sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

A rejeição de Pelé

É bastante conhecido o hábito do Edson se referir a Pelé na terceira pessoa do singular, como se fossem dois sujeitos separados, independentes. Mas um detalhe que surgiu em diversos lugares, agora que o rei morreu, sublinha esse comportamento bifurcado de uma forma que vai além do folclórico recurso do distanciamento: Edson não gostava do apelido Pelé.

Pelé, em 1960

Como explicou inúmeras vezes, esse seu segundo nome veio de um amigo goleiro do pai Dondinho, (que também era jogador de futebol) e que se chamava Bilé. Quando muito pequeno, Edson -- mais conhecido pela família como Dico -- gostava de se aventurar também agarrando e, ao fazer uma defesa mais difícil, evocava Bilé, como se fosse o próprio goleiro do Vasco de São Lourenço (MG) (ex-time de Dondinho, que havia se mudado recentemente para Bauru), igual a qualquer garoto empolgado com um ídolo. 

Os garotos que jogavam com Edson começaram a chamá-lo do que eles entendiam que era o nome, Pilé, e logo o termo se metamorfoseou em Pelé. Segundo os relatos, Edson não gostou nada desse apelido dado pelos amigos, e foi exatamente por isso que Pelé nasceu. Qualquer garoto sabe que reclamar de um nome recebido é a certeza de que você será chamado dessa forma.

Essa implicância com o apelido poderia ser um questão infantil que teria sido superada com o passar do tempo. Pelé era já Pelé quando apareceu no futebol, quando foi chamado de rei por Nelson Rodrigues, quando ganhou a primeira Copa do Mundo com 17 anos, e nunca mais deixou de ser. Virou um nome maior que o próprio personagem, a maior referência de uma possível identidade brasileira, um patrimônio do futebol, um adjetivo. Michael Jordan é o Pelé do basquete, Muhammad Ali, o Pelé do boxe. Nas entrevistas em que foi perguntado porque se referia ao Pelé na terceira pessoa, justificava que se o Edson era um ser humano falho, como qualquer outro, o Pelé era um imortal incapaz do erro.

Havia contudo uma implicância com esse segundo nome que perpassou toda a sua vida. Em uma entrevista em 2006 para o jornal Bild, da Alemanha, o Edson já com 65 anos ressaltou o quanto desprezava o apelido, por parecer infantil e bobo. Gostava mesmo de Edson, que seu pai pegou do empresário e inventor Thomas Edison. Mas ele já não podia fazer muito. Pelé era uma figura incomparavelmente maior que o Edson Arantes do Nascimento. Maior talvez até que Thomas Edison.

O que me chamou a atenção foi esse movimento de aceitação do destino, mesmo que fosse contra a sua vontade mais externa. Embora não gostasse do nome, era assim que era chamado, foi desse jeito que ficou internacionalmente famoso. Não havia espaço para lutar contra, ele só poderia se resignar, na pior das hipóteses. Ou criar um personagem além do Edson.

O chocante para mim -- na minha infinita capacidade de me surpreender com o óbvio -- foi perceber que nem as grandes estrelas, as figuras mais incontestes, ficam inteiramente satisfeitas com o que o destino lhe reserva. É preciso fazer uma torção entre expectativa e realidade, entre a autoimagem e como se é visto pelos outros -- isso para ficar no exemplo do Pelé. 

Essa história me lembrou outros casos não exatamente iguais, mas em que alguns artistas disseram, muitas vezes, quererem ser reconhecidos em outro campo, e não naquele em que foram projetados. Luis Fernando Verissimo e Woody Allen, para ficar em dois exemplos próximos, sempre afirmaram que, quando novos, sonhavam em ser músicos. Tiveram que se contentar em ser escritor (e desenhista, quadrinista, roteirista) e cineasta (e escritor e...). Quando já reconhecidos em suas profissões, até integraram bandas de jazz, mas nunca foram especialmente associados a esse talento. Ou o caminho contrário do Caetano, que queria ser cineasta, mas foi sendo empurrado para a música e deu no que deu. Os exemplos são vários. Não sou eu quem me navega etc. e tal, como diz a música do Paulinho da Viola, marceneiro nas horas vagas.

O episódio Edson x Pelé também me lembrou uma frase da atriz Rita Hayworth, famosa pelo personagem título em Gilda, noir de 1946 dirigido por Charles Vidor, que a projetou como sex symbol: "Os homens sempre vão para a cama sonhando com Gilda e se decepcionam ao acordar ao lado de Rita". Há, sempre, um descompasso entre a imagem pública e a privada. Rita, como Edson, era uma mortal cheia de defeitos; Gilda, não.

Mesmo que Edson não quisesse ser Pelé, ele estava fadado a ser. Poderia desistir desse caminho, ficar recluso e abandonar o futebol, mas sua fome de bola aparentemente era maior que esse entrevero. Porque, suspeito, os desejos, esses atravessamentos que nos empurram adiante, sempre nos dão a coragem para aceitar os obstáculos que aparecem no caminho. 

Além disso, só quando aceitamos todos os nossos lados, não no sentido de nos imobilizar dentro de uma identidade fixa e rabugenta que poderia resvalar num conservadorismo, mas sabendo que somos feitos de luz e sombras, que temos ângulos de que não gostamos, ou que não temos muita gerência sobre o nosso destino e nossas decisões são apenas interferências relativamente pequenas no processo geral, podemos, finalmente, nos tornar quem nós somos.

Essa conhecida frase do Nietzsche ("como tornar-se quem tu és"), que aparece em vários dos seus livros, e é o subtítulo de sua autobiografia, Ecce homo, sempre me soou estranha, por pura incapacidade minha de interpretação. Mesmo que eu suspeitasse fortemente que o autor não tivesse essa intenção, tinha uma abertura grande para ser lida como um manual de autoajuda. O tornar-se seria um movimento secundário, depois de se ter a ideia de quem nós somos. Idealizaríamos um modo de ser no mundo e deveríamos nos moldar para atingir esse objetivo, como se a conclusão da vida fosse um objeto único da nossa vontade mais consciente. Se isso fosse verdade, Edson jamais seria Pelé, Rita jamais Gilda.

Na verdade, e esse episódio do Pelé x Edson me ajudou a entender isso, o tornar-se é, sim, um movimento secundário, mas um movimento de aceitação daquilo que já se é. Não uma aceitação passiva, que demonstrasse nossa fraqueza diante do mundo que nos envolve, mas um posicionamento ativo, de se enxergar por inteiro, com todas as nossas nuances.

Mesmo que quando olhemos para esse ser que já somos, não gostemos de uns cantos obscuros, precisamos nos reconhecer neles, aceitarmo-nos. Porque sem reconhecer nossos defeitos, eles viverão escondidos e aparecerão todas as vezes que a guarda estiver baixa, todas as vezes que a luz da consciência der uma piscadela. 

Isso também não quer dizer que somos condenados a ser o que já se é. Já se é agora, mas não quer dizer que seremos isso eternamente. Nada é fixo, e tudo pode ser, de alguma forma, modificado. Talvez não por inteiro, mas alguma coisa é possível influir, certamente. A aceitação é só um primeiro passo para conseguirmos nos enxergarmos. Nos reconhecer. Só assim, talvez, só talvez, teremos a possibilidade de influir nesse lado menos "bonito". 

Pelé era incontornável para Edson, caso quisesse seguir no futebol. Edson precisava se tornar também Pelé. Pelé não deixava de ser Edson, em alguns casos. O que me lembra outro gigante, dessa vez argentino (não, não é Maradona), mas de um campo correlato, a literatura: "Ao outro, a Borges, é que sucedem as coisas", escreve Jorge Luis Borges no sugestivo textinho "Borges e eu", "Seria exagerado afirmar que nossa relação é hostil; eu vivo, eu me deixo viver, para que Borges possa tramar sua literatura, e essa literatura me justifica".