(Comecemos com um pouco de história filosófica, mas já já chegaremos na barriga do monstro.)
É difícil mapear todas as possibilidades de interpretação da noção de niilismo na obra de Friedrich Nietzsche. Talvez seja verdadeiramente impossível. Algumas pessoas - outros filósofos de peso - sugeriram alguns agrupamentos. Deleuze foi um deles, na sua monografia sobre o alemão, que diz um pouco mais sobre o autor que sobre o personagem. Para o francês, haveria três tipos de niilismo na obra nietzschiana, todos aparentados, seguindo uma espécie de transformação para se manter igual.
O primeiro tipo teria nascido com a hegemonia do pensamento cristão no mundo e a negação da possibilidade de se "viver" em vida. Isto é: A melhor parte da existência aconteceria apenas após a morte, quando os puros e pios poderiam seguir a eternidade, ao lado de virgens e de anjos. Seria, portanto, necessário negar os prazeres em vida em prol de receber o salvo conduto para o todo e o sempre. Deveríamos nos mortificar em vida para conseguir viver na morte.
O segundo caso é uma adaptação desse processo. Com o advento, ao longo dos séculos, de outras forças que minaram a soberania religiosa, como o capitalismo, a ciência, ou as revoluções do século XVIII, ou, ainda, porque havia uma contradição intrínseca no arcabouço de pensamento religioso que prometia chegar à verdade, mas que só poderia entregar falsas promessas, houve uma transição dos ideais superiores - que antes pertenciam apenas e tão somente a Deus - para outras áreas. Em vez de se negar o hoje para ter um futuro amanhã no paraíso, continuava a se seguir outros grandes modelos sem nunca atingir os objetivos explícitos, tais como uma sociedade igualitária, a solução para todas as doenças do mundo, ou dinheiro suficiente no bolso. De igual, entre os dois niilismos: os valores são sempre importados, transcendentais, impostos.
Naturalmente tal castelo de cartas não aguentaria muito tempo em pé e assim chegamos ao terceiro tipo de niilismo elencado por Deleuze na obra de Nietzsche: na ausência de sentidos superiores universais, ou seja, sem um Deus, um Estado, um chefe, um pai, uma Verdade, enfim, que nos dissesse o que devemos fazer, para onde ir, como nos comportar, ficamos perdidos. Há um grande bater de ombros sobre os assuntos em geral, e sobre desejos e vontades em específico. Um espectro de "tanto faz" que nos assombra e nos impede de nos movimentar, já que todos os caminhos parecem sempre os mesmos - e os primeiros passos parecem constantemente errados.
É claro que não somos, não vivemos em separado do nosso entorno - até mesmo os nossos desejos são compostos (no sentido de estarem em composição) com o que, na falta de nome melhor, chamaríamos "mundo exterior". Mas há algum grau de autonomia, ou deveria haver, nas nossas escolhas. É certo que não sou eu quem me navega, mas também não estamos absolutamente à deriva: podemos estender as velas e segurar o timão em alguma direção. Mas qual?
O capitalismo (e sua forma Estado) conseguiu preencher esse vazio de sentidos-obrigações externas de maneira até bastante satisfatória (para eles) durante um bocado de tempo. A questão do que fazer já vinha dentro de um pacote completo, do nascimento - ou mesmo antes - passando pela infância, juventude, maturidade, até a velhice e a morte. Estude, trabalhe, case, tenha filhos. Faça esportes, seja competitivo, tenha um hobby, se destaque, viaje. Aprenda línguas, programação, seja rebelde, tenha ídolos, se arrependa daquilo que você fez, não daquilo que você não fez.
Não aprendemos a desejar, apenas a reproduzir o que nos falam que devemos fazer. Não à toa a imagem do rebanho é uma das preferidas de Nietzsche: repetimos todo o planejado sem nem mesmo nos colocar em questão se é exatamente isso que nós queremos. (Cabe um comentário rápido: a filosofia sempre se apresenta como libertadora, como abertura de mundo, como uma ferramenta que vai nos mostrar o caminho... e a luz. Entretanto poucos filósofos, proporcionalmente, abordam a questão do desejo, da alegria, da felicidade, da vontade...)
Aqui há uma encruzilhada. Por um lado, o plano capitalista de preencher nossos "buracos" de desejo parece não estar funcionando muito bem - se é que funcionou bem alguma vez. O número de pessoas diagnosticadas com depressão, a ausência generalizada de desejo, só aumenta pelo mundo. Se não aprendemos o que é desejo, se não sabemos como desejar, acabamos atrofiados. Há estudos neurocientíficos que mostram que os caminhos percorridos pelas químicas que controlam o humor do cérebro são bem marcados e dificilmente se modificam sem um esforço consciente sobre isso. Temos que aprender a querer - e querer sempre.
Por outro lado, outras pessoas, não conseguindo nem mesmo permanecer no lugar da depressão, correm atrás de algum sentido maior, alguma resposta - qualquer resposta - para suas principais questões. (A título de curiosidade: sobre essa grandes dúvidas da vida, Nietzsche diria aqui que a pergunta já estaria errada.) Em outras palavras, elas buscam não apenas uma verdade, mas A Verdade pela qual vale viver ou morrer. Não é coincidência o recrudescimento religioso, tanto no Brasil como no mundo nos dias de hoje. Ou o fortalecimento de governos fundamentalistas. Ou até o aparecimento de personagens políticos unidimensionais, em que ou se é a favor ou se é automaticamente contra.
Esses neo-conservadores lutam desesperadamente para manter um fiapo de esperança em algo maior que eles, que daria uma direção para onde eles devessem seguir. São combatentes de primeira linha contra um suposto relativismo em que nós estaríamos decaídos, desde que Nietzsche teria dito que não existe uma Verdade, mas pontos de vista (a frase não foi essa, vocês sabem, mas vale a aproximação). Tal mote talvez representasse muito bem o que Deleuze identificou como o terceiro tipo de niilismo: se não há uma Verdade, tudo é a mesma coisa. Seria uma geografia absolutamente plana, sem qualquer subida ou depressão. Todas as coisas teriam o mesmo valor, se modificando apenas a partir de quem e de onde se olha.
Não é bem assim, claro. Até pode ser que alguém interprete Nietzsche dessa maneira, como um sujeito que liberou o vale-tudo, após "matar" Deus, mas há outra maneira de se pensar a falta completa de parâmetros, uma maneira menos "bater de ombros", e mais propositiva (1). E isso podemos conceder aos neo-conservadores: eles perceberam que não dá para funcionar sem qualquer valor. O problema é que eles, novamente, exigem um valor universal, que seja A Verdade para todas as pessoas, de maneira transcendental, independentemente das próprias vontades de cada uma delas. Ou seja, inibem, novamente, a possibilidade das pessoas exercerem seus desejos, seus quereres.
Os neo-cons foram catar no passado e reformular suas trajetórias para criar uma Verdade toda própria e andando ao largo de outras verdades - muitas vezes em direções contrárias. Se a ciência, por exemplo, é uma ótima criadora de verdades, devemos negar a produção científica, mesmo que se utilize de recursos criados pela própria ciência. Se alguém apresenta uma versão contrária à sua, basta usar o velho recurso ad hominem e xingar o interlocutor, sem se preocupar com rebater argumentos. Devemos inundar as timelines - essas novas ágoras contemporâneas - com informações que reforcem apenas um tipo de discurso, para criar respaldo para a própria Verdade. Se o conhecimento histórico não corrobora seu ponto, muda-se a História e ponto final. Assim, o nazismo vira de esquerda, a terra é plana, as vacinas transmitem doenças.
O meu fenômeno preferido é o da enxurrada - talvez outro nome para manada. Os homens que estão por trás desse movimento têm objetivos mais claros: atingir o poder, ganhar mais dinheiro, manter um tipo de mentalidade aprisionadora. Mas o que explica uma boa parcela da população acreditar que um governo teria, entre outros atos, distribuído mamadeiras com bicos fálicos se não uma vontade imensa de... acreditar? De preencher esse espaço vazio que tinha dentro de si, essa completa ausência, esse desespero, esse sentimento de se sentir perdido, sem saber para onde ir, o que fazer... Ao criar um inimigo claro, você cria automaticamente um objetivo: vencer, ganhar, eliminar. Novamente eles podem voltar a um terreno confortável: o do escravo que obedece às ordens do senhor.
A pergunta fica, contudo: como combater um monstro que se utiliza de todas as técnicas atuais de divulgação de conteúdos, como big data, bots, e, em breve, deep fake, usando apenas da boa vontade? Estamos apenas começando um processo. Se ainda houver futuro, por conta da crise ecológica, saberemos o que vai acontecer.
(1) A quebra da Verdade em verdades, proposta por Nietzsche, não nos leva ao relativismo extremo porque Nietzsche sugere sua famosa transmutação de todos os valores, ou seja, que outros valores, completamente outros, que não possam cair na arapuca da metafísica niilista, assumam o lugar dos valores niilistas da trajetória ocidental.
É difícil mapear todas as possibilidades de interpretação da noção de niilismo na obra de Friedrich Nietzsche. Talvez seja verdadeiramente impossível. Algumas pessoas - outros filósofos de peso - sugeriram alguns agrupamentos. Deleuze foi um deles, na sua monografia sobre o alemão, que diz um pouco mais sobre o autor que sobre o personagem. Para o francês, haveria três tipos de niilismo na obra nietzschiana, todos aparentados, seguindo uma espécie de transformação para se manter igual.
O primeiro tipo teria nascido com a hegemonia do pensamento cristão no mundo e a negação da possibilidade de se "viver" em vida. Isto é: A melhor parte da existência aconteceria apenas após a morte, quando os puros e pios poderiam seguir a eternidade, ao lado de virgens e de anjos. Seria, portanto, necessário negar os prazeres em vida em prol de receber o salvo conduto para o todo e o sempre. Deveríamos nos mortificar em vida para conseguir viver na morte.
O segundo caso é uma adaptação desse processo. Com o advento, ao longo dos séculos, de outras forças que minaram a soberania religiosa, como o capitalismo, a ciência, ou as revoluções do século XVIII, ou, ainda, porque havia uma contradição intrínseca no arcabouço de pensamento religioso que prometia chegar à verdade, mas que só poderia entregar falsas promessas, houve uma transição dos ideais superiores - que antes pertenciam apenas e tão somente a Deus - para outras áreas. Em vez de se negar o hoje para ter um futuro amanhã no paraíso, continuava a se seguir outros grandes modelos sem nunca atingir os objetivos explícitos, tais como uma sociedade igualitária, a solução para todas as doenças do mundo, ou dinheiro suficiente no bolso. De igual, entre os dois niilismos: os valores são sempre importados, transcendentais, impostos.
Naturalmente tal castelo de cartas não aguentaria muito tempo em pé e assim chegamos ao terceiro tipo de niilismo elencado por Deleuze na obra de Nietzsche: na ausência de sentidos superiores universais, ou seja, sem um Deus, um Estado, um chefe, um pai, uma Verdade, enfim, que nos dissesse o que devemos fazer, para onde ir, como nos comportar, ficamos perdidos. Há um grande bater de ombros sobre os assuntos em geral, e sobre desejos e vontades em específico. Um espectro de "tanto faz" que nos assombra e nos impede de nos movimentar, já que todos os caminhos parecem sempre os mesmos - e os primeiros passos parecem constantemente errados.
É claro que não somos, não vivemos em separado do nosso entorno - até mesmo os nossos desejos são compostos (no sentido de estarem em composição) com o que, na falta de nome melhor, chamaríamos "mundo exterior". Mas há algum grau de autonomia, ou deveria haver, nas nossas escolhas. É certo que não sou eu quem me navega, mas também não estamos absolutamente à deriva: podemos estender as velas e segurar o timão em alguma direção. Mas qual?
O capitalismo (e sua forma Estado) conseguiu preencher esse vazio de sentidos-obrigações externas de maneira até bastante satisfatória (para eles) durante um bocado de tempo. A questão do que fazer já vinha dentro de um pacote completo, do nascimento - ou mesmo antes - passando pela infância, juventude, maturidade, até a velhice e a morte. Estude, trabalhe, case, tenha filhos. Faça esportes, seja competitivo, tenha um hobby, se destaque, viaje. Aprenda línguas, programação, seja rebelde, tenha ídolos, se arrependa daquilo que você fez, não daquilo que você não fez.
Não aprendemos a desejar, apenas a reproduzir o que nos falam que devemos fazer. Não à toa a imagem do rebanho é uma das preferidas de Nietzsche: repetimos todo o planejado sem nem mesmo nos colocar em questão se é exatamente isso que nós queremos. (Cabe um comentário rápido: a filosofia sempre se apresenta como libertadora, como abertura de mundo, como uma ferramenta que vai nos mostrar o caminho... e a luz. Entretanto poucos filósofos, proporcionalmente, abordam a questão do desejo, da alegria, da felicidade, da vontade...)
Aqui há uma encruzilhada. Por um lado, o plano capitalista de preencher nossos "buracos" de desejo parece não estar funcionando muito bem - se é que funcionou bem alguma vez. O número de pessoas diagnosticadas com depressão, a ausência generalizada de desejo, só aumenta pelo mundo. Se não aprendemos o que é desejo, se não sabemos como desejar, acabamos atrofiados. Há estudos neurocientíficos que mostram que os caminhos percorridos pelas químicas que controlam o humor do cérebro são bem marcados e dificilmente se modificam sem um esforço consciente sobre isso. Temos que aprender a querer - e querer sempre.
Por outro lado, outras pessoas, não conseguindo nem mesmo permanecer no lugar da depressão, correm atrás de algum sentido maior, alguma resposta - qualquer resposta - para suas principais questões. (A título de curiosidade: sobre essa grandes dúvidas da vida, Nietzsche diria aqui que a pergunta já estaria errada.) Em outras palavras, elas buscam não apenas uma verdade, mas A Verdade pela qual vale viver ou morrer. Não é coincidência o recrudescimento religioso, tanto no Brasil como no mundo nos dias de hoje. Ou o fortalecimento de governos fundamentalistas. Ou até o aparecimento de personagens políticos unidimensionais, em que ou se é a favor ou se é automaticamente contra.
Esses neo-conservadores lutam desesperadamente para manter um fiapo de esperança em algo maior que eles, que daria uma direção para onde eles devessem seguir. São combatentes de primeira linha contra um suposto relativismo em que nós estaríamos decaídos, desde que Nietzsche teria dito que não existe uma Verdade, mas pontos de vista (a frase não foi essa, vocês sabem, mas vale a aproximação). Tal mote talvez representasse muito bem o que Deleuze identificou como o terceiro tipo de niilismo: se não há uma Verdade, tudo é a mesma coisa. Seria uma geografia absolutamente plana, sem qualquer subida ou depressão. Todas as coisas teriam o mesmo valor, se modificando apenas a partir de quem e de onde se olha.
Não é bem assim, claro. Até pode ser que alguém interprete Nietzsche dessa maneira, como um sujeito que liberou o vale-tudo, após "matar" Deus, mas há outra maneira de se pensar a falta completa de parâmetros, uma maneira menos "bater de ombros", e mais propositiva (1). E isso podemos conceder aos neo-conservadores: eles perceberam que não dá para funcionar sem qualquer valor. O problema é que eles, novamente, exigem um valor universal, que seja A Verdade para todas as pessoas, de maneira transcendental, independentemente das próprias vontades de cada uma delas. Ou seja, inibem, novamente, a possibilidade das pessoas exercerem seus desejos, seus quereres.
Os neo-cons foram catar no passado e reformular suas trajetórias para criar uma Verdade toda própria e andando ao largo de outras verdades - muitas vezes em direções contrárias. Se a ciência, por exemplo, é uma ótima criadora de verdades, devemos negar a produção científica, mesmo que se utilize de recursos criados pela própria ciência. Se alguém apresenta uma versão contrária à sua, basta usar o velho recurso ad hominem e xingar o interlocutor, sem se preocupar com rebater argumentos. Devemos inundar as timelines - essas novas ágoras contemporâneas - com informações que reforcem apenas um tipo de discurso, para criar respaldo para a própria Verdade. Se o conhecimento histórico não corrobora seu ponto, muda-se a História e ponto final. Assim, o nazismo vira de esquerda, a terra é plana, as vacinas transmitem doenças.
O meu fenômeno preferido é o da enxurrada - talvez outro nome para manada. Os homens que estão por trás desse movimento têm objetivos mais claros: atingir o poder, ganhar mais dinheiro, manter um tipo de mentalidade aprisionadora. Mas o que explica uma boa parcela da população acreditar que um governo teria, entre outros atos, distribuído mamadeiras com bicos fálicos se não uma vontade imensa de... acreditar? De preencher esse espaço vazio que tinha dentro de si, essa completa ausência, esse desespero, esse sentimento de se sentir perdido, sem saber para onde ir, o que fazer... Ao criar um inimigo claro, você cria automaticamente um objetivo: vencer, ganhar, eliminar. Novamente eles podem voltar a um terreno confortável: o do escravo que obedece às ordens do senhor.
A pergunta fica, contudo: como combater um monstro que se utiliza de todas as técnicas atuais de divulgação de conteúdos, como big data, bots, e, em breve, deep fake, usando apenas da boa vontade? Estamos apenas começando um processo. Se ainda houver futuro, por conta da crise ecológica, saberemos o que vai acontecer.
(1) A quebra da Verdade em verdades, proposta por Nietzsche, não nos leva ao relativismo extremo porque Nietzsche sugere sua famosa transmutação de todos os valores, ou seja, que outros valores, completamente outros, que não possam cair na arapuca da metafísica niilista, assumam o lugar dos valores niilistas da trajetória ocidental.
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