quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

Niilismo em tempos de airfryer

Aproveitando o período natalino e os remédios contra a gripe que me atacou, que me deixaram um pouco grogue, vou cometer uma pensata sobre dois dos temas que me acompanham nos últimos tempos: niilismo e airfryer.

Ganhamos recentemente uma dessas panelas que fritam com o ar, sonho de consumo de 9 em cada 10 habitantes da classe média escolarizada em comida via programas televisivos, jovens que já cruzaram o cabo da boa esperança da metade dos 30, ou já aportaram e ultrapassaram os 40. Uma galera que já começa a se preocupar com a saúde, além do sabor (clássico dos 30) e do corpo (dos 20 em diante).

Reza a lenda que não é preciso usar óleo para fazer batatas fritas dignas das publicidades dos mais gordurosos fastfoods internacionais. Mas não apenas: todo o tipo de fritura seria feita sem qualquer gordura, usando uma tecnologia que eu não tenho a menor ideia de como funciona e que não me surpreenderá caso, em alguns anos, descobrirmos que causa câncer, assim como o micro-ondas e o telefone celular. O que leva a crer que vamos sair das doenças coronárias para algo, bem, diferente.

Pois bem: descobrimos que não. Sem óleo a batata não fica frita que nem a da foto da embalagem. O amido sai e ela fica esbranquiçada e um pouco ainda crua, quando não ligeiramente dura. Poucas tinham a crocância junto à manemolência, dignas dos grandes pratos. O mesmo aconteceu com os nossos bolinhos de lentilha: claros, pouco crocantes, pouco firmes.

Foi então que chegou o dilema da vida que causou todo esse texto: usar ou não usar óleo para dar mais consistência, sabor e crocância para os alimentos?

Percebemos que podemos entender o nosso mundo atual a partir da comida, mais especificamente do uso da airfryer.

Num momento histórico em que certas pessoas se orgulham das suas escolhas alimentares mais toscas, principalmente por serem toscas, numa busca por uma autenticidade mais autêntica, como se fosse um graal, um porto final, uma meta de vida, um alvo a se atingir, e nada mais importante durante o caminho - ao contrário, quem estiver pelo caminho, em dúvida se deve ou não segui-lo, será considerado um pária, bem, neste momento, a airfryer já nasce como uma frescura. São os fundamentalistas da gordura ou, para usar a nomenclatura nietzschiana, os niilistas passivos.

São aqueles que não querem qualquer tipo de modificação, não podem abalar a estrutura do edifício metafísico que sustenta o peso das suas vidas. Portanto, não adianta, não há frituras sem ser com frigideiras e com toneladas de óleo - de preferência com imersão, na banha de vários dias. Qualquer movimento para fora desse tipo de catequese é visto como um tipo de fraqueza, como maricagem, como heresia.

Não adianta argumentar com esses tipos, dizendo que o fundamentalismo está nos que querem apenas uma forma de comer as coisas, sem qualquer tipo de flexibilidade, porque eles defendem que "sempre" foi assim, que eles chegaram "primeiro" e estão apenas seguindo a tradição. É extremamente difícil qualquer diálogo com o tipo.

Há o fundamentalismo do lado extremamente oposto, e, de certa forma, muito parecido: aqueles que não podem cogitar a possibilidade de usar qualquer tipo de óleo na airfryer, sacrificando o resultado final do sabor em prol de um bem "superior". São os praticantes do ideal ascético, que geralmente se vangloriam de conseguir passar por mais provações que você, e, novamente, te chamam fraco por "cair em tentação". A "verdade" está sempre além ou aquém. Há uma mortificação do corpo em prol da saúde, ou melhor, de uma saúde. Os desejos mais primitivos são negados por conta de um ideal que jamais será atingido na sua completude.

Numa terceira ponta deste triângulo niilista, há os que não se importam muito com essas coisas - nem com nada. Comida para eles é apenas uma obrigação, nunca um prazer, jamais uma alegria. É um fardo que se tem que passar e saber como se faz a comida não está mesmo nos planos de curto, médio quiçá nos de longo prazo. Fritar com óleo velho ou sem óleo na airfryer, tanto faz, o que eles querem é a comida no prato, pronta. Provavelmente nem sabem a diferença de uma coisa para a outra e se perguntarem como aquela comida chegou ali na frente deles vão citar o supermercado, apenas, ou um app de entregas.

No meio do caminho ficam aqueles testando a airfryer, como quem experimenta a vida. Podemos colocar um pouco de óleo? O quão pouco? Será saudável? Devemos colocar óleo em todas as faces do bolinho? Os que acham que não há qualquer resposta definitiva sobre as coisas e que vão aos poucos tentando descobrir os caminhos, errando e aprendendo. Sabem que há vezes que nada substitui um boa fritura clássica, deep fry. Se for de algo empanado, ainda melhor, tipo queijo provolone - melhor petisco de boteco. E sabem que isso não pode ser uma comida diária, nem uma defesa de qualquer superioridade moral. Que há momentos para a salada, também, em grandes proporções, que limpam os cantinhos e rejuvenescem as células. E, principalmente, que é na diferença entre as comidas que o corpo fica mais fortalecido.

domingo, 22 de dezembro de 2019

"Ode ao homem", de Sófocles

{CORO}Muitos os terrores e nenhum {EST. 1}
mais terrível do que o homem.
Ele além do mar grisalho
vai ao vento tempestuoso
335
através dos vagalhões
fragorosos e extenua
a suprema dos Deuses
Terra imortal infatigável
volvendo ano após ano
340
o arado com o equino.
Ele circunda e captura {ANT. 1}
o bando de aves leves,
a grei de feras agrestes
e a salina fauna marinha
345
nas dobras urdidas da rede,
prudente varão: domina
com perícia a selvagem
fera montesa, mantém
350
crinudo equino sob jugo
e indômito touro montês.
Aprendeu a palavra, {EST. 2]
a inteligência volátil,
355
as urbanas maneiras,
a fuga da geada inóspita
do céu e das intempéries,
multívio, ínvio a nenhum
360
porvir. Somente de Hades
não saberá fugir,
dos males impossíveis
descobriu a fuga.
Por hábil perícia de arte {ANT. 2}
além da expectativa
365
vai ora mal, ora bem;
venerando leis da terra
e jurada justiça dos Deuses,
alto na urbe; sem urbe
370
se por audácia não bem.
Não seja meu conviva
nem pense igual a mim
375
quem age assim!


Tradução de Jaa Torrano
segundo estabelecimento de texto de H. Lloyd-Jones e N. G. Wilson (OCT). Daqui.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

Portfólio

O Globo
Cobertura de cinema
https://oglobo.globo.com/cultura/filmes/acusados-de-machismo-em-debate-claudio-assis-lirio-ferreira-dizem-sofrer-censura-17403739
https://oglobo.globo.com/cultura/filmes/filme-que-horas-ela-volta-motiva-reflexao-sobre-como-cinema-atual-retrata-busca-por-cidadania-17349061

Cobertura Rock in Rio
https://oglobo.globo.com/cultura/rock-in-rio/taticas-para-fugir-da-lama-do-caos-no-trajeto-para-rock-in-rio-17501419

Texto sobre H. P. Lovecraft
https://oglobo.globo.com/cultura/livros/ignorada-por-decadas-obra-de-hp-lovecraft-renasce-com-novas-edicoes-no-brasil-14955626

Texto sobre M. Heidegger
https://oglobo.globo.com/cultura/livros/publicacao-dos-diarios-de-heidegger-aprofunda-debate-sobre-sua-ligacao-com-nazismo-14277786

Entrevista com Tim Burton
https://oglobo.globo.com/cultura/tim-burton-fala-das-inspiracoes-para-filme-sombras-da-noite-5268917

Evento sobre Jorge Amado na British Library
https://blogs.oglobo.globo.com/prosa/post/jorge-amado-para-europeus-de-ronaldo-pelli-449871.html

Texto sobre livraria Bernard Quaritch, de Londres
https://www.quaritch.com/wp-content/uploads/2014/05/o-globo.pdf

Colunista do “Segundo Caderno” – O Globo

Coluna sobre Banksy
https://oglobo.globo.com/cultura/artista-grafiteiro-5776871

Coluna sobre Damon Albarn, músico inglês
https://oglobo.globo.com/cultura/musico-maquinista-6046560

Coluna sobre Olimpíadas
https://oglobo.globo.com/cultura/diante-do-inevitavel-5637286
Coluna sobre Zadie Smith
https://oglobo.globo.com/cultura/coincidencias-5910030


G1 (http://g1.globo.com/)

Entrevista com atores de “Harry Potter”
http://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2012/03/g1-visitou-estudio-onde-foi-filmada-saga-harry-potter-saiba-como-e.html

Crítica de filme dirigido por Charlie Kaufman
http://g1.globo.com/Noticias/Cinema/0,,MUL1089268-7086,00-DEPOIS+DE+GANHAR+O+OSCAR+ROTEIRISTA+CHARLIE+KAUFMAN+ESTREIA+NA+DIRECAO.html

Entrevista com Rodrigo Santoro
http://g1.globo.com/Noticias/Cinema/0,,MUL784592-7086,00-RODRIGO+SANTORO+FALA+A+IMPRENSA+SOBRE+O+SEU+NOVO+FILME+LEONERA.html

Entrevista com Pilar del Río sobre filme sobre José Saramago.
http://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2010/09/jose-e-pilar-mostra-intimidade-e-detalhes-da-vida-do-casal-saramago.html

Cobertura do acidente com voo 447, da Air France
http://g1.globo.com/Noticias/Mundo/0,,MUL1182924-5602,00-MINISTRO+DA+FRANCA+DIZ+QUE+DOR+DA+PERDA+NAO+TEM+NACIONALIDADE.html

Crítica de disco do Gnarls Barkley
http://g1.globo.com/Noticias/Musica/0,,MUL362463-7085,00-EM+NOVO+TRABALHO+GNARLS+BARKLEY+FAZ+ST+ELSEWHERE+II+SEM+O+CHARME+DO+PRIMEIR.html

Crítica de filme de Tim Burton
http://g1.globo.com/Noticias/Cinema/0,,MUL287556-7086,00-SWEENEY+TODD+MOSTRA+O+MUSICAL+A+LA+TIM+BURTON.html


BBC, Folha, Piauí e outros

BBC
https://www.bbc.com/portuguese/geral-37236480

Texto sobre AI-5, para a revista “Pessoa”
https://www.revistapessoa.com/artigo/2683/imprevisao

Texto para a revista “Piauí”
https://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-pioneiro-de-bangu/

Texto para a “Index on Censorship”, revista inglesa sobre liberdade de imprensa, sobre os protestos de 2013
https://journals.sagepub.com/doi/pdf/10.1177/0306422013501769

Texto sobre Hélio Eichbauer, na revista “Continente” (junto a Mariana Filgueiras)
https://www.revistacontinente.com.br/edicoes/207/helio-eichbauer

Texto para a “Folha de S. Paulo”, sobre James Joyce
https://livrosetc.blogfolha.uol.com.br/2012/06/20/retrato-de-dublin-quando-bloomsday/

Texto para UOL
https://cinema.uol.com.br/noticias/redacao/2013/08/05/no-rio-e-mais-gostoso-diz-carlos-saldanha-sobre-escolha-da-cidade-em-filme-internacional.htm

Tradução publicada na “Folha de S. Paulo”
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/847611-garcia-marquez-por-julio-chang.shtml

Memória Globo
Perfil Otávio Muller
http://memoriaglobo.globo.com/perfis/profissionais/otavio-muller/otavio-muller-trajetoria.htm

Roteirista

Trailer “A última abolição”
https://www.youtube.com/watch?v=VOT2r-HKTsw

Trailer “Meu amigo Fela”
https://www.youtube.com/watch?v=uUR1d0nAUxU

Copa Studio
“Tromba Trem” – episódio: “Wasabi”
https://www.youtube.com/watch?v=MTqlPslkPYo&list=PLXwGAIxbz8bXhHtt5smaTXsqKL6TtIekz&index=3&t=0s

“Tromba Trem” – episódio: “Natal encalhado”
https://www.youtube.com/watch?v=23OcRLLG7kM


Revista de História da Biblioteca Nacional

Índice da revista
file:///C:/Users/Ronaldo/Downloads/sumario_2.pdf

Perfil Antonio Callado
http://observatoriodaimprensa.com.br/armazem-literario/_ed784_o_quieto_e_doce_ingles/

Origem da rabanada
https://pt.scribd.com/doc/193596050/Natal-com-rabanada-Revista-de-Historia

terça-feira, 17 de dezembro de 2019

Democracia já!

Nesses tempos em que os neofascismos pululam pelo planeta, aqueles que tentam se afastar para o mais longe possível dessa onda se veem com dificuldades para conseguir forças para combater diante de tantas e tamanhas agressões, de diferentes calibres, vindas de várias direções, quase simultaneamente.

Se não conseguem revidar, os antifascistas raramente, para não dizer nunca, conseguem sair de uma posição em que se é menos passivo para tentar começar a pautar o jogo. Não conseguem propor discussões de um jeito que empolgue, ou ao menos cause algum tipo de emoção forte, como são, convenhamos, aquelas propostas pelos neofascistas - seja pelo entusiasmo de quem apoia ou pela explícita ojeriza de quem odeia qualquer das intervenções do grupo extrema-direitista.

No campo das palavras de ordem, podemos listar, por exemplo, toda uma lista de slogans em que se prometia apenas a negação da proposta do outro, como, desde 2014, "não vai ter Copa", "não vai ter golpe", "ele não", ou o genérico "não passarão",  relembrando os republicanos na guerra civil espanhola, no início do século XX.

Estamos tão acuados, no canto do ringue, que só conseguimos dizer: não, isso não! O problema é que, apesar das vontades representadas nesses sinceros gritos, houve copa, houve golpe, ele foi eleito e, como responderam esses dias no twitter, eles passaram [refletindo, aliás, a famosa música dos fascistas-monarquistas espanhóis, quando derrotavam / após derrotarem seus oponentes].

Outro problema enfrentado pelo campo que se opõe ao neofascismo é conseguir encontrar um termo, uma ideia, algo que junte todos da oposição [ou seriam os divergentes?] sob o mesmo guarda-chuva. São muito diferentes entre si para concordarem com um "nome" apenas.

Se acreditarmos em pesquisas recentes, no Brasil, ao menos, há uma primeira divisão em três grandes grupos: Um terço que votaria ainda hoje no atual presidente, um terço que não votaria jamais no presidente, e um terço que se vê contra o presidente mas também não gosta de um pensamento de "esquerda", no caso representado pelo PT e outros grupos.

As disputas internas desses grandes grandes segmentos também mostram que há tantas divisões que nenhum deles pode ser considerado uníssono. Entre os apoiadores do presidente, por exemplo, há os que votariam nele mesmo se ele matasse um homem em frente às câmeras, e há os que o preferem apesar dos mais pesados pesares. Os de "centro" também pendulam entre os que tapam o nariz e votam no mal menor, à esquerda, e os que acreditam que todos os problemas do mundo são personalizados no PT e congêneres.

E o que dizer da esquerda, tradicionalmente já atomizada, por considerar que cada um tem direito a opinião e voz? Uma das grandes discussões, há um tempo, é sobre a necessidade de se "radicalizar", para verdadeiramente "polarizar" com o lado neofascista, ou tentar fazer uma "ponte" em direção ao "centro", para tentar aumentar a capacidade de articulação.

[Todos os termos que vieram entre aspas precisariam de muitas explicações já que não está claro o que seria radicalizar, como polarizar, a maneira de fazer uma ponte e, principalmente, não faz qualquer sentido lógico chamar partidos de direita como se fossem de "centro".]

Uma das formas discutidas para aglutinar a esquerda seria admitir seu lado "socialista". É uma bandeira que muita gente boa defende, por imaginá-la abrangente o suficiente e profundamente popular, pois preocupada com quem mais precisa.

O problema é o quanto essa palavra está carregada de um determinado tipo de preconceito, a partir de anos de desgaste e de experiências ditatoriais que foram e são associadas ao termo. Ou seja, o termo mais afastaria que aproximaria. Além disso, tal denominação é muito pouco clara, vinda sozinha, o que exigiria uma segunda explicação intrinsecamente: que tipo de socialismo? Ou ainda: o que é mesmo socialismo, hein?

Agora, há um conceito que mesmo os apoiadores do presidente atual defendem, um conceito que, apesar de bastante abrangente e igualmente pouco claro a princípio, é entendido por todo mundo e defendido por "todo mundo" - inclusive, por muitos dos apoiadores do regime de extrema-direita - um conceito que é, ou pode ser, caso bem desenvolvido, representativo de uma oposição radical a toda ideia neofascista. É a boa e velha Democracia.

Ninguém, apesar do conturbado ano de 2019, tem coragem de vir a público pregar contra ela. Qualquer menção a atos que lembrem dos períodos ditatoriais, como as citações ao AI-5, por exemplo, é amplamente rechaçada, por até grandes representantes do "centro", como a Globo ou o presidente do Congresso. Mesmo quem, em manifestações da direita, queria "intervenção militar" quer também democracia - segundo uma pesquisa que li recentemente, e apesar de toda a contradição aparente. Ou seja, ninguém é "contra" a democracia, na teoria. E na prática?

Bem, a definição de democracia é das mais complexas. Conceito criado lá na Grécia Antiga, que veio se modificando desde então, por onde ela passou, não é simples explicar em poucas palavras. Mas a adoção de um termo dessa natureza se mostraria, em princípio, contrário a qualquer atitude autoritária da parte do governo. Democracia não é, ou não pode ser, a ditadura da maioria, para citar um caso. Isso já poderia isolar qualquer tipo de declaração do presidente, por exemplo, de que a arte ou a cultura não deve estar a serviço de "minorias".

A minha sugestão é a recriação desse conceito, para se espalhar em diversas áreas da política, para pautar todas as nossas ações públicas, para ser o guarda-chuva que precisamos, para nos unir, para ser usada como boia de salvação. Exemplos: A economia não pode atender apenas a interesses de empresários, ela tem que ser pensada para que mais pessoas - se não todas - possam ganhar dinheiro e se tornarem - um pouco mais, ao menos - independentes. A Floresta Amazônica não deve ser pensada como um entrave para a produção agrícola já que ao mexer na floresta se perturba direta ou indiretamente todo o mundo - literalmente. E desse modo sucessivamente. Pessoas mais balizadas que eu nas diferentes áreas de atuação da política institucional podem pensar agendas mais "democráticas".

Assim como na época da ditadura subiram aos palanques das "Diretas Já!" políticos de diferentes espectros, que seriam em breve competidores em eleições por vir, mas que então pregavam a mesma coisa [voto direto para presidente], deveríamos nos unir em prol da ferrenha defesa da democracia, que cambaleia a cada golpe neofascista. Curiosamente, o pessoal da extrema-direita parece só querer manter intacto, como fachada, exatamente o recurso do voto para os cargos eletivos. Temos que mostrar que a democracia tem que ser mais profunda que a mera escolha de nossos representantes políticos. Democracia já!

sábado, 7 de dezembro de 2019

Reformulando: crise de uma estética

A arte não funciona apenas no sentido mais pueril da palavra estética. Ela não serve apenas, ou, que seja, principalmente, para agradar os sentidos. Há nela componentes que são captados, direta ou indiretamente, e produzem mundo. Dito de outra forma: instituem valores, rasgam o tecido do real e estabelece novos parâmetros.

A arte não é o único instituto a quebrar e estabelecer paradigmas. Segundo Deleuze e Guattari, a filosofia e a ciência também alargariam (ou, em outros formatos, estreitariam) horizontes; mudariam, enfim, a linha do horizonte de lugar.

Não precisa ser algo inovador ou "revolucionário" - qualquer evento que cause efeito estético - e aqui a noção deve ser lida no seu sentido mais alargado, de provocar sensações - é algo artístico.

Quando se diz que uma determinada época - a nossa, por exemplo - sofre uma crise estética, acho que o diagnóstico está ligeiramente enganado.

É claro que algo acontece agora - e é óbvio que a questão estética não estaria livre da História. Porém não é bem uma crise estética, mas uma crise de uma determinada estética.

Houve uma aparição de determinada tipo de estética para um número muito amplo de pessoas, enquanto outro tipo de estética, que raramente era confrontada, foi colocada em questão, perdeu sua posição de superioridade absoluta.

O que essa estética que surge defende? Em primeiríssimo lugar, uma volta a um tempo que nunca existiu. Há um saudosismo e uma nostalgia que não podem nem ser vistos como conservadores: elas são retrógradas.

Não se quer explorar novos mundos ou ampliar horizontes, se quer voltar a uma infância, mesmo que fantasiosa, a qualquer custo.

Para mim, a chave de entendimento passa pela insegurança generalizada. Não se tem qualquer certeza de praticamente nenhum aspecto. Mesmo que esse seja o sentimento mais próximo da realidade que existe, pode-se pensar que houve um baque muito grande intergeracional, e não sabemos até agora como absorver isso.

Estamos querendo mais e mais proteção, mais cuidado, mais certezas. Em nenhum lugar nos sentimos acolhidos, ou estamos em casa. Como ter ainda força para enfrentar ainda uma novidade artística, que vai trazer ainda mais dúvidas?

Em outros momentos,  a questão é ligeiramente ainda mais cruel: que horas conseguiremos nos dedicar a isso?

Quando vão destruindo tudo a nossa volta, é preciso uma força descomunal para sair do lugar. Não é todo dia que conseguimos. Às vezes queremos apenas o conforto do já conhecido.

A farsa da teoria do pêndulo

Muita gente acha que vivemos em uma espécie de pêndulo histórico, variando entre lados opostos do espectro político, e que estaríamos, neste instante, apenas numa posição na direita extrema. Acho que esse raciocínio é de um otimismo que beira a ingenuidade.

O primeiro problema desse raciocínio é sugerir que o passado é a certeza do futuro. Porque a História agiu de determinada maneira, ela vai se repetir para sempre. O que é uma tremenda besteira.

Nem vou falar de revoluções, grandes rasgos no real ou algo do gênero, mas pensemos em como, de alguma forma drástica, os países pobres raramente têm períodos extensos de independência [uso esse termo para tentar ser benevolente].

Qualquer movimento para fora da sua posição estabelecida pela banca internacional e logo você é forçado a voltar para o seu lugar cativo. ["Banca" e "cativo" não foram palavras escolhidas aleatoriamente.]

Não dá para pensar em ciclos, mas um tipo de comportamento padrão em que, vez por quase nunca, escapamos.

Que pêndulo é esse que só tem um lado?

Em segundo lugar: quem garante que dessa vez não saímos dos trilhos?

Mesmo que essa teoria do pêndulo fosse verdadeira, nada impede que, dessa vez [ou da próxima], a gente [eles] tenha [tenham] passado dos limites. Os donos do jogo decidiram jogar sem meias palavras: pobre não serve nem mais para consumir.

Por fim e talvez mais triste, porque é uma negação constante: quem garante que vai ter volta? Se o pêndulo existe, se estamos nos conformes, tudo está normal, como vamos ultrapassar a barreira da catástrofe ecológica?

Talvez não dê tempo de sair da direita extrema.

terça-feira, 3 de dezembro de 2019

'O medo', Carlos Drummond de Andrade

Em verdade temos medo.
Nascemos escuro.
As existências são poucas:
Carteiro, ditador, soldado.
Nosso destino, incompleto.

E fomos educados para o medo.
Cheiramos flores de medo.
Vestimos panos de medo.
De medo, vermelhos rios
vadeamos.

Somos apenas uns homens
e a natureza traiu-nos.
Há as árvores, as fábricas,
Doenças galopantes, fomes.

Refugiamo-nos no amor,
este célebre sentimento,
e o amor faltou: chovia,
ventava, fazia frio em São Paulo.

Fazia frio em São Paulo...
Nevava.
O medo, com sua capa,
nos dissimula e nos berça.

Fiquei com medo de ti,
meu companheiro moreno,
De nós, de vós: e de tudo.
Estou com medo da honra.

Assim nos criam burgueses,
Nosso caminho: traçado.
Por que morrer em conjunto?
E se todos nós vivêssemos?

Vem, harmonia do medo,
vem, ó terror das estradas,
susto na noite, receio
de águas poluídas. Muletas

do homem só. Ajudai-nos,
lentos poderes do láudano.
Até a canção medrosa
se parte, se transe e cala-se.

Faremos casas de medo,
duros tijolos de medo,
medrosos caules, repuxos,
ruas só de medo e calma.

E com asas de prudência,
com resplendores covardes,
atingiremos o cimo
de nossa cauta subida.

O medo, com sua física,
tanto produz: carcereiros,
edifícios, escritores,
este poema; outras vidas.

Tenhamos o maior pavor,
Os mais velhos compreendem.
O medo cristalizou-os.
Estátuas sábias, adeus.

Adeus: vamos para a frente,
recuando de olhos acesos.
Nossos filhos tão felizes...
Fiéis herdeiros do medo,

eles povoam a cidade.
Depois da cidade, o mundo.
Depois do mundo, as estrelas,
dançando o baile do medo.

In A Rosa do Povo
José Olympio, 1945

quarta-feira, 9 de outubro de 2019

Nietzsche sobre religião e governo

NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano, vol. I.

472. Religião e governo. — Enquanto o Estado ou, mais precisamente, o governo se souber investido da tutela de uma multidão menor de idade, e por causa dela considerar se a religião deve ser mantida ou eliminada, muito provavelmente se decidirá pela conservação da religião. Pois esta satisfaz o ânimo do indivíduo em tempos de perda, de privação, de terror, de desconfiança, ou seja, quando o governo se sente incapaz de diretamente fazer algo para atenuar o sofrimento psíquico da pessoa: mesmo em se tratando de males universais, inevitáveis, inicialmente irremediáveis (fomes coletivas, crises monetárias, guerras), a religião confere à massa uma atitude calma, paciente e confiante. Onde as deficiências necessárias ou casuais do governo estatal, ou as perigosas conseqüências de interesses dinásticos, fazem-se notórias para o homem perspicaz e o dispõem à rebeldia, os não perspicazes pensam enxergar o dedo de Deus e pacientemente se submetem às determinações do alto (conceito em que habitualmente se fundem os modos humano e divino de governar): assim se preserva a paz civil interna e a continuidade do desenvolvimento. O poder que reside na unidade do sentimento popular, em opiniões e fins comuns a todos, é protegido e selado pela religião, excetuando os raros casos em que o clero e o poder estatal não chegam a um acordo quanto ao preço e entram em conflito. Normalmente o Estado sabe conquistar os sacerdotes, porque tem necessidade de sua privatíssima, oculta educação das almas, e estima servidores que aparentemente, exteriormente, representam um interesse bastante diverso. Sem a ajuda dos sacerdotes nenhum poder é capaz, ainda hoje, de tornar-se "legítimo": como bem entendeu Napoleão. — Assim, governo tutelar absoluto e cuidadosa preservação da religião caminham necessariamente juntos. Nisto se pressupõe que as pessoas e classes governantes sejam esclarecidas a respeito das vantagens que a religião lhes oferece, e que até certo ponto se sintam superiores a ela, na medida em que a usam como instrumento: eis aqui a origem do livre-pensar. — Mas o que ocorre, quando começa a prevalecer a concepção totalmente diversa de governo que é ensinada nos Estados democráticos? Quando nele se enxerga apenas o instrumento da vontade popular, não um "alto" em comparação a um "baixo", mas meramente uma função do único soberano, do povo? Também nesse caso o governo só poderá ter a mesma atitude do povo ante a religião; toda propagação das Luzes terá de encontrar eco em seus representantes, uma utilização e exploração das forças motrizes e consolações religiosas para fins estatais não será tão fácil (a não ser que poderosos líderes partidários exerçam temporariamente uma influência semelhante à do despotismo esclarecido). Mas se o Estado já não pode tirar proveito da religião, ou se o povo pensa muito variadamente sobre coisas religiosas para permitir ao governo um procedimento homogêneo e uniforme nas medidas religiosas — então necessariamente aparecerá o recurso de tratar a religião como assunto privado e remetê-la à consciência e ao costume de cada indivíduo. A primeira consequência é que a sensibilidade religiosa aparece fortalecida, na medida em que movimentos seus escondidos e oprimidos, aos quais o Estado, involuntária ou intencionalmente, não concedia nenhum sopro vital, agora irrompem e se exaltam ao extremo; mais tarde se vê que a religião é sobrepujada por seitas, e que uma profusão de dentes de dragão foi semeada, no momento em que a religião se transformou em coisa privada. A visão dessa luta, o hostil desnudamento de todas as fraquezas dos credos religiosos, afinal já não admite outra saída senão a de que todo indivíduo melhor e mais dotado faça da irreligiosidade seu assunto privado: mentalidade que então prevalece também no espírito dos governantes e que, quase contra a vontade deles, dá às medidas que tomam um caráter hostil à religião. Tão logo isto sucede, a disposição dos homens ainda motivados religiosamente, que antes adoravam o Estado como algo semi- ou inteiramente sagrado, torna-se decididamente hostil ao Estado; eles ficam à espreita das medidas do governo, procuram obstruir, atravessar, inquietar o máximo que puderem, e com o ardor de sua oposição impelem o partido contrário, o anti-religioso, a um entusiasmo quase fanático pelo Estado; no que ainda concorre secretamente o fato de nesses círculos os ânimos, desde a separação da religião, sentirem um vazio e buscarem provisoriamente criar, com a dedicação ao Estado, um substituto, uma espécie de preenchimento. Após essas lutas de transição, que talvez durem bastante, finalmente se decidirá se os partidos religiosos ainda são fortes o bastante para restabelecer o antigo estado de coisas e fazer girar a roda para trás: caso em que o despotismo esclarecido (talvez menos esclarecido e mais temeroso do que antes) inevitavelmente receberá nas mãos o Estado, — ou se os partidos não religiosos predominam, e por algumas gerações dificultam e afinal tornam impossível a multiplicação dos adversários, talvez mediante a educação e o sistema escolar. Mas então diminui também neles o entusiasmo pelo Estado; torna-se cada vez mais evidente que com a adoração religiosa, para a qual o Estado é um mistério, uma instituição acima do mundo, também foi abalada a relação piedosa e reverente para com ele. Daí em diante os indivíduos só vêem nele o aspecto em que lhes pode ser útil ou prejudicial, e disputam entre si, usando de todos os meios para obter influência sobre ele. Mas essa concorrência logo se torna grande demais, os homens e os partidos mudam rápido demais, derrubam uns aos outros montanha abaixo, de maneira selvagem demais, quando mal alcançaram o topo. A todas as medidas executadas por um governo falta a garantia da duração; as pessoas recuam ante empreendimentos que necessitariam décadas, séculos de crescimento tranqüilo, para produzir frutos maduros. Ninguém sente mais obrigação ante uma lei, senão curvar-se momentaneamente ao poder que introduziu a lei: mas logo começam a miná-la com um novo poder, uma nova maioria a ser formada. Enfim — pode-se dizer com segurança — a suspeita em relação a todos os que governam, a percepção do que há de inútil e desgastante nessas lutas de pouco fôlego tem de levar os homens a uma decisão totalmente nova: a abolição do conceito de Estado, a supressão da oposição "privado e público". As sociedades privadas incorporam passo a passo os negócios do Estado: mesmo o resíduo mais tenaz do velho trabalho de governar (por exemplo, as atividades que se destinam a proteger as pessoas privadas umas das outras) termina a cargo de empreendedores privados. O desprezo, o declínio e a morte do Estado, a liberação da pessoa privada (guardo-me de dizer: do indivíduo), são conseqüência da noção democrática de Estado; nisso está sua missão. Se ele cumpriu a sua tarefa — que, como tudo humano, traz em si muita razão e muita desrazão —, se todas as recaídas da velha doença foram superadas, então se abrirá uma nova página no livro de fábulas da humanidade, em que serão lidas todas as espécies de histórias estranhas e talvez alguma coisa boa. — Repetindo brevemente o que foi dito: os interesses do governo tutelar e os interesses da religião caminham de mãos dadas, de modo que, quando esta última começa a definhar, também o fundamento do Estado é abalado. A crença numa ordenação divina das coisas políticas, no mistério que seria a existência do Estado, é de procedência religiosa: se desaparecer a religião, o Estado inevitavelmente perderá seu antigo véu de Ísis e não mais despertará reverência. Observada de perto, a soberania do povo serve para afugentar também o último encanto e superstição no âmbito destes sentimentos; a democracia moderna é a forma histórica do declínio do Estado. — Mas a perspectiva que resulta desse forte declínio não é infeliz em todos os aspectos: entre as características dos seres humanos, a sagacidade e o interesse pessoal são as mais bem desenvolvidas; se o Estado não mais corresponder às exigências dessas forças, não ocorrerá de maneira alguma o caos: uma invenção ainda mais pertinente que aquilo que era o Estado, isto sim, triunfará sobre o Estado. Quantas forças organizadoras a humanidade já não viu se extinguirem — por exemplo, a do clã hereditário, que por milênios foi bem mais poderosa que a da família, e que muito antes desta já reinava e ordenava. Nós mesmos vemos a significativa noção legal e política da família, que um dia predominou em toda a extensão do mundo romano, tornar-se cada vez mais pálida e impotente. Assim, uma geração posterior também verá o Estado se tornar insignificante em vários trechos da Terra — algo que muitos homens da atualidade não podem conceber sem medo e horror. Trabalhar pela difusão e realização dessa ideia é certamente outra coisa: é preciso pensar muito presunçosamente de sua própria razão e mal compreender a história pela metade, para já agora pôr as mãos no arado — já que ainda ninguém pode mostrar as sementes que depois serão lançadas no terreno rasgado. Confiemos, portanto, na "sagacidade e interesse pessoal dos homens", para que o Estado subsista por bastante tempo ainda, e sejam rechaçadas as tentativas destruidoras de supostos sábios zelosos e precipitados!

quarta-feira, 21 de agosto de 2019

Negando Thatcher

Uma das maneiras de marcar o início desse nosso período de ultracapitalismo de cunho neoliberal seria a famosa frase de Margaret Thatcher: "There's no such thing as society", dita em uma entrevista em 1987. Apesar de na continuação da frase Thatcher sugerir que as pessoas tomem conta também dos vizinhos, depois, claro, de cuidarem de si próprias, tal sentença, tirada do seu contexto mais restrito, e dita por quem foi dita, ganhou a conotação que entrou para a História: o que há são tão e somente indivíduos ["e suas famílias", ela completou, demarcando bem claramente o tipo de conjunto que ela queria isolar].

A mulher que desestruturou a Inglaterra, transformando a velha Albion numa ilha em que cada um luta por si [sua família e seus vizinhos] contra os demais, conseguiu enfraquecer os laços comunitários, além daqueles determinados por ela e pela ideologia que ela apoiava / era apoiada por. Jogou nas costas de cada um o peso dos seus próprios fracassos e, principal e igualmente, do seu sucesso.

Essa sentença representa um mundo em que, para usar mais uma vez a manjada metáfora da vida como teatro, cada uma das pessoas se pensa como um ator no seu próprio monólogo, num mundo lotado, portanto, de... monólogos sem plateias - que, por isso mesmo, não dialogam. Não deve ser coincidência que a definição de direita de Deleuze no Abecedário se pareça tanto com essa frase.

Ao fim do seu mandato, Thatcher afirmou, com uma inteligência aguda, que seu principal legado era o Labour. Dito em outras palavras, o que ela deixava para o mundo de mais importante era o fato de até mesmo os seus adversários só terem sua cartilha para seguir, sem desconsiderá-la em nenhum momento. O mesmo pode ser dito para a tal frase acima: estamos há mais de 30 anos tentando refutá-la, negá-la, rechaçá-la, mas, em vez de nos afastarmos e criarmos um mundo nosso, continuamos orbitando ao redor de sua atmosfera tóxica. Thatcher é a banca e continua a dar as cartas; nós somos meros, quando muito, jogadores autorizados a brincar com os adultos. E, claro, eles mudam as regras quando quiserem.

Desde então, só conseguimos criar grupos pseudo-comunitários, como as igrejas neopentecostais trabalhadas na teologia da prosperidade, que funcionam basicamente como coaches espirituais nos programando para atingir o lucro e aliviando nossas dores cotidianas em busca de nosso grande objetivo: o sucesso. E pouco mais.

Nessas pseudo-comunidades, somos todos "eleitos", "ungidos", "consagrados" para o sucesso. Ninguém, coincidentemente, nasceu para o fracasso, ninguém é personagem secundário, poucos são os que aguentam o anonimato. Todos querem o centro do palco, 15 minutos de felicidade, hitar no Twitter. O mais curioso: raramente conseguimos dar respostas outras que não clichês quando somos perguntados sobre o que é o sucesso. Além de repetir os lugares-comuns, o que verdadeiramente queremos? O que é esse sucesso senão uma versão do Paraíso cristão repaginada [pela Martin Claret] ou levada às telas pela Record?

Os nossos desejos foram tomados de assalto pelo marketing publicitário e as redes sociais já conseguem prever nossos anseios com mais precisão que nós mesmos. O que sobrou para nós, mesmos? O deserto da vontade, que apenas cresce e cresce, tomando totalmente nossas vidas. Não temos nem um desejo que já não foi empacotado para presente e parcelado em 3x sem juros no cartão de crédito. Ficou o nada, o vazio, o eco das nossas vozes diante do abismo.

E, para piorar, nos últimos anos, apareceram versões desse ultracapitalismo neoliberal carregadas de testosterona, violência e fragilidade masculina. Alguns com cabelo laranja, outros com fixações anais, orais e outras infantilidades. Como, agora, massacrado diariamente pela quantidade imensa de más notícias, voltar a sentir alguma coisa que não seja uma grande aversão e ódio à tanatocracia vigente, à essa poderosa máquina estatal de moer gentes e mundos, deixando para trás apenas cinza de queimada, terra seca e monoculturas de exploração para exportação?

Não sei, mesmo, mas eu quero ao menos parar de acreditar na frase de Thatcher. Já tá bom, chega. E não é para cair numa inversão boba, de sentido haribô, em que todos somos conectados religiosamente uns aos outros, claro que não, mas, talvez, pensando em perder completamente a minha pretensa excepcionalidade, o meu caráter de indivíduo, isolado, e pensando que cada corpo é afetado a partir de encontros com outros corpos. Talvez conseguindo - não sei como - mostrar para mim mesmo que é muito mais provável que o inverso da famosa frase produza bem mais felicidade, porque a solidão é triste pra dedéu. Já estive lá e não aconselho. Ou seja, repetir para mim que não existe tal coisa como o indivíduo, só há associações. Definitivamente, eu quero dedicar o que resta da minha vida a produzir encontros felizes, isto é, encontros que aumentem a minha potência de agir.

segunda-feira, 10 de junho de 2019

A farsa da isenção jornalística

Um dos grandes mitos do jornalismo é a isenção. Uma espécie de distanciamento, uma tentativa de equanimidade, um auto-engano em que o jornalista acredita emular uma posição sóbria e desinteressada, distanciada, tal qual um deus justo e superior. Suspeito que a origem desse procedimento seja o naturalismo do século XIX na literatura, com os seus narradores onipresentes, oniscientes e praticamente onipotentes, que por sua vez buscava emular uma pretensão de reprodução das condições [quase] perfeitas de laboratório ao isolar variáveis de influência, dentro das ciências exatas.

Um dos procedimentos mais usados para fingir essa justiça narrativa é o chamado "outro lado". Segundo esse estratagema, deve-se ouvir todas as partes envolvidas na questão da matéria jornalística. Mas nem sempre é fácil identificar quem é o outro lado. Ou, muito pior, nem sempre mostrar o outro lado é fazer tal justiça. Ao contrário: ao dar voz para vozes dissonantes, o jornalismo vez por outra apenas aumenta os ruídos, equiparando versões fortes [verdadeiras] e fracas [falsas] do mesmo fenômeno.

Um exemplo disso é a questão do aquecimento global. Não há "outro lado". Quem nega que haja um catástrofe ecológica em curso atualmente parte de um princípio absolutamente outro que aquele que é defendido pela própria matéria jornalística, isto é, a ciência como base do conhecimento do Ocidente. Negar o aquecimento global é negar evidências científicas em prol de um obscurantismo profundo, sempre ligado a interesses escusos, e travestido de paladino da justiça, diante de hordas ditatoriais.

Não precisamos, porém, nem chegar a esse ponto. O que dizer de políticos que abertamente mentem sobre os assuntos perguntados? Eles deveriam ter o direito de emitir enunciados totalmente falsos apenas para ter respeitado o direito do outro lado? Como lidar com o limite de espaço, por exemplo nas publicações físicas, ou o limite de tempo, nas entrevistas cronometradas com tais figuras públicas?

Algumas publicações assumem e até mesmo incentivam o uso da primeira pessoa, para tentar mostrar que todo o texto tem uma perspectiva, um ângulo claro. Mas isso não impede de o espaço ainda cair na mentira do "outro lado". Perdemos os tempos das sutilezas: seria preciso ainda mais presença do autor do texto, para chamar, por exemplo, o mentiroso de mentiroso. Sem subterfúgios.

Outras publicações se colocam numa posição de não tentar influenciar o leitor: a função do jornalismo não é ser [para usar um exemplo aleatório] procurador, mas apenas juiz, dizem. O problema é: e se não houver mais a diferença entre as duas funções - se é que já houve? Vamos ter que esperar o bom senso dos leitores que querem apenas a condenação dos suspeitos de sempre?

Perdemos um normal e estamos sem encontrar um solo em que podemos nos basear. Todas as forças estão em guerra aberta para puxar o seu lado. É imprescindível escolher um deles, sabendo que o muro que separa as diversas vertentes é cada vez mais fino e inseguro. Em algum momento se cairá para um dos lados - normalmente o lado falso.

A Cecília Oliveira, do Intercept, disse muito melhor que eu aqui:



sábado, 25 de maio de 2019

Crise estética nacional

O Tosco Brasileiro é uma revolta contra a ilusão. Não apenas contra as ilusões específicas de um certo programa político que o antecedeu e o condicionou, mas contra o estatuto mesmo da ilusão. Ilusões nos fazem acreditar em futuros diferentes do passado. Ilusões traídas nos fazem odiar o próprio trabalho de ilusionamento. Se o esboço e a incompletude são as formas típicas da produção ilusiva, o estereótipo e caricatura são o seu inverso não dialético. O Tosco Brasileiro parece odiar a arte e a ciência ela mesma, realizada na figura dos professores de uma elite, sentida como impostora e inautêntica. Por isso lhe é essencial se apresentar “sem partido”, “sem ideologia”, “sem pontos obscuros ou ambíguos”, “as coisas mesmas na vida como ela é: nota sobre nota”. Toda ambiguidade local é uma certeza redobrada em segunda instância, pela comunidade estética de gosto. Daí que o Tosco Brasileiro seja uma estética religiosa, no sentido kantiano de uma comunidade de gosto e no sentido lacaniano de uma comunidade de gozo. Lembremos que o problema aqui é saltar da particularidade dos juízos de gosto, por meio dos qual algo é belo porque assim nos parece, para algo é belo porque esta é a realidade mesma deste objeto.
Christian Dunker dando início ao pensamento sobre a crise estética atual. 

segunda-feira, 20 de maio de 2019

Notas curtas sobre a vontade e o desejo

"Wie man wird, was man ist" é a expressão em alemão que segue como subtítulo da autobiografia de Nietzsche, Ecce homo. Numa tradução ao pé da letra seria: como se tornar o que se é. Pesquisando um pouco, se descobre que o poeta grego Píndaro tinha um verso parecido: "Torna-te o que tu és". E não precisa de muito esforço para se lembrar da famosa frase que o oráculo de Delfos disse para Sócrates ("Conhece-se a ti mesmo") como contraponto.

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Uma das grandes tradições da filosofia ocidental foi a criação da ideia de um sujeito - ou de um "eu". É difícil pensar no seu oposto. A começar por todas as gramáticas, já somos arremessados dentro de um sistema pronto que nos força a pensar numa primeira pessoa que individualizaria nossa subjetividade. 

Ou ainda, de maneira bem pragmática, podemos concluir que eu existo quando nos tocamos, olhamos num espelho, sentimos dor ou fome. 

Mas eu não sou / não é "eu".

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É curioso e até engraçado pensar a principal forma usada por Borges para explicar por que ele tinha tanto medo dos espelhos. Em Tlön... ele já fala da multiplicação dos seres como um problema (junto a cópula - não por acaso ele não deixou filhos), mas não era apenas a multiplicação, simples, repetição exata e igual. Ele tinha medo de se olhar no espelho e não se enxergar, não se reconhecer, ver um monstro. Isso mesmo quando tinha ficado completamente cego.

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A partir de um determinado momento - podemos colocar esse início em Descartes, e o seu ego cogito, ou nos românticos, com sua busca pelo gênio, ou com todo o aparato das vontades, a partir de Schopenhauer - o sujeito, do tipo individual, entrou no foco central das discussões. 

Nietzsche - e aqui eu admito a minha dúvida extrema - talvez seja uma bola dividida. De um lado, ele propõe em vários momentos que a sua vontade de poder [Wille zur Macht] é impessoal e vai além mesmo dos humanos: tudo o que há tem vontade. Por outro, ele insiste no fato de só existir uma vontade egoísta, e que sempre haveria diferença hierárquica entre as vontades, nunca tendo um equilíbrio.

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Essa última frase pensada abstratamente não parece ser muito problemática: a própria física, por exemplo, diz que não há vácuo no universo. Ou seja, as vontades seriam as possibilidades de movimento, do mais forte para o mais fraco. Porém, quando se pensa em seres tentando viver em conjunção com outros seres, a frase pode ser vista com bastante dureza. Ou uma justificativa, uma naturalização da violência. 

Ou esse tipo de leitura mostra apenas a minha falta de traquejo para conseguir ler suas defesas de um pensamento egoísta de maneira diferente de uma defesa da vontade subjetivista.

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O pensamento de Nietzsche, de toda forma, abriu portas para uma série de pessoas - principalmente no chamado pós-estruturalismo francês - que tentavam pensar ao mesmo tempo liberdade de ações sem que isso fosse uma negação do outro. Ou seja, a vontade [a força, o desejo, antes o conatus ou até mesmo a libido] não deveria querer dizer a objetificação de um outro ser qualquer.

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Somos iguais porque todos participamos das mesmas estruturas - e superestruturas, para falar como os marxistas - mas somos diferentes porque o simples fato de existirmos em um determinado tempo e espaço nos torna únicos de qualquer outro ser - únicos, porém não melhores ou maiores. Todos temos vontade, mas temos vontades diferentes, cada um tem a sua própria vontade. Interagir uma e outra questão, ao mesmo tempo, é o grande drama político-social dos últimos séculos, parece.

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Uma leitura errada, diria até propositalmente errada, da noção de vontade [e desejo e conatus...] percebeu que, sim, todos os seres são formados pelas suas vontades, e que, sim, todos têm direito de ter acesso aos seus desejos-vontades. Por que não, portanto, fornecer a todos um pacote fechado para eles poderem decidir, entre as opções oferecidas, o que querem? O plot do capitalismo thickens.

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Winnicott dizia sempre que era preciso uma mãe suficientemente boa para que as suas crianças pudessem aprender a desejar. Uma mãe muito "presente" retirava a possibilidade de construção do desejo [ou possibilidade da falta, que é a condição do desejo para alguns]; uma mãe muito "ausente" não deixava nem a esperança de uma concretização dos desejos, destruindo-os ainda antes das suas formulações.

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A máquina de captura do desejo do capitalismo funciona da mesma forma: de um lado não dá espaço para que nós desejemos. Do outro, torna qualquer imaginação de mudança um horizonte tão distante, que parece impossível qualquer - mesmo que mínima - mudança.

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O mar de marasmo, ou os desesperos por encontrar algum sentido exterior, ou a dificuldade de aceitar o buraco como parte integrante da vida. Aqueles que não conseguem nem perceber o que é desejo, ou os que buscam em criações ilusionistas de outras verdades [ou pós-verdades], ou quem foge da angústia se afogando em algum escapismo. Três maneiras de nomear a quase totalidade das formas niilistas nesse nosso período de capitalismo avançado.

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Apesar de tudo, temos que ter vontade, temos que desejar. A minha aposta principal é essa: a única maneira de se viver é desejando. O resto é estacionar dentro do mais fundo poço escuro, numa queda livre, sem saber para qual direção se está indo. Um movimento maquínico, cotidianamente irrefletido, sem gosto e com um constante tanto-faz e bater de ombros como fórmula.

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Mas como desejar se todos os sentidos estão embotados? Se o prato já vem pronto e não temos nem tempo nem espaço de falar que não queremos isso ou aquilo? Ou ainda: como se manter em uma desejo, quando inúmeras promessas de euforia passam na sua timeline a cada refresh?

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Primeira possibilidade de se pensar / primeira questão: mesmo a euforia é um desejo.

Há vários tipos de desejo, alguns fracos e outros mais fortes; alguns constitutivos, outros mais destrutivos; alguns mais perenes, outros mais instantâneos.

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Nenhum desejo é "melhor" que outro. Mas uma dieta com pouca variedade de desejos nos torna repetitivos, monotemáticos, com o tempo desérticos, por fim, inférteis. Talvez seja uma forma recente de niilismo.

Possibilidade a se cogitar.

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Os desejos do tipo de euforia produzem depressões ainda mais profundas que os cumes alcançados. Algumas vezes são indispensáveis, outras nem tanto. De toda forma, tornar-se uma relação constante, se habituar a um único tipo de desejo, parece uma maneira fácil de ser seduzido. O que é uma das maneiras de se perder para dentro de si.

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Como manter desejos que são mais perenes, para conseguir modificar o cardápio, e sair da ventania das opções em que viramos o rosto para buscar sempre a próxima promoção, a cada grito publicitário?

Segunda possibilidade de pensar / segunda questão: A promessa.

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A promessa é a continuação de uma aposta na intuição que nos atravessa, no momento t=0,0...1. Não temos quase nenhuma certeza, mas algo que não dá para dizer de onde vem, ou seja, um segundo influxo, nos diz que devemos seguir essa intuição. Esse segundo movimento, que é colado no primeiro, é a aposta. 

A promessa é a tentativa de se manter nesse caminho por tempo além da aposta inicial. É fazer uma promessa consigo mesmo, para aguentar um pouco mais, até quando conseguir aguentar. É se amarrar no mastro do navio para poder voltar a Ítaca.

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Ler Deleuze e Sloterdijk para pensar melhor isso.

segunda-feira, 22 de abril de 2019

A crise estética atual em dois filmes

A crise estética que assola o país não é um problema só de quem gosta de Romero Brito ou para os que passam corrente de Whatsapp com orações sobre um dos avatares da mãe do nazareno. Não é também apenas para espectadores mais conservadores que ainda estão impressionados com a verossimilhança de determinados quadros ou esculturas antigas, e qualquer forma menos óbvia se torna um choque e uma impossibilidade de enxergar. Nem mesmo para quem se espanta com obras que mostrem ou sugiram qualquer nudez, ou insinuem sexo, convencional ou não, e relações outras que a heterossexual. É um problema que afeta todo mundo, dos que não se interessam por arte até quem se acha imune ao pensamento estético retrógrado.

O progressivismo, que colonizou a cabeça de toda a metafísica do Ocidente nos últimos 200, 300 anos, atingiu a arte de maneira brutal. De uma forma muito grosseira, pode-se dizer que um tipo de narrativa do século XX defende a ideia de que se pode traçar uma fictícia linha reta entre dois pontos imaginários na trajetória artística da Modernidade. A perfeita representação espelhada da "realidade", de um lado, e os experimentalismos ligados à abstração, do outro. A arte deveria percorrer, ao longo da História, esse caminho, de um extremo ao oposto.

Assim, até a invenção de objetos que capturam a "realidade" de forma "mecânica", a arte estava em busca de uma maior perfeição em "retratar" o que há. À arte, portanto, bastava então ser o mais fiel possível ao "real", repetindo-o em todos os detalhes possíveis. Com a fotografia e depois o cinema, a arte buscou outros projetos - principalmente a abstração - , que pudessem torná-la ainda relevante, já que como "cópia" da realidade ela jamais poderia competir com as máquinas. Obviamente ambos os modos de interpretar a arte são, no mínimo, pobres, a começar por pensar uma "realidade" nua, pura, sem qualquer adereço, ou imaginar algum tipo de produção que não tenha algum grau de subjetividade.

De toda forma, essa busca experimental pela abstração - junto a outros inúmeros fatores, como o crescimento da classe média de padrão pequeno burguês nos países ricos, o florescimento de outros modos de entretenimento, mais pueris e leves, a competitividade exacerbada no campo do trabalho, etc. - criou uma cisão imensa entre a produção artística de proa [para evitar usar a palavra vanguarda aqui] e a sua influência na sociedade.

Vale um pequeno parêntese para dizer que nunca houve uma grande influência da arte na sociedade - ao menos não nos moldes genéricos [em qualquer sociedade] e nas definições estanques [i.e. nas belas artes] como se espera ao contar essa história. O que vale são aproximações de pensamentos, tais como quando dizemos "a democracia grega", sem sublinhar que nem mulheres, nem crianças, nem escravos podiam votar. A arte - no Ocidente estendido - tinha um peso e um papel na sociedade até o século XX que foi abrandada em função do aparecimento de outros mecanismos a ocupar o espaço-tempo do mero mortal. É mais fácil ver uma novela na TV que encarar um romance cabeçudo, por exemplo.

Sem qualquer tipo de comunicação, sem observadores, espectadores, leitores, sem gente, enfim, que fique do outro lado, a arte [aquela mais estanque, deixemos claro outra vez] se tornou um mero penduricalho, uma tradição que contamos para nós mesmos na tentativa de se alcançar algo que se perdeu. Ou seja, um processo bastante conservador.

Para piorar, há ainda outro caminho extremamente retrógrado: a busca vazia pela experimentação, que se torna um processo ególatra viciado, sem qualquer embasamento, repetidor, de uma subjetividade exclusivamente individualista. São geralmente as produções mais caricatas, mais vergonhosas.

Bem, esse era o problema da arte há 20, 30 anos - que continuam a reverberar até hoje, infelizmente. Atualmente, a questão é ainda mais complexa.

Um dos caminhos mais adotado pelos artistas atuais na tentativa de começar a se comunicar é muitíssimo bem-vinda: sair dos centros e entrar nas periferias, nos subúrbios. Isso quer dizer que o homem, branco, hétero, cis, adulto, perdeu seu espaço para outros povos surgirem. Um desdobramento disso foi a tentativa de dar voz aos próprios personagens para eles mesmos contarem suas histórias, sem intermédio de ninguém. Procedimentos que merecem todos os aplausos. O problema acontece quando falta imaginação na criação do universo a ser retratado, pintado, desenhado, escrito.

Dois filmes recentes que receberam prêmios e ganham continuamente elogios de nomes respeitados caem nesse problema de encurtamento de horizontes. O primeiro é Arábia, de João Dumans e Affonso Uchoa; o segundo, Temporada, de André Novais Oliveira. Ambos - curiosamente produções mineiras, essa quase periferia - mostram o mundo do trabalhador de baixo estrato social, precário, enfrentando todas as questões dos pobres quase marginalizados em centros urbanos médios. Os protagonistas dos filmes, interpretados por atores amadores ou semi-profissionais, são retratados com proximidade, com intimidade, com carinho, até. Quase nos tornamos amigos deles. Ambos os filmes, contudo, sofrem de um problema de naturalismo excessivo.

Os realizadores das duas obras parecem querer captar uma "realidade" última que tinha ficado escondida após anos de enfoque exclusivo nos grandes centros. Mostrar a banalidade da vida cotidiana de personagens tão profundos quanto quaisquer outros. Interferir o mínimo possível na "verdade", quase como uma espécie de velho-neo-realismo. A impressão que fica é que a função dos diretores foi basicamente falar "ação" e depois "corta", sem se preocupar em nada com o mise-en-scène [o que é obviamente um exagero de minha parte]. Os personagens, com as suas vacilações, suas linguagens pobres, seus universos relativamente restritos, são um "retrato" do momento atual, definitivamente, como o são, também, programas como o BBB, por exemplo [mas qual expressão não seria o retrato do seu próprio tempo?]. Os filmes, entretanto, não mostram qualquer outra potência: são pouco imaginativos, pouco criativos. Ambas as produções abrem quase nenhum ou nenhum espaço para se vislumbrar, se almejar, se pensar algo diferente do que já foi dado.

Suspeito que o fato desses filmes serem bem quistos por uma gama grande de pessoas mostra a nossa atual incapacidade de se pensar um mundo diferente do nosso, a nossa tal crise estética. Porque, se há uma "função" para a arte, em qualquer das suas habilitações, é ampliar o horizonte do possível; é criar possibilidades que antes eram vistas como absurdas; tornar real, portanto material, palpável mesmo, uma utopia. Arte deve criar mundo, não representá-lo.

ps. Me ocorrem dois filmes [poderia citar mais], por acaso pernambucanos, que mostram a abertura de mundos absolutamente novos: Boi neon, de Gabriel Mascaro, e Tatuagem, de Hilton Lacerda. Talvez não estejamos totalmente perdidos.

sábado, 6 de abril de 2019

Friedrich Nietzsche: § 343 de "A gaia ciência"

343

O sentido da nossa jovialidade. – O maior acontecimento recente – o fato de que "Deus está morto” de que a crença no Deus cristão perdeu o crédito – já começa a lançar suas primeiras sombras sobre a Europa. Ao menos para aqueles poucos cujo olhar, cuja suspeita no olhar é forte e refinada o bastante para esse espetáculo, algum sol parece ter se posto, alguma velha e profunda confiança parece ter se transformado em dúvida: para eles o nosso velho mundo deve parecer cada dia mais crepuscular, mais desconfiado, mais estranho, "mais velho”: Mas pode-se dizer, no essencial, que o evento mesmo é demasiado grande, distante e à margem da compreensão da maioria, para que se possa imaginar que a notícia dele tenha sequer chegado; e menos ainda que muitos soubessem já o que realmente sucedeu – e tudo quanto irá desmoronar, agora que esta crença foi minada, porque estava sobre ela construído, nela apoiado, nela arraigado: toda a nossa moral europeia, por exemplo. Essa longa e abundante seqüência de ruptura, declínio. destruição, cataclismo, que agora é iminente: quem poderia hoje adivinhar o bastante acerca dela, para ter de servir de professor e prenunciador de uma tremenda lógica de horrores, de profeta de um eclipse e ensombrecimento solar, tal como provavelmente jamais houve na Terra?... Mesmo nós, adivinhos natos, que espreitamos do alto dos montes, por assim dizer, colocados entre o hoje e o amanhã e estendidos na contradição entre o hoje e o amanha, nós, primogênitos prematuros do século vindouro, aos quais as sombras que logo envolverão a Europa já deveriam ter se mostrado por agora: como se explica que mesmo nós encaremos sem muito interesse o limiar deste ensombrecimento, e até sem preocupação e temor por nós? Talvez soframos demais as primeiras conseqüências desse evento – e estas, as suas conseqüências para nós, não são, ao contrário do que talvez se esperasse, de modo algum tristes e sombrias, mas sim algo difícil de descrever, uma nova espécie de luz, de felicidade, alívio, contentamento, encorajamento, aurora... De fato. nós, filósofos e “espíritos livres”, ante a notícia de que "o velho Deus morreu” nos sentimos como iluminados por uma nova aurora; nosso coração transborda de gratidão, espanto, pressentimento, expectativa – enfim o horizonte nos aparece novamente livre, embora não esteja limpo, enfim os nossos barcos podem novamente zarpar ao encontro de todo perigo, novamente é permitida toda a ousadia de quem busca o conhecimento, o mar, o nosso mar, está novamente aberto, e provavelmente nunca houve tanto "mar aberto”:



NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

A mentira da Verdade

Existe uma concepção estagnada sobre o que é verdade (ou talvez de uma verdade estagnada) – provavelmente pensada como uma herdeira de um conceito eterno, que poderia funcionar sob toda e qualquer circunstância. Uma espécie de linha reta abstrata, uma formulação que não pode ser comprovada nem pela matemática (já que toda reta é apenas um fragmento de uma curva bem maior). Há vários problemas com esse tipo de verdade.

Um deles é a sua impossibilidade de existência: não existe nada que seja absolutamente imutável, que não se modifica em relação um evento exterior. Toda e qualquer assunção deve ser determinada por algum tipo de parâmetro. Não é possível estabelecer uma prerrogativa que funcionaria diante de toda e qualquer circunstância. Não haveria, portanto, verdade “absoluta”, ou, dito de outra maneira, transcendental.

A segunda questão problemática é de que como a ideia de uma verdade estanque serve, em todos os casos, como mecanismo de opressão contra determinados grupos. Em outras palavras, uma ideia de verdade – ou Verdade, para diferenciar de outro tipo de verdade, que há – serve para criação do que pior se pensou e se praticou como metafísica: como hierarquia de valores, em que alguns participam da festa dos bem-aventurados, enquanto outros são relegados ao pântano da falsidade, da mentira, da inferioridade.

Um tipo de esquema que funciona dentro da tradição, por exemplo, cristã, em que, por meio de intermediários divinos, como padres, pastores e asseclas, sabe-se o que é a Verdade e o que devemos fazer para segui-la. Boas ações, compra de indulgências, pagar o dízimo, odiar gays e seguidores de religiões de matriz africana, a lista se modifica a partir de cada uma das interpretações (o que só reforça o caráter impossível da Verdade). Quem não conseguir manter esse tipo de comportamento é excluído do seio da comunidade da qual fazia parte, é visto como um fora-de-casta.

Essa produção de uma verdade nos moldes de uma Verdade, ou seja, a falsificação de uma concepção que funcionaria em toda e qualquer circunstância não é, claro, uma exclusividade da vida religiosa (apesar de ser um aspecto bem característico dos dogmatismos da fé). O tipo de comportamento, por exemplo, em relação ao Mercado, esse nome adocicado para o capitalismo, é bem parecido a esse: não se pode colocar qualquer tipo de interrogação no caminho do Mercado, sob a pena de ser considerado ingênuo ou utópico. O Mercado é, do jeito que é, e não há alternativa a ele. Deve-se aceitá-lo, engoli-lo e ainda ficar satisfeito com as regras impostas.

O que Nietzsche faz é deslocar a ideia de verdade para uma posição outra que não a da detentora de uma atemporalidade, ou de um caráter transcendental. Ele não “acaba” com a verdade, ele destrói a Verdade. (nota: desenvolver melhor a diferença entre verdade e Verdade.) Ele não quer arremessar o pensamento para uma igualdade de posições em que toda e qualquer frase tem o mesmo peso – o mesmo valor, tentando usar um termo mais caro a ele – já que não haveria a Verdade. Ele é contrário à ideia de que na ausência de uma Verdade, todos os outros valores se equivalem. Em suma: ele não bate de ombros dizendo que “tanto faz”.

Ao contrário: o Nietzsche ao qual eu me filio é favorável, inclusive, a produção de outras verdades, estabelecidas dentro dos seus próprios contextos. Ele acredita que as verdades estão sempre em disputas e que não haveria como estabelecer uma verdade que seja indiferente à(s) outra(s).

A própria ideia de Verdade é a maior mentira que já nos contaram.

quarta-feira, 3 de abril de 2019

As respostas prontas do ideário olavista ou bolsominion

Se há uma "vantagem", acho, de estar profundamente perdido em relação ao futuro, ser um branco entediado e absolutamente privilegiado, é saber o que passa pela cabeça do, ou me identificar, mesmo, com o ideário olavista ou bolsominion, sem precisar participar dele [porque há limites para tudo]. Não quer dizer que eu concorde com eles, ao contrário, desaprovo profundamente a maneira como eles agem, mas é como se eu soubesse de onde sai toda essa raiva, qual é a origem de toda essa frustração.

Estou falando dessa figura classe média que sente um absurdo vazio e insegurança em relação ao que vai ser de si e do futuro - mas raramente diz isso em voz alta, mais raramente ainda para um homem -, esse personagem profundamente fragilizado, apesar da aparência de indestrutível. Esse personagem fálico, perdido,  mimado, leite-com-pera, que foi criado sob um arcabouço de desejo neurótico, com pais superprotetores, que se sente injustiçado com o seu entorno, perseguido paranoicamente, perdendo direitos, direitos quase divinos, e quer fazer alguma coisa para mudar tudo, voltar a ser como era, e, porque é bom, se considera bom, quer resolver todos os problemas, se filantropicamente, melhor, salvar os ursos polares, acabar com a injustiça social, destruir a violência, ter mais saúde, educação e outras generalidades, desde que não precise se mexer muito do sofá onde navega no celular da Apple pelo Twitter e, em alguns casos, pelos fóruns do 4chan.

É um sujeito raso, que patina sem sair do lugar, sem tesão pela vida, morno, que aprendeu que o desejo é apenas a subjugação do outro e da outra, ou é se tornar o centro do mundo, o ápice da Terra, que recebeu a informação, repetida até a náusea, de que era especial, único, primeiro colocado em tudo, e, se não fosse, o problema não era exatamente dele, mas de alguém que o invejava e atravancava o seu caminho. Um cara narcísico, ressentido, que ganhou como meta de vida a felicidade, esse termo genérico que veio substituir o paraíso cristão, e um pacote, como os de agências de turismo, com metas a prazos a completar para chegar "lá". E quando chega "lá", decepcionado porque não é exatamente como prometeram, é oferecido para ele comprar novas extensões, como jogos de videogame ou de tabuleiro, para que essa busca pela "felicidade" não tenha fim.

Esse sujeito que tem tantos rostos, tantas maneiras de experienciar esse modo de vida, que pode ser menos ou mais sensível ao seu entorno, que pode estar mais ou menos afundado, sem conseguir enxergar um horizonte diferente, que é urbano, mesmo que more em cidade pequena, que é branco, mesmo que seja filho de pardos, que é heterossexual, mesmo que não consiga esconder a atração por outros homens, que é homem-garoto-jovem, mesmo que mulher, coroa, velho, esse sujeito-maioria, que repete fragilmente frases de efeito para si, na tentativa de se manter convencido, tem alguma coisa em comum: está, ou esteve recentemente, sem qualquer perspectiva.

Ao mesmo tempo, esse sujeito estava também com raiva, com energia represada, juvenilmente querendo quebrar, destruir, ser do contra, acabar com a narração principal, descobrir uma verdade subterrânea, escondida, que só ele saberia encontrar, porque ele é único, especial, buscando ansiosamente se descobrir, saber qual é a sua assinatura, sua identidade, sair da posição de desconforto em que não se enxerga, uma posição que ele não está acostumado a permanecer durante muito tempo.

Da combinação desse vazio com o excesso de energia, buscou-se respostas para as perguntas mais genéricas: o que vou fazer na vida adulta? Qual será a minha profissão? O que é desejo? Onde está a minha felicidade? Ele sabia que o formato de vida dos pais e avós não funcionava mais - mesmo que ele não saiba exatamente o que é esse formato. Ele queria sentir o arrepio da descoberta, a surpresa da novidade, queria se sentir de novo especial, como ele se sentia com os pais, quando ele era o centro do mundo - deles. Mas não: agora ele não tem direito a mais nada. Perdeu tudo o que ele tinha, ou achava que tinha.

As respostas prontas começam a aparecer e a se multiplicar. Nada complexo, ao contrário: quanto mais simples for entender e reforçar a ideia de como ele é uma vítima do mundo, de como ele é um perseguido, melhor.

As cotas, por exemplo.
Não é justo que algumas pessoas tenham vantagens sobre as outras, Enzo pensa. Todos são iguais perante a Justiça, todos deveriam ter os mesmos direitos. Por que algumas pessoas têm mais direitos que outras? Não é praticando o "racismo inverso" que vai se consertar uma desigualdade antiga. Claro, a escravidão foi errada, mas já faz muito tempo, os negros poderiam superar esse passado, em vez de carregar o problema até hoje, com mimimi. Por isso que não "evoluem". Eu não tenho culpa se os africanos foram escravizados. Até os próprios africanos escravizavam outros africanos. O vestibular deveria ser baseado apenas exclusivamente no mérito, nada mais. Os melhores entram, os demais vão trabalhar em outro lugar. Assim que é a vida.
Enzo continua a raciocinar, tentando buscar respostas para as suas frustrações, colocando as culpas pelos seus fracassos nas costas de outras pessoas - porque ele é o centro, ele é especial.
O mesmo acontece com esse exagero de gays, ele pensa. Antigamente não era assim. Todo mundo sabe que a felicidade só existe entre homem e mulher. Nada contra dois homens juntos, mas não precisa mostrar para todo mundo. É nojento. Fica no canto, escondido, que nada vai acontecer. Os gays, antigamente, eram mais discretos. Precisa ser tão exagerado? 
Ele não saberia dizer quando seria esse "antigamente", muito menos quer abrir mão de ser o centro das atenções. O principal desgosto é outro, entretanto: como o simples fato de outras maneiras de existir, além da sua própria, afetam diretamente suas respostas-prontas, suas respostas-valise, e, consequentemente, balançam todo o edifício que está tentando construir para proteger sua própria vida. Ele ver um homem beijando outro homem o deixa em dúvida se ele deveria também beijar homens, se isso é o certo. Jamais acessando os próprios desejos, ele nega peremptoriamente, e de antemão, qualquer possibilidade outra que não aquelas que reforcem o lugar que ele escolheu e repete para si, como uma ladainha.

O mesmo tipo de perseguição acontece com mulheres, principalmente mulheres que não compartilham do seu credo. Ou com gente que pensa ligeira ou brutalmente diferente. Ou com gente que defende mais dúvidas em relação ao seu modo de viver do que apenas seguir em frente, como um animal de rebanho. Enzo coloca tudo dentro do mesmo guarda-chuva e os ataca com um único petardo: comunistas! Uma palavra apenas que junta todos os problemas do mundo, bem simplificadoramente. Basta apenas eliminá-la que a felicidade, esse novo paraíso terrestre, chegará, ele parece pensar. Se consegue admitir um pouco mais de complexidade, diria que não ainda, não tão facilmente, porque a eliminação do ideal comunista vai demorar ainda anos, já que estamos contaminados até nossas almas. Devemos resgatar os valores, devemos relembrar o passado, devemos salvar a civilização Ocidental dos ataques do relativismo, do tanto-faz, da pós-modernidade. Ninguém é igual a ninguém, ele grita da janela da sua casa, tentando reforçar suas diferença e superioridade em relação aos demais mortais.

Diante do buraco, se começarmos a nos perguntar demais sobre para onde ir, talvez fiquemos paralisados pela incerteza, pela insegurança em relação ao movimento. Nada parece nos garantir que um ou outro caminho vai nos tirar dessa incerteza lancinante. Se temos apenas uma relação de tentativa e erro, qual critério usar? Enzo sabe bem qual - um que o mantenha no topo da pirâmide social, sem qualquer movimentação. Ele quer a estabilidade para poder se enxergar no espelho e ajeitar o cabelo.

quinta-feira, 21 de março de 2019

É possível quebrar a barreira da nossa imaginação?

Recentemente Daniel Galera criou uma lista de emails, quase retornando aos tempos de COL, e recomeçou a escrever, ato que, segundo ele, tinha sido interrompido há tempos, desde antes do nascimento da sua filha. Na primeira carta, ele enfrenta a temática da paternidade como possibilidade desse hiato, mas coloca outra razão como a grande responsável pelo branco. Segundo ele, o realismo, tipo de literatura que ele pratica, de acordo com o próprio, não conseguiria abarcar o tamanho dos problemas elencados no momento atual. Em outras palavras, ainda seguindo Galera, mas adaptando o seu discurso para as minhas próprias agruras, o realismo não conseguiria descrever, fazer frente, inventar uma nova realidade diante dos hiper-objetos.

O filósofo Timothy Morton criou esse termo (hyperobjects) para descrever "entidades de tão vastas dimensões temporais e espaciais que impedem ideias tradicionais sobre o que uma coisa é, em primeiro lugar" ("entities of such vast temporal and spatial dimensions that they defeat traditional ideas about what a thing is in the first place"). O principal exemplo de Morton e Galera é o mesmo: a crise ecológica, esse evento catastrófico que gente bem mais qualificada que eu costuma chamar de a maior ameaça já enfrentada pelos seres humanos na sua curta passagem por essa bolota apelidada por nós de Terra.

A interrogação do Galera avança por um lado, mas na minha cabeça ela se desdobra rapidamente para outro, repetindo algumas dúvidas já esboçadas, implicitamente, ainda no primeiro parágrafo. A começar, qual seria o papel do realismo? "Descrever, fazer frente, inventar uma nova realidade"? Automaticamente caímos no problema seguinte: como definir o que seria o realismo, hoje, nessas circunstâncias? Seria o reflexo da... realidade? O que estaria, então, no "outro lado"?, o fantástico, o mágico... a ficção propriamente dita?

Parece uma resposta ruim, além de cutucar em uma discussão que não me interessa muito, a das definições, embora haja muita gente boa que já tentou com muito mais habilidade que eu determinar os limites de uns e outros. Talvez essas definições sirvam para se pensar outras coisas, daqui a pouco. Continuemos.

Uma das possibilidades de se definir o realismo, que eu li recentemente não sei bem onde, seria: toda obra que usa dentro do seu universo exclusivamente de recursos e regras que são usuais para o mundo extra-textual. Ou seja, no realismo, a lógica interna da narrativa não quebra a lógica da vida "aqui fora", independentemente das intenções dos personagens. Nada de gigantes ou seres humanos microscópicos, nada de fadas e duendes, de crianças que flutuam e formigas que devoram uma cidade (apesar de esse último exemplo cair mais na categoria improvável que impossível...).

Mesmo de posse de uma definição razoavelmente precisa, é difícil ainda assim nomear uma obra representante de determinada "categoria" porque qualquer definição já nasce, para mim, falha.

Suspeito fortemente que é essa a questão que está assombrando (não exatamente desta maneira) o Galera. A pergunta dele, diante do gigantismo dos problemas que se colocam atualmente, é: o que está acontecendo - para que eu possa escrever alguma coisa? Como "descrever, fazer frente, inventar uma nova realidade" diante da profunda e gigantesca crise ecológica que já, agora, enfrentamos?

Se o cataclismo ambiental é o exemplo principal de um hiper-objeto, ele certamente não é o único. Abrindo um tipo de definição que, suspeito (não li o livro), Morton não tinha como principal (já que ele dá mais foco para a questão ecológica mesmo), podemos pensar em outros. O primeiro que me vêm à cabeça é o crescimento vertiginoso da produção de dados. Como dar conta - como processar tanta informação diariamente? E essa não é uma questão colocada apenas para o escritor.

(Parênteses para dizer que morar no Brasil talvez seja um agravante a esse hiper-objeto, tornando-o ainda mais hiper. Mas se somos um caso excepcional, vamos tentar, ao menos, usar isso a nosso favor e pensar sobre. Fecha parênteses.)

Não é possível, para mim, pessoa física vulgar e banal, tentar entender o que está acontecendo com a velocidade com que as coisas acontecem. Se há cinco ou, vá lá, dez anos, tínhamos uma crise de proporções gigantescas por semana, em média, agora a periodicidade caiu para, sem exageros, diária. Às vezes com mais de um problema assustador por dia, vindo de vários lugares do mundo. Há dias em que é possível elencar diversos escândalos antes ainda mesmo do meio-dia.

Simplesmente não sou capaz de codificar e traduzir para a minha própria linguagem interna - ou seja, entender - o que está acontecendo. Nunca foi possível compreender "tudo", claro, mas parece que o "tudo" agora é ainda muito maior que o "tudo" anterior. Outra volta no parafuso: Como escrever um livro realista diante dessa montanha mais alta que o Everest de dados que são despejados diariamente? Ou ainda: por que escrever um livro realista? Ou ainda mesmo: por que mais um livro - qualquer livro? Por que aumentar a quantidade de dados, que já é avassaladora? Se já se perguntava décadas passadas quem conseguia ler tanta notícia, imagine sobre o que se fala hoje em dia de um livro...

Talvez, nós, em torno dos 40 anos, soframos de um tipo de crise geracional. Nascidos analogicamente, somos bem mais lentos para entender os assuntos atuais que os xóvens. Ou ainda precisamos, para nos sentir confortáveis com temas de importância, de um nível de profundidade que, bem, não existe mais. O grau de argumentação talvez seja mesmo os dos memes e quem tentar fazer uma frase com mais de 280 caracteres pode ser acusado de prolixo - ou velhaco. Ou talvez a única forma de lidar com essa enxurrada diária seja nos escondendo atrás do humor, e assim estaríamos produzindo nossos objetos artísticos por meio de gifs, colagens, frases de efeito, stories, textão... (atenção: isso não é uma crítica a esses novos meios expressivos; ao contrário, é quase uma inveja.)

Se isso não bastasse, ainda há um determinado tipo de massificação de informações que parece, na melhor das hipóteses, ficção. Talvez este fenômeno seja sozinho outro item da lista dos hiper-objetos; é certamente uma segmentação da montoeira de informações. Me refiro às chamadas fakenews. Ou no velho jargão carioca, o famoso caô. Se produz tanta mentira, se divulga tanta enganação, se publica tanta desinformação que não é fácil estabelecer um tipo de solo comum com um interlocutor que vive em outra bolha que não a sua. O que ele considera como "verdade" é bastante distante do que o que você considera. 

Há uma fragmentação profunda do diálogo, só temos grandes monólogos, ou, mais propriamente, gritaria de todos os lados. Quem consegue berrar mais alto acha que venceu por cansaço do adversário, enquanto quem falou menos alto diz que venceu porque não vai entrar numa discussão inócua. Ninguém muda, ninguém quer mudar, todos estamos seguramente inseguros nos lugares que achamos que é nosso, por direito. Mais uma volta no parafuso: Como competir com essa algazarra?

Ou pior: como o realismo, acompanhando a definição ali de cima, como o tipo de produção artística que tenta criar um universo que respeite as regras do mundo aqui fora, escolhe, diante dessa montoeira caótica dos tempos atuais, qual delas é a regra aqui de fora? Um outro exemplo simples: como tentar colocar dentro de um narrativa absolutamente linear, presente em todos os livros menos experimentais, a lógica das redes sociais, ou das múltiplas abas dos navegadores, ou da, enfim, internet?

A coisa fica ainda mais complicada se pensarmos em outros modos de viver que estão sendo descobertos atualmente, nesse mundo em que usamos telefone taiwanês, comemos comida tailandesa, usamos calça feita no Vietnã com tecnologia chinesa de uma empresa japonesa. Isso sem falar em outras ontologias, mesmo, além da Ocidental-moderna-racional. Espíritos entram na lógica de povos tradicionais, por exemplo. Um conto escrito e narrado por um indígena seria considerado realista ou fantástico? 

Mais uma volta do parafuso: Já vi indicações sobre como a ficção científica, e sua liberdade de criar um universo que possa desrespeitar as regras do "mundo aqui fora", criando suas próprias normais e leis, teria chegado muito mais próximo de conseguir, se não retratar, ao menos reverberar o momento atual. Isso, claro, em comparação com o realismo.

Esse gira-gira de parafuso  - que parece em falso - sobre os limites do realismo e a sugestão da busca por outros meios narrativos não é nova, mesmo. Num livro chamado Realism others, um dos seus organizadores, Geoffrey Baker, começa logo na introdução mostrando a querela entre Sartre (a favor) e Adorno (contra) sobre o tema. Sempre se pôde imaginar o realismo como camisa de força da criação, já que os limites, mesmo que bastante amplos, estão já impostos desde a saída. Temos "apenas" o mundo para usar como nossa inspiração. Mas é obviamente uma definição capenga essa. A dúvida que me atinge e, acho, atinge a muita gente agora segue, porém, um caminho por aí. Sem entrar no mérito do que é ou não realismo - porque isso me interessa muito pouco - me pergunto se seria  possível pensar em alguma coisa que quebrasse essa barreira que parece entrevar a nossa imaginação. Ou ainda: Como ir além da... realidade. Como voltar a enxergar horizontes, num mundo em que nos sentimos soterrados do momento em que acordamos até irmos dormir? Como conseguir respirar, acreditar que é possível, sonhar com qualquer coisa que não apenas o que já existe? Ou, para inverter aquela manjada frase lá do Fredric Jameson e torná-la uma questão: é possível imaginar de novo o fim do capitalismo, antes do fim do mundo?

terça-feira, 19 de março de 2019

O niilismo, as fake news e a busca desesperada pela Verdade

(Comecemos com um pouco de história filosófica, mas já já chegaremos na barriga do monstro.)

É difícil mapear todas as possibilidades de interpretação da noção de niilismo na obra de Friedrich Nietzsche. Talvez seja verdadeiramente impossível. Algumas pessoas - outros filósofos de peso - sugeriram alguns agrupamentos. Deleuze foi um deles, na sua monografia sobre o alemão, que diz um pouco mais sobre o autor que sobre o personagem. Para o francês, haveria três tipos de niilismo na obra nietzschiana, todos aparentados, seguindo uma espécie de transformação para se manter igual.

O primeiro tipo teria nascido com a hegemonia do pensamento cristão no mundo e a negação da possibilidade de se "viver" em vida. Isto é: A melhor parte da existência aconteceria apenas após a morte, quando os puros e pios poderiam seguir a eternidade, ao lado de virgens e de anjos. Seria, portanto, necessário negar os prazeres em vida em prol de receber o salvo conduto para o todo e o sempre. Deveríamos nos mortificar em vida para conseguir viver na morte.

O segundo caso é uma adaptação desse processo. Com o advento, ao longo dos séculos, de outras forças que minaram a soberania religiosa, como o capitalismo, a ciência, ou as revoluções do século XVIII, ou, ainda, porque havia uma contradição intrínseca no arcabouço de pensamento religioso que prometia chegar à verdade, mas que só poderia entregar falsas promessas, houve uma transição dos ideais superiores - que antes pertenciam apenas e tão somente a Deus - para outras áreas. Em vez de se negar o hoje para ter um futuro amanhã no paraíso, continuava a se seguir outros grandes modelos sem nunca atingir os objetivos explícitos, tais como uma sociedade igualitária, a solução para todas as doenças do mundo, ou dinheiro suficiente no bolso. De igual, entre os dois niilismos: os valores são sempre importados, transcendentais, impostos.

Naturalmente tal castelo de cartas não aguentaria muito tempo em pé e assim chegamos ao terceiro tipo de niilismo elencado por Deleuze na obra de Nietzsche: na ausência de sentidos superiores universais, ou seja, sem um Deus, um Estado, um chefe, um pai, uma Verdade, enfim, que nos dissesse o que devemos fazer, para onde ir, como nos comportar, ficamos perdidos. Há um grande bater de ombros sobre os assuntos em geral, e sobre desejos e vontades em específico. Um espectro de "tanto faz" que nos assombra e nos impede de nos movimentar, já que todos os caminhos parecem sempre os mesmos - e os primeiros passos parecem constantemente errados.

É claro que não somos, não vivemos em separado do nosso entorno - até mesmo os nossos desejos são compostos (no sentido de estarem em composição) com o que, na falta de nome melhor, chamaríamos "mundo exterior". Mas há algum grau de autonomia, ou deveria haver, nas nossas escolhas. É certo que não sou eu quem me navega, mas também não estamos absolutamente à deriva: podemos estender as velas e segurar o timão em alguma direção. Mas qual?

O capitalismo (e sua forma Estado) conseguiu preencher esse vazio de sentidos-obrigações externas de maneira até bastante satisfatória (para eles) durante um bocado de tempo. A questão do que fazer já vinha dentro de um pacote completo, do nascimento - ou mesmo antes - passando pela infância, juventude, maturidade, até a velhice e a morte. Estude, trabalhe, case, tenha filhos. Faça esportes, seja competitivo, tenha um hobby, se destaque, viaje. Aprenda línguas, programação, seja rebelde, tenha ídolos, se arrependa daquilo que você fez, não daquilo que você não fez.

Não aprendemos a desejar, apenas a reproduzir o que nos falam que devemos fazer. Não à toa a imagem do rebanho é uma das preferidas de Nietzsche: repetimos todo o planejado sem nem mesmo nos colocar em questão se é exatamente isso que nós queremos. (Cabe um comentário rápido: a filosofia sempre se apresenta como libertadora, como abertura de mundo, como uma ferramenta que vai nos mostrar o caminho... e a luz. Entretanto poucos filósofos, proporcionalmente, abordam a questão do desejo, da alegria, da felicidade, da vontade...)

Aqui há uma encruzilhada. Por um lado, o plano capitalista de preencher nossos "buracos" de desejo parece não estar funcionando muito bem - se é que funcionou bem alguma vez. O número de pessoas diagnosticadas com depressão, a ausência generalizada de desejo, só aumenta pelo mundo. Se não aprendemos o que é desejo, se não sabemos como desejar, acabamos atrofiados. Há estudos neurocientíficos que mostram que os caminhos percorridos pelas químicas que controlam o humor do cérebro são bem marcados e dificilmente se modificam sem um esforço consciente sobre isso. Temos que aprender a querer - e querer sempre.

Por outro lado, outras pessoas, não conseguindo nem mesmo permanecer no lugar da depressão, correm atrás de algum sentido maior, alguma resposta - qualquer resposta - para suas principais questões. (A título de curiosidade: sobre essa grandes dúvidas da vida, Nietzsche diria aqui que a pergunta já estaria errada.) Em outras palavras, elas buscam não apenas uma verdade, mas A Verdade pela qual vale viver ou morrer. Não é coincidência o recrudescimento religioso, tanto no Brasil como no mundo nos dias de hoje. Ou o fortalecimento de governos fundamentalistas. Ou até o aparecimento de personagens políticos unidimensionais, em que ou se é a favor ou se é automaticamente contra.

Esses neo-conservadores lutam desesperadamente para manter um fiapo de esperança em algo maior que eles, que daria uma direção para onde eles devessem seguir. São combatentes de primeira linha contra um suposto relativismo em que nós estaríamos decaídos, desde que Nietzsche teria dito que não existe uma Verdade, mas pontos de vista (a frase não foi essa, vocês sabem, mas vale a aproximação). Tal mote talvez representasse muito bem o que Deleuze identificou como o terceiro tipo de niilismo: se não há uma Verdade, tudo é a mesma coisa. Seria uma geografia absolutamente plana, sem qualquer subida ou depressão. Todas as coisas teriam o mesmo valor, se modificando apenas a partir de quem e de onde se olha.

Não é bem assim, claro. Até pode ser que alguém interprete Nietzsche dessa maneira, como um sujeito que liberou o vale-tudo, após "matar" Deus, mas há outra maneira de se pensar a falta completa de parâmetros, uma maneira menos "bater de ombros", e mais propositiva (1). E isso podemos conceder aos neo-conservadores: eles perceberam que não dá para funcionar sem qualquer valor. O problema é que eles, novamente, exigem um valor universal, que seja A Verdade para todas as pessoas, de maneira transcendental, independentemente das próprias vontades de cada uma delas. Ou seja, inibem, novamente, a possibilidade das pessoas exercerem seus desejos, seus quereres.

Os neo-cons foram catar no passado e reformular suas trajetórias para criar uma Verdade toda própria e andando ao largo de outras verdades - muitas vezes em direções contrárias. Se a ciência, por exemplo, é uma ótima criadora de verdades, devemos negar a produção científica, mesmo que se utilize de recursos criados pela própria ciência. Se alguém apresenta uma versão contrária à sua, basta usar o velho recurso ad hominem e xingar o interlocutor, sem se preocupar com rebater argumentos. Devemos inundar as timelines - essas novas ágoras contemporâneas - com informações que reforcem apenas um tipo de discurso, para criar respaldo para a própria Verdade. Se o conhecimento histórico não corrobora seu ponto, muda-se a História e ponto final. Assim, o nazismo vira de esquerda, a terra é plana, as vacinas transmitem doenças.

O meu fenômeno preferido é o da enxurrada - talvez outro nome para manada. Os homens que estão por trás desse movimento têm objetivos mais claros: atingir o poder, ganhar mais dinheiro, manter um tipo de mentalidade aprisionadora. Mas o que explica uma boa parcela da população acreditar que um governo teria, entre outros atos, distribuído mamadeiras com bicos fálicos se não uma vontade imensa de... acreditar? De preencher esse espaço vazio que tinha dentro de si, essa completa ausência, esse desespero, esse sentimento de se sentir perdido, sem saber para onde ir, o que fazer... Ao criar um inimigo claro, você cria automaticamente um objetivo: vencer, ganhar, eliminar. Novamente eles podem voltar a um terreno confortável: o do escravo que obedece às ordens do senhor.

A pergunta fica, contudo: como combater um monstro que se utiliza de todas as técnicas atuais de divulgação de conteúdos, como big data, bots, e, em breve, deep fake, usando apenas da boa vontade? Estamos apenas começando um processo. Se ainda houver futuro, por conta da crise ecológica, saberemos o que vai acontecer.

(1) A quebra da Verdade em verdades, proposta por Nietzsche, não nos leva ao relativismo extremo porque Nietzsche sugere sua famosa transmutação de todos os valores, ou seja, que outros valores, completamente outros, que não possam cair na arapuca da metafísica niilista, assumam o lugar dos valores niilistas da trajetória ocidental.