diego e Dominguinhos tentam de novo a tabelinha, mas o diabo louro percebe a arrancada de Breno pelo lado direito, e dá um passe na medida para o magricela meter uma bicuda para o gol – Marcinho espalma, a bola volta para o centro da área, Diego dá uma ombrada com violência, derrubando Alê, e chuta para o gol, praticamente vazio. Era o empate. Os ânimos se acalmam um pouco.

Junior e Monstro saem a bola e caem de novo para o lado de Melissa, que, novamente, se afasta da bola. Dessa vez, Breno chega junto e Dominguinhos fica na rebarba. Junior percebe Alê e Índio sozinhos do outro lado do campo, porque Diego fica na banheira, e os lança. Alê dá uma canelada e a bola escapole, mas Índio conserta e marca o segundo. “De novo!”, reclama, Diego, “tamo jogando com um a menos!” “Diego, se você não voltar, a gente vai jogar com dois a menos!”, Breno tenta contrapor. “Eu já fiz um gol, quantos você já fez, Breno?” Breno se crispa, mas Dominguinhos interfere: “Oh! O jogo inda não acabou! Melissa, vai para o gol. Rodney, vem para a linha”. A menina vai sem reclamar.

Com a bola já rolando, Rodney bate para Dominguinhos, que com um drible de corpo tira Monstro da jogada, e de novo lança Breno, que dribla Alê e, em vez de bicar, cruza para Diego, que, da meia-lua improvisada bate de prima para fazer um golaço. Os dois meninos correm para se abraçar e logo chega Dominguinhos e por fim Rodney. Constrangida, Melissa não consegue comemorar direito.
Na saída de bola do meio-campo, Junior passa para Monstro que faz uma embaixadinha e não perde tempo: manda um balãozinho para o gol. Afobada, Melissa tenta pegar a bola no primeiro quique, mas é enganada, e a bola passa exatamente debaixo das suas pernas. Era o fim do jogo.

“Nunca mais, nunca mais jogo com mulé!”, grita Diego ao lado de Dominguinhos e Rodney, enquanto Breno se aproxima outra vez de Melissa. “Você gosta de jogar bola?” “Sim...”, responde, mais encabulada ainda. “Eu venho aqui sempre depois da aula. Se quiser, a gente pode treinar.” A menina, sem entender direito a oferta, tentando descobrir se havia alguma segunda intenção por trás daqueles olhos grandes que quase tapavam todo o rosto franzino, topa.

***

Não era um treino oficial, mas bastante organizado. Breno e Melissa ficavam batendo bola, ela aprendendo a dominar, a marcar, a não ter medo de encontrões. Ele pedia para ela chutar a gol, e tentava defender. Sugeria que ela lhe driblasse, corresse com a bola nos pés, desse estirões e piques. Indicava a melhor maneira de impedir o adversário de progredir, marcação homem a homem e por zona. Embaixadinhas, cabeçadas, matadas no peito, na coxa, calcanhar. Receber um passe longo, fazer lançamentos. Tabelinhas, cobrança de falta, escanteio. Chutes colocados e com força. De bico, de chapa, de peito de pé. “Controle de bola é o mais importante”, repete Breno, “sem controle de bola, você não consegue driblar, não consegue passar, menos ainda chutar”.

Todos os dias, Melissa chegava uma hora mais tarde que o normal para o almoço em casa, suja, cheia de fome e, frequentemente, com alguns hematomas. Ela desistiu por completo das bonecas e pediu uma bola. A mãe sorriu e prometeu uma oficial no aniversário. Assim que ganhou, ficava às tardes no play, chutando e rechutando a bola na parede, se imaginando no estádio, fazendo gols de voleio, de bate-pronto, de sem-pulo – só golaços, com o locutor da TV chamando o seu nome, a torcida entoando músicas em homenagem a ela, com os companheiros a levantando nos ombros, abraçando, fazendo coreografias juntos. Mas era só aparecer Diego, Dominguinhos e os demais garotos, para ela fugir. Ia para a pracinha. Tentava se enturmar com os garotos do outro prédio, mas, depois daquela estreia, ficava sempre na de fora. Jogava sozinha, num canto, tentando bater o seu recorde próprio de embaixadinhas, e, às vezes chegava até a emprestar a bola da seleção, mesmo sem participar dos jogos.

Um dia, no play, foi pega de surpresa por Dominguinhos e ficou estatelada. “É você quem suja as paredes!”, caçoou da menina, que se encolheu mais. Ela pegou a bola e tentou sair, mas no corredor encontrou Diego (“Ih, olha aí quem quer ser jogador”), e, por fim Breno, que a cumprimentou e passou direto. Os meninos tinham ido jogar, mas faltava um quarto jogador. Ficaram chutando a bola, um para o outro, preguiçosamente. O elevador chegou e partiu, e Melissa parada. Continuava a olhar para os três, apertando a maçaneta da porta. Sem conseguir entender de onde veio a voz, ela gritou: “Eu quero jogar”, e se assustou com o som. Os três a observaram, com desprezo, com curiosidade, com alegria. “Não mesmo”, “Você tá treinando?”, “Ela pode jogar comigo”, “Só se for...”, “Beleza por mim”, ela completou.

Breno colocou os chinelos para marcar o próprio gol, dando os quatro passos entre uma trave e outra, conferindo se Diego fazia igual. “Pode sair com vocês”, gritou Diego, tirando onda.

Bola rolando, Breno leva o jogo, dá um pique, mas Dominguinhos consegue travar a passagem. O lourão lança Diego, que para na frente de Melissa. Tenta passar, jogando a bola no meio das pernas dela, que, bloqueia o avanço. O jogo fica logo truncado, marcação forte de ambos os lados sem deixar espaço para o adversário. Na frente de Diego, Melissa finge que iria mandar para Breno, Diego acredita, e ela consegue passar, finalmente. Leva a bola sozinha, Diego atrás, catando coquinho, e dá um toque leve para o golzinho aberto. A bola progride lentamente e, antes de entrar, Dominguinhos se estica num carrinho e impede o gol. “Boa”, Breno grita no fundo, se aproximando dela: “Acho que você descobriu a sua posição, hein...”. Diego sai com a bola e, jogando bem mais seriamente, dá uma pedalada. Melissa parada, focada, sem cair no truque. Diego passa para Dominguinhos que, num lance de pura inteligência, devolve de primeira, na frente, para Diego, que saca o jogo e corre, ao lado de Melissa, ombro a ombro, Breno marcando Dominguinhos. Diego dá um come para dentro, Melissa acompanha, quando ele vai dar um segundo corte, ela se joga num carrinho, pega a bola, mas cai de mau jeito, com o braço sustentando o corpo inteiro. “AI!”, grita desesperadamente. “Ai, ai, ai!”, a menina se vira de bruços, para esconder as lágrimas. Tinha quebrado o braço.

***

Com o braço engessado e recém chegada do colégio, Melissa tenta se adaptar a segurar o garfo com a mão direita, ela que é canhota de mão, e destra de pé. A mãe se aproxima e corta um pedaço da batata corada, para ajudar. O gesso de Melissa está todo assinado com recados e declarações. Toca a campainha e a mãe vai atender. Ela volta com um sorriso no rosto: “Melissa, é para você”. A menina larga o garfo e se levanta. Na porta, estão Diego, Dominguinhos e Breno. “Quer jogar?” “Dá para jogar com o braço quebrado?” “Você tá melhor?”, dizem os três, em sequência. A menina olha para a mãe, que assente com a cabeça, e sai de casa.

segunda-feira, 8 de junho de 2020

RESPIRAÇÃO [ficção]

Porém começam a adentrar as grandes vias. Passos lentos e arrastados. Uns carregam armas, a maioria leva paus, barras de ferro, punhos cerrados, cenhos franzidos. Marcha vagarosa cheia de fúria. Rostos esburacados, peles purulentas, cabelos escamados.

Dentro de um carro que ainda trafega, um homem porta no carona seu cilindro de oxigênio. A máscara não lhe cobre os olhos arregalados ao avistar a onda se aproximar pé ante pé. O motorista consome mais oxigênio que o comum. O respirador apita pelo excesso. Ele acelera em direção à multidão. Consegue avançar, arremessa corpos ao alto. O carro para, entalado sobre tantos sujeitos, a roda gira em falso. A turba tenta gritar, mas falta força. Há apenas murmúrios enraivecidos e zumbidos de dor dos que não morreram no choque.

Ao parar, o veículo é assaltado. Pedra nos vidros, ferros na lataria até sacar o motorista. Arrancam seu respirador e um primeiro veste a máscara e sorri imediatamente: acesso inédito a oxigênio em alta concentração. Efêmero. Um segundo o empurra e rouba a máscara e coloca vazando, mas sorrindo, porque era o que se fazia ao cheirar 02 puro. O motorista, esquecido, se debate na atmosfera pobre em oxigênio. Puxa o ar, mas insuficiente, faz um silvo grave pelas vias aéreas. A máscara é disputada. Cada um que a experimenta pensa que respira pela primeira vez. Tanto os que conseguem quanto os que só atingem o placebo se sentem energizados. Há sempre um êxtase, mas tão curto que a memória não registra.

Alguém ruge, os demais entendem. Chega uma senhora, cadeira de rodas, se aproxima da máscara e alguém a veste. O rosto se acende, lembra de um passado longínquo. Completa três ciclos de inspiração, e vemos as cores voltarem um pouco ao rosto, a vivacidade, aos olhos, um sorriso começa a se formar, até que uma mão puxa a máscara outra vez. Antes de se encaixar, outra mão a rouba e acontece um cabo de guerra com a máscara, que se arrebenta. O motorista caído diz “animais” antes de receber pauladas...