quinta-feira, 21 de março de 2019

É possível quebrar a barreira da nossa imaginação?

Recentemente Daniel Galera criou uma lista de emails, quase retornando aos tempos de COL, e recomeçou a escrever, ato que, segundo ele, tinha sido interrompido há tempos, desde antes do nascimento da sua filha. Na primeira carta, ele enfrenta a temática da paternidade como possibilidade desse hiato, mas coloca outra razão como a grande responsável pelo branco. Segundo ele, o realismo, tipo de literatura que ele pratica, de acordo com o próprio, não conseguiria abarcar o tamanho dos problemas elencados no momento atual. Em outras palavras, ainda seguindo Galera, mas adaptando o seu discurso para as minhas próprias agruras, o realismo não conseguiria descrever, fazer frente, inventar uma nova realidade diante dos hiper-objetos.

O filósofo Timothy Morton criou esse termo (hyperobjects) para descrever "entidades de tão vastas dimensões temporais e espaciais que impedem ideias tradicionais sobre o que uma coisa é, em primeiro lugar" ("entities of such vast temporal and spatial dimensions that they defeat traditional ideas about what a thing is in the first place"). O principal exemplo de Morton e Galera é o mesmo: a crise ecológica, esse evento catastrófico que gente bem mais qualificada que eu costuma chamar de a maior ameaça já enfrentada pelos seres humanos na sua curta passagem por essa bolota apelidada por nós de Terra.

A interrogação do Galera avança por um lado, mas na minha cabeça ela se desdobra rapidamente para outro, repetindo algumas dúvidas já esboçadas, implicitamente, ainda no primeiro parágrafo. A começar, qual seria o papel do realismo? "Descrever, fazer frente, inventar uma nova realidade"? Automaticamente caímos no problema seguinte: como definir o que seria o realismo, hoje, nessas circunstâncias? Seria o reflexo da... realidade? O que estaria, então, no "outro lado"?, o fantástico, o mágico... a ficção propriamente dita?

Parece uma resposta ruim, além de cutucar em uma discussão que não me interessa muito, a das definições, embora haja muita gente boa que já tentou com muito mais habilidade que eu determinar os limites de uns e outros. Talvez essas definições sirvam para se pensar outras coisas, daqui a pouco. Continuemos.

Uma das possibilidades de se definir o realismo, que eu li recentemente não sei bem onde, seria: toda obra que usa dentro do seu universo exclusivamente de recursos e regras que são usuais para o mundo extra-textual. Ou seja, no realismo, a lógica interna da narrativa não quebra a lógica da vida "aqui fora", independentemente das intenções dos personagens. Nada de gigantes ou seres humanos microscópicos, nada de fadas e duendes, de crianças que flutuam e formigas que devoram uma cidade (apesar de esse último exemplo cair mais na categoria improvável que impossível...).

Mesmo de posse de uma definição razoavelmente precisa, é difícil ainda assim nomear uma obra representante de determinada "categoria" porque qualquer definição já nasce, para mim, falha.

Suspeito fortemente que é essa a questão que está assombrando (não exatamente desta maneira) o Galera. A pergunta dele, diante do gigantismo dos problemas que se colocam atualmente, é: o que está acontecendo - para que eu possa escrever alguma coisa? Como "descrever, fazer frente, inventar uma nova realidade" diante da profunda e gigantesca crise ecológica que já, agora, enfrentamos?

Se o cataclismo ambiental é o exemplo principal de um hiper-objeto, ele certamente não é o único. Abrindo um tipo de definição que, suspeito (não li o livro), Morton não tinha como principal (já que ele dá mais foco para a questão ecológica mesmo), podemos pensar em outros. O primeiro que me vêm à cabeça é o crescimento vertiginoso da produção de dados. Como dar conta - como processar tanta informação diariamente? E essa não é uma questão colocada apenas para o escritor.

(Parênteses para dizer que morar no Brasil talvez seja um agravante a esse hiper-objeto, tornando-o ainda mais hiper. Mas se somos um caso excepcional, vamos tentar, ao menos, usar isso a nosso favor e pensar sobre. Fecha parênteses.)

Não é possível, para mim, pessoa física vulgar e banal, tentar entender o que está acontecendo com a velocidade com que as coisas acontecem. Se há cinco ou, vá lá, dez anos, tínhamos uma crise de proporções gigantescas por semana, em média, agora a periodicidade caiu para, sem exageros, diária. Às vezes com mais de um problema assustador por dia, vindo de vários lugares do mundo. Há dias em que é possível elencar diversos escândalos antes ainda mesmo do meio-dia.

Simplesmente não sou capaz de codificar e traduzir para a minha própria linguagem interna - ou seja, entender - o que está acontecendo. Nunca foi possível compreender "tudo", claro, mas parece que o "tudo" agora é ainda muito maior que o "tudo" anterior. Outra volta no parafuso: Como escrever um livro realista diante dessa montanha mais alta que o Everest de dados que são despejados diariamente? Ou ainda: por que escrever um livro realista? Ou ainda mesmo: por que mais um livro - qualquer livro? Por que aumentar a quantidade de dados, que já é avassaladora? Se já se perguntava décadas passadas quem conseguia ler tanta notícia, imagine sobre o que se fala hoje em dia de um livro...

Talvez, nós, em torno dos 40 anos, soframos de um tipo de crise geracional. Nascidos analogicamente, somos bem mais lentos para entender os assuntos atuais que os xóvens. Ou ainda precisamos, para nos sentir confortáveis com temas de importância, de um nível de profundidade que, bem, não existe mais. O grau de argumentação talvez seja mesmo os dos memes e quem tentar fazer uma frase com mais de 280 caracteres pode ser acusado de prolixo - ou velhaco. Ou talvez a única forma de lidar com essa enxurrada diária seja nos escondendo atrás do humor, e assim estaríamos produzindo nossos objetos artísticos por meio de gifs, colagens, frases de efeito, stories, textão... (atenção: isso não é uma crítica a esses novos meios expressivos; ao contrário, é quase uma inveja.)

Se isso não bastasse, ainda há um determinado tipo de massificação de informações que parece, na melhor das hipóteses, ficção. Talvez este fenômeno seja sozinho outro item da lista dos hiper-objetos; é certamente uma segmentação da montoeira de informações. Me refiro às chamadas fakenews. Ou no velho jargão carioca, o famoso caô. Se produz tanta mentira, se divulga tanta enganação, se publica tanta desinformação que não é fácil estabelecer um tipo de solo comum com um interlocutor que vive em outra bolha que não a sua. O que ele considera como "verdade" é bastante distante do que o que você considera. 

Há uma fragmentação profunda do diálogo, só temos grandes monólogos, ou, mais propriamente, gritaria de todos os lados. Quem consegue berrar mais alto acha que venceu por cansaço do adversário, enquanto quem falou menos alto diz que venceu porque não vai entrar numa discussão inócua. Ninguém muda, ninguém quer mudar, todos estamos seguramente inseguros nos lugares que achamos que é nosso, por direito. Mais uma volta no parafuso: Como competir com essa algazarra?

Ou pior: como o realismo, acompanhando a definição ali de cima, como o tipo de produção artística que tenta criar um universo que respeite as regras do mundo aqui fora, escolhe, diante dessa montoeira caótica dos tempos atuais, qual delas é a regra aqui de fora? Um outro exemplo simples: como tentar colocar dentro de um narrativa absolutamente linear, presente em todos os livros menos experimentais, a lógica das redes sociais, ou das múltiplas abas dos navegadores, ou da, enfim, internet?

A coisa fica ainda mais complicada se pensarmos em outros modos de viver que estão sendo descobertos atualmente, nesse mundo em que usamos telefone taiwanês, comemos comida tailandesa, usamos calça feita no Vietnã com tecnologia chinesa de uma empresa japonesa. Isso sem falar em outras ontologias, mesmo, além da Ocidental-moderna-racional. Espíritos entram na lógica de povos tradicionais, por exemplo. Um conto escrito e narrado por um indígena seria considerado realista ou fantástico? 

Mais uma volta do parafuso: Já vi indicações sobre como a ficção científica, e sua liberdade de criar um universo que possa desrespeitar as regras do "mundo aqui fora", criando suas próprias normais e leis, teria chegado muito mais próximo de conseguir, se não retratar, ao menos reverberar o momento atual. Isso, claro, em comparação com o realismo.

Esse gira-gira de parafuso  - que parece em falso - sobre os limites do realismo e a sugestão da busca por outros meios narrativos não é nova, mesmo. Num livro chamado Realism others, um dos seus organizadores, Geoffrey Baker, começa logo na introdução mostrando a querela entre Sartre (a favor) e Adorno (contra) sobre o tema. Sempre se pôde imaginar o realismo como camisa de força da criação, já que os limites, mesmo que bastante amplos, estão já impostos desde a saída. Temos "apenas" o mundo para usar como nossa inspiração. Mas é obviamente uma definição capenga essa. A dúvida que me atinge e, acho, atinge a muita gente agora segue, porém, um caminho por aí. Sem entrar no mérito do que é ou não realismo - porque isso me interessa muito pouco - me pergunto se seria  possível pensar em alguma coisa que quebrasse essa barreira que parece entrevar a nossa imaginação. Ou ainda: Como ir além da... realidade. Como voltar a enxergar horizontes, num mundo em que nos sentimos soterrados do momento em que acordamos até irmos dormir? Como conseguir respirar, acreditar que é possível, sonhar com qualquer coisa que não apenas o que já existe? Ou, para inverter aquela manjada frase lá do Fredric Jameson e torná-la uma questão: é possível imaginar de novo o fim do capitalismo, antes do fim do mundo?

terça-feira, 19 de março de 2019

O niilismo, as fake news e a busca desesperada pela Verdade

(Comecemos com um pouco de história filosófica, mas já já chegaremos na barriga do monstro.)

É difícil mapear todas as possibilidades de interpretação da noção de niilismo na obra de Friedrich Nietzsche. Talvez seja verdadeiramente impossível. Algumas pessoas - outros filósofos de peso - sugeriram alguns agrupamentos. Deleuze foi um deles, na sua monografia sobre o alemão, que diz um pouco mais sobre o autor que sobre o personagem. Para o francês, haveria três tipos de niilismo na obra nietzschiana, todos aparentados, seguindo uma espécie de transformação para se manter igual.

O primeiro tipo teria nascido com a hegemonia do pensamento cristão no mundo e a negação da possibilidade de se "viver" em vida. Isto é: A melhor parte da existência aconteceria apenas após a morte, quando os puros e pios poderiam seguir a eternidade, ao lado de virgens e de anjos. Seria, portanto, necessário negar os prazeres em vida em prol de receber o salvo conduto para o todo e o sempre. Deveríamos nos mortificar em vida para conseguir viver na morte.

O segundo caso é uma adaptação desse processo. Com o advento, ao longo dos séculos, de outras forças que minaram a soberania religiosa, como o capitalismo, a ciência, ou as revoluções do século XVIII, ou, ainda, porque havia uma contradição intrínseca no arcabouço de pensamento religioso que prometia chegar à verdade, mas que só poderia entregar falsas promessas, houve uma transição dos ideais superiores - que antes pertenciam apenas e tão somente a Deus - para outras áreas. Em vez de se negar o hoje para ter um futuro amanhã no paraíso, continuava a se seguir outros grandes modelos sem nunca atingir os objetivos explícitos, tais como uma sociedade igualitária, a solução para todas as doenças do mundo, ou dinheiro suficiente no bolso. De igual, entre os dois niilismos: os valores são sempre importados, transcendentais, impostos.

Naturalmente tal castelo de cartas não aguentaria muito tempo em pé e assim chegamos ao terceiro tipo de niilismo elencado por Deleuze na obra de Nietzsche: na ausência de sentidos superiores universais, ou seja, sem um Deus, um Estado, um chefe, um pai, uma Verdade, enfim, que nos dissesse o que devemos fazer, para onde ir, como nos comportar, ficamos perdidos. Há um grande bater de ombros sobre os assuntos em geral, e sobre desejos e vontades em específico. Um espectro de "tanto faz" que nos assombra e nos impede de nos movimentar, já que todos os caminhos parecem sempre os mesmos - e os primeiros passos parecem constantemente errados.

É claro que não somos, não vivemos em separado do nosso entorno - até mesmo os nossos desejos são compostos (no sentido de estarem em composição) com o que, na falta de nome melhor, chamaríamos "mundo exterior". Mas há algum grau de autonomia, ou deveria haver, nas nossas escolhas. É certo que não sou eu quem me navega, mas também não estamos absolutamente à deriva: podemos estender as velas e segurar o timão em alguma direção. Mas qual?

O capitalismo (e sua forma Estado) conseguiu preencher esse vazio de sentidos-obrigações externas de maneira até bastante satisfatória (para eles) durante um bocado de tempo. A questão do que fazer já vinha dentro de um pacote completo, do nascimento - ou mesmo antes - passando pela infância, juventude, maturidade, até a velhice e a morte. Estude, trabalhe, case, tenha filhos. Faça esportes, seja competitivo, tenha um hobby, se destaque, viaje. Aprenda línguas, programação, seja rebelde, tenha ídolos, se arrependa daquilo que você fez, não daquilo que você não fez.

Não aprendemos a desejar, apenas a reproduzir o que nos falam que devemos fazer. Não à toa a imagem do rebanho é uma das preferidas de Nietzsche: repetimos todo o planejado sem nem mesmo nos colocar em questão se é exatamente isso que nós queremos. (Cabe um comentário rápido: a filosofia sempre se apresenta como libertadora, como abertura de mundo, como uma ferramenta que vai nos mostrar o caminho... e a luz. Entretanto poucos filósofos, proporcionalmente, abordam a questão do desejo, da alegria, da felicidade, da vontade...)

Aqui há uma encruzilhada. Por um lado, o plano capitalista de preencher nossos "buracos" de desejo parece não estar funcionando muito bem - se é que funcionou bem alguma vez. O número de pessoas diagnosticadas com depressão, a ausência generalizada de desejo, só aumenta pelo mundo. Se não aprendemos o que é desejo, se não sabemos como desejar, acabamos atrofiados. Há estudos neurocientíficos que mostram que os caminhos percorridos pelas químicas que controlam o humor do cérebro são bem marcados e dificilmente se modificam sem um esforço consciente sobre isso. Temos que aprender a querer - e querer sempre.

Por outro lado, outras pessoas, não conseguindo nem mesmo permanecer no lugar da depressão, correm atrás de algum sentido maior, alguma resposta - qualquer resposta - para suas principais questões. (A título de curiosidade: sobre essa grandes dúvidas da vida, Nietzsche diria aqui que a pergunta já estaria errada.) Em outras palavras, elas buscam não apenas uma verdade, mas A Verdade pela qual vale viver ou morrer. Não é coincidência o recrudescimento religioso, tanto no Brasil como no mundo nos dias de hoje. Ou o fortalecimento de governos fundamentalistas. Ou até o aparecimento de personagens políticos unidimensionais, em que ou se é a favor ou se é automaticamente contra.

Esses neo-conservadores lutam desesperadamente para manter um fiapo de esperança em algo maior que eles, que daria uma direção para onde eles devessem seguir. São combatentes de primeira linha contra um suposto relativismo em que nós estaríamos decaídos, desde que Nietzsche teria dito que não existe uma Verdade, mas pontos de vista (a frase não foi essa, vocês sabem, mas vale a aproximação). Tal mote talvez representasse muito bem o que Deleuze identificou como o terceiro tipo de niilismo: se não há uma Verdade, tudo é a mesma coisa. Seria uma geografia absolutamente plana, sem qualquer subida ou depressão. Todas as coisas teriam o mesmo valor, se modificando apenas a partir de quem e de onde se olha.

Não é bem assim, claro. Até pode ser que alguém interprete Nietzsche dessa maneira, como um sujeito que liberou o vale-tudo, após "matar" Deus, mas há outra maneira de se pensar a falta completa de parâmetros, uma maneira menos "bater de ombros", e mais propositiva (1). E isso podemos conceder aos neo-conservadores: eles perceberam que não dá para funcionar sem qualquer valor. O problema é que eles, novamente, exigem um valor universal, que seja A Verdade para todas as pessoas, de maneira transcendental, independentemente das próprias vontades de cada uma delas. Ou seja, inibem, novamente, a possibilidade das pessoas exercerem seus desejos, seus quereres.

Os neo-cons foram catar no passado e reformular suas trajetórias para criar uma Verdade toda própria e andando ao largo de outras verdades - muitas vezes em direções contrárias. Se a ciência, por exemplo, é uma ótima criadora de verdades, devemos negar a produção científica, mesmo que se utilize de recursos criados pela própria ciência. Se alguém apresenta uma versão contrária à sua, basta usar o velho recurso ad hominem e xingar o interlocutor, sem se preocupar com rebater argumentos. Devemos inundar as timelines - essas novas ágoras contemporâneas - com informações que reforcem apenas um tipo de discurso, para criar respaldo para a própria Verdade. Se o conhecimento histórico não corrobora seu ponto, muda-se a História e ponto final. Assim, o nazismo vira de esquerda, a terra é plana, as vacinas transmitem doenças.

O meu fenômeno preferido é o da enxurrada - talvez outro nome para manada. Os homens que estão por trás desse movimento têm objetivos mais claros: atingir o poder, ganhar mais dinheiro, manter um tipo de mentalidade aprisionadora. Mas o que explica uma boa parcela da população acreditar que um governo teria, entre outros atos, distribuído mamadeiras com bicos fálicos se não uma vontade imensa de... acreditar? De preencher esse espaço vazio que tinha dentro de si, essa completa ausência, esse desespero, esse sentimento de se sentir perdido, sem saber para onde ir, o que fazer... Ao criar um inimigo claro, você cria automaticamente um objetivo: vencer, ganhar, eliminar. Novamente eles podem voltar a um terreno confortável: o do escravo que obedece às ordens do senhor.

A pergunta fica, contudo: como combater um monstro que se utiliza de todas as técnicas atuais de divulgação de conteúdos, como big data, bots, e, em breve, deep fake, usando apenas da boa vontade? Estamos apenas começando um processo. Se ainda houver futuro, por conta da crise ecológica, saberemos o que vai acontecer.

(1) A quebra da Verdade em verdades, proposta por Nietzsche, não nos leva ao relativismo extremo porque Nietzsche sugere sua famosa transmutação de todos os valores, ou seja, que outros valores, completamente outros, que não possam cair na arapuca da metafísica niilista, assumam o lugar dos valores niilistas da trajetória ocidental.