terça-feira, 26 de junho de 2018

DISTÂNCIAS (conto)

Sem planejar, planejar muito, ele (eu?) entrou num cubículo. Ou num quarto. Dentro de um salão. Era apertado. Tinha espelhos. Um ao menos. Quebrado. Não, não estava. Era paralaxe. Olhou, olhei para frente. Me vi refletido, mas ao mesmo tempo vi... ele. Do outro lado, do lado de fora. Havia uma distância (mínima, imperceptível) entre nós (eu e ele, ele e eu). Eu estava dentro, através do espelho, e ele, aqui, real, carne, osso e derivas, era o meu reflexo.

Era uma sala de espelhos, isso, com vários espelhos. Diferentes “eus” nos inúmeros, mas não infinitos, vidros. “Eus” com formatos diversos: pequeno, magro, pêra, ampulheta, todos, qualquer. Sou todos, a cada momento, ao mesmo tempo, sou um. Somos somados. Se afastando, me aproximando. Especulação, tentativa, suposição, previsão, aposta com o futuro, mirada que nunca ou pode se concretizar, mas só depois, no porvir – esta utopia, esse não-lugar. A cada momento, não sou apreendido em nenhum eu. Passo de um a outro, num movimento constante, que raramente se estabiliza. Só momentos fotografia, flash, um instante.

O intervalo entre um e outro, entre eu e eu e eu, é (pode ser) grande, e não é possível medi-lo. Somos muitos, muito diferentes entre si – uma constelação. Posso ser quase antagônico a mim mesmo, dependendo do ângulo que se olha, e do recorte que se faz. Identidade é apenas estimativa, conjectura.

O pensamento, um pensamento qualquer nasce como lava que brota no fundo do mar e vai criando novos relevos incógnitos maleáveis enquanto não se solidificam. A solidez é a luz que ultrapassa as nuvens pesadas e não pode ser aprisionada na palma das mãos em concha: já começa a sua próxima translação. Como uma câmera que entra em foco no momento exato, para logo em seguida sair, numa velocidade constantemente variável. Piscou, perdeu.

As imagens contrastantes, complementares, não se anulam, ao contrário. Funcionam como polos antagônicos que criam uma estática, jamais parada. Campos magnéticos. Imãs aproximados. Energia em potência. Pode explodir (será?), a qualquer instante. Ao menor desequilíbrio, caminha, escorrega, segue a gravidade para o lado da comporta aberta. Desequilíbrio é movimento. O lado mais forte, pesado, se direciona para o lado mais fraco, leve, como escotilhas que vão se abrindo para equalizar turbilhões de água. Dualidades como pares mitológicos. A tendência é o equilíbrio entre os extremos, mas nunca se o alcança, porque não há linha reta, isolada, sem influência externa. Vivemos já dentro de uma multidão de outros eus que nos atropelam, esbarram, pedem desculpas pelo tropeção. Temos que encontrar os nossos, montar um grupo, cuidar deles, dos nossos. Esquecer o universal, pensar pequeno, do tamanho do meu abraço. Democracia é diferença.

Em outras oportunidades, as forças juntam vetores numa mesma direção, a imagem fica mais visível, clara, com os segundos planos se afastando, como numa aproximação de câmera, ao mesmo tempo em que a lente faz zoom out. Há momentos, ainda, em que as imagens esmaecidas, fracas, criam sombras umas sobre as outras, reforçando determinados perfis e sentidos, ou mesmo cacoetes, difíceis de sumirem.

É possível, nessa sala de espelhos, jogar com os reflexos, criar imagens fantásticas. São brincadeiras, invenções: eu (nós) sem os pés no chão, dançando, mesmo sem música – levitando. Vários braços balançando, dando tchaus consecutivos, uns para os outros, para todos, para ninguém, em forma de cobras amestradas para sambar numa velocidade miudinha. São formas impossíveis, só criadas a partir de artefatos inventados, ilusões de ótica, diversões diversas. Arte, ficção, essas coisas.

Não estou preso, não vejo qualquer âncora. Tenho receio de me perder de mim mesmo e não me encontrar, não mais – mas já alguma vez? Ir, indo, sabe?, e não saber como voltar. Me ver, aos frangalhos, arrependido, num canto, fim de mundo, por que fui? O reflexo estraçalhado, em vários pedaços perfurocortantes, e a jugular ali, tão perto. Mas: sem dramas piscianos. Exorcizamos, temporariamente definitivo. Esquisito, eu sei, mas é isso: seguir, seguir, e acreditar – isso é tão difícil – acreditar que o chão vai estar embaixo do pé antes de andar. Duração. Nunca por segurança, mas coragem, não é? É precisamente imprecisa. Ainda: quero.

Diálogos animados entre as variadas vertentes. Algumas vezes, saio da completa ignorância para o domínio razoável da matéria – material. Não por milagre, elaborando. Carregamos ferramentas que abrem cofres reforçados. Aprendemos a fabricar esse instrumental complexo com lascas de pedras, tocos de galhos encontrados de relance, passando por nós no meio da brisa poluída, maré mareada. Com sorte, somos apadrinhados pela elite da periferia, a realeza da ralé, e ganhamos afagos sobre o couro quente. Se mais excluídos, temos que catar em lixo, buscar os descartes e criar sozinhos nossa própria baixa cultura. Chafurdar em bazares chineses de todas as nacionalidades, qualidade duvidosa e preços convidativos. Desenvolvemos apenas com tutoriais, fóruns desprotegidos, internet discada e broken english.

Só há imagens, nada além da superfície. Sem alma, só dúvidas, que vão batendo bola, entre uma perna e outra, na direção do gol. Às vezes alguma coisa repentinamente fica, se torna chave, se encaixa no segredo, na fechadura, roda, destranca, alavanca, catalisa, abre, e se torna solo, segura, apoia, horizonte, responde, funciona, atua em vários cenários, até que, até que... Não mais. E começa tudo de novo. Rodando, rodando. Rolando. Paciência, maior sabedoria. Somos apenas a antena que capta e codifica. Podemos apenas ficar abertos para sermos atravessados pelos acontecimentos. Nos apresentar, produzir o desejo, na falta. Nos encaixamos desencaixados, sem forma, ou formalismos. Manipular fios desencapados, mesmo na contracorrente, por sobrevivência, para respirar e não sufocar. Tem que, deve ser assim. Parar por muito tempo necrosa. M’entedio facilmente.

Eu sou do contra – rio.

(E eu – olho no olho – vejo você. Um reflexo, uma reflexão. Você em frente a mim, ao meu lado, debaixo de mim, sobre, em volta, dentro, você. Você é outro, outra, outrem mas há áreas de conjunto interseção, entre nós, eu – eu, todos – e você e seus eus. Não sombreamos, nossas fibras se entrelaçam a cada dobra, bailam para se encaixar, animais marinhos das profundezas em ritmo de cópulas. Somos casal, somos indivíduos divisíveis. Meu corpo procura o seu quando as máquinas neuróticas estão desligadas – as máquinas que tentam encontrar o que eu sou – o que é “eu”. Máquinas paranóicas fascistas, em vez de máquinas esquizóides libertárias. Quando elas se esquecem de si, quando elas andam, nós caminhamos sozinhos, e eu esbarro em você, porque você está sempre onde quero devir.)

Para Alyne

sexta-feira, 1 de junho de 2018

Contra uma esquerda

Eu não sou de esquerda. Se de esquerda quiser dizer uma empatia absoluta com todo ou qualquer sofrimento. Ou mesmo, se for ser sempre contaminado pela tristeza de situações tristes, degradantes. Sempre me mantenho à distância desses momentos mais melodramáticos, cada vez mais cotidianos, infelizmente. Talvez eu seja frio [ou cerebral] demais para ser de esquerda, ou anestesiado por gerações de imagens e situações devastadoras. Minha compaixão foi dilacerada. Poucas vezes vejo algo que me captura, me atravessa de uma maneira a eu não poder desviar os olhos.

Isso não quer dizer, porém, que eu ache a absurda discrepância entre os modos de vida e as formas e privilégios de uns [poucos] sobre outros [muitos] - ou muitas outras - aceitável. Ao contrário. É óbvio, para mim, que há algo absolutamente errado com os fatos cotidianos do país e do mundo - e os exemplos são muitos e repetidos ao cansaço. É só lembrar o fato de que apenas seis pessoas - todos homens - possuem o mesmo patrimônio de metade da população brasileira, ou seja de 100 milhões de pessoas. Talvez escrever o número com todos os seus zeros possa dar melhor a discrepância da situação: 100.000.000.

Essa informação me agride como um soco na cara. Isso, entretanto, não me credencia, no meu ver, a ser considerado de esquerda. Ou a uma esquerda que se mantém atrelada a determinados dogmas, ou que nasce apenas querendo mudar o crupiê do cassino de cartas marcadas em que estamos sempre sendo roubados. Eu não sou de esquerda se isso for um qualificativo, uma posição de superioridade, um atestado de isenção moral, em que se há uma linha clara que separa os bons dos ruins. Ou quando se tenta pensar numa sociedade absolutamente igualitária, e se nivela, ou melhor, se estabelece um teto por baixo, fazendo com que todos tenham a mesma característica. Para mim, democracia é diferença, ou não pode ser chamada assim.

Eu me importo com igualdades de solos e não de tetos. E isso não quer dizer uma competição irrefreada por ser "melhor", para subir o sarrafo, ao contrário. Isso também não quer dizer uma liberdade absoluta, ou uma autorização insana por gastar todos os recursos que temos acesso. Diria que é quase o inverso: um mergulho em si, para tentar se descobrir, em todas as suas potencialidades. Já é óbvio, ou deveria ser, que a Terra não mais suporta ser explorada e estragada, os animais não aguentam mais ficar acuados, serem favelizados, as matas não toleram mais serem arrasadas, o solo, espoliado, os rios, os mares, assoreados com venenos plásticos.

Para mim, não é possível pensar numa sociedade em que negros são assassinados industrialmente, com o requinte cruel de o motivo das mortes ser apenas por serem negros. Ou em que as mulheres são vistas apenas como apêndices para as decisões masculinas. Em que os indígenas são encarados apenas como exóticos seres que colorem o folclore. Que os animais se tornem apenas alimentos matáveis ou seres aprisionados como troféus, dignos unicamente de pena. Que os ecossistemas são pensados como vazios demográficos que se precisa explorar. Que a única lógica para a grande maioria do planeta seja extrativista, de exploração até o esgotamento e, consequentemente, o abandono. Não é possível que a única forma de viver é compartilhar uma cidade suja e barulhenta, a bordo de um carro sujo e barulhento, enquanto construo minha carreira como um empresário de mim mesmo, e me vendo como produto descartável em redes de contatos antissociais. Não é possível viver feliz em um mundo em que o dinheiro é o único indexador de todas as outras coisas. Que a arte seja encarada como um escapismo, uma terapia ocupacional, ou um verniz de relevância social, um selo de superioridade no grupo, acessível a apenas alguns divinamente escolhidos. Que apenas uns e outros tenham acesso a bens de saúde, de educação, de segurança, de, enfim, condições mínimas que os colocam em clara vantagem em relação à imensa maioria da população, no jogo que compartilhamos as regras compulsoriamente. É um absurdo que se julgue o caráter de pessoas por suas preferências - sexuais, religiosas, futebolística, política. É bizarro que se tente convencer os outros que as suas próprias opiniões são as únicas que importam.

Mas essas atitudes não me fazem ser de esquerda. Ou não deveriam fazer. É apenas respeitar a dignidade ontológica de cada um dos seres de serem o que desejarem ser, a cada momento.