quarta-feira, 23 de setembro de 2020

COLATERALIDADES (ficção)

Sol, a culpa deve ser do sol
Chico Buarque 

Amanhecia e Paula quase não tinha dormido. Olhos arranhados com areia fina, nervuras vermelhas expostas, cutículas devidamente arrancadas com os dentes, dedos pulsando. Permanecera quase todo o tempo à janela, fumando e observando o nada lá fora: galhos balançando com as brisas, pássaros gorjeando preguiçosamente, o sol nascendo atrás do morro e avermelhando o céu, os primeiros corredores mascarados, motos com escapamento aberto que fazem pega pela avenida longa e vazia, o marido – ou deveria chamá-lo de ex-marido? – apagado no sofá da sala, babando na almofada. Celular jogado perto da mão, copo com cerveja pela metade em cima da mesa de centro, farelos de pão pelo chão, potinhos plásticos de supermercado vazios e engordurados, atraindo mosquinhas. Estava gordo, todos estávamos gordos, ela pensou. Mas Mário estava ainda mais gordo.

Como conseguia dormir?, ela pensou. Ele tinha assistido a uma das muitas transmissões ao vivo pela internet, que vieram substituir todos os outros entretenimentos de antes do confinamento, bebendo, como sempre, como se competisse com o cantor que também estava bêbado, como sempre. Vivíamos bêbados nessa eterna quarentena (“quarenterna”, Mário tentava um dos seus péssimos trocadilhos), mas ele sempre estava mais bêbado. Dormiu no meio do show e eu continuei aqui, na janela, tentando sentir um pouco o vento que parou de soprar há tanto tempo.

Abriu o seu computador, onipresentemente ao alcance das mãos, e pensou em começar a trabalhar. Depois das demissões, com a equipe deficiente, ela sempre tinha algo a fazer, estava sempre atrasada, devendo, sem concentração, cansada. Traduzir era uma maneira de transformar um pouco da ansiedade sem nome e sem previsão de fim em algo produtivo, ou uma forma de adiar esse tédio, um tédio estranho porque não é a falta do que fazer, que se acumula pelos cantos do apartamento junto à poeira.

Olhou para o lado e viu um tufo de cabelos. A casa pertence à sujeira. Certamente a pessoa de quem ela mais sentia saudade era dona Memê. Não importa o quanto eu me dedique, ela pensou, o chão sempre está com uma grossa mistura de fuligem, tecido epitelial morto, gorduras corporais escamadas, farelo rançoso de comida. A pia, cheia de louça, o lixo, entupido de embalagens, de sacos plásticos, de vidros quebrados na pressa, de garrafas vazias. Só a roupa não empilhava mais: havia abdicado primeiro de roupas para sair de casa, depois do sutiã, por fim, pensou em ficar 24 horas por dia pelada, mas ter captado um olhar de soslaio de Mário para os seus peitos a fez mudar de ideia. Voltou com o sutiã.

Aquela casa não era mais dela e talvez nunca tenha sido, mas Paula tinha se esquecido desse detalhe por um tempo. No projeto família feliz, ela se deixou levar sem muita reflexão. Namoro, viagens, morar junto, mobílias compradas nos fins de semana, casamento, festa, tio bêbado, primo vomitando, amigos suados na pista de dança, tocava a música deles e ela com a maquiagem totalmente borrada, ele com um olhar de completude. Isso aconteceu nessa vida? Ela percebeu a arapuca em que havia se metido antes ainda do confinamento. No dia em que ele chegou do trabalho e pediu para conversar. Mário sempre foi muito comunicativo, mas jamais preparou uma cena. Tentei antecipar todas as variáveis: amante, doença, desemprego. Não consegui imaginar algo positivo. Ele me surpreendeu, incomumente: queria ter um filho, e sorriu de um jeito infantil que, nos nossos sete anos juntos, não havia visto, e não iria ver mais.

Parece estranho, tudo parece tão estranho agora, mas se ele soubesse dessa vida merda que a gente leva agora, ele ainda teria tido vontade de ter filho? Se eu soubesse que uma das consequências desse vírus seria a infertilidade, eu teria negado para ele?

***

Como todos os dias, Sandro estava atrasado. Acelerava a moto usando todas as suas 125 cilindradas, e escutava o pedido de socorro da máquina. Sem o trânsito pendular, tão comum naquele antigamente, chegava em até meia hora no hospital, bem diferente do recorde de três horas estabelecido no seu aniversário de dois anos atrás. No dia, não aguentou, cumprimentou a avó o mais rápido que pôde, a avó que tinha ficado acordada só para lhe dar parabéns, e foi chorar de raiva no banho. A avó percebeu, perguntou o que tinha acontecido, mas ele não conseguia fazer nada além de soluçar.

Agora era diferente – como todas as demais coisas, mas de uma maneira diferente. Ao menos, ele se sentia valorizado. Um pouco, ao menos. Sempre foi considerado de segundo escalão. Enfermeiro nem era gente, ele ouvia dos médicos como uma dessas piadas em que só um lado ri. Ironicamente, o vírus tinha diminuído a distância. Não porque Sandro tinha subido algum degrau da escada social, mas porque a vida dos “doutores” tinha ficado pior. Finalmente os médicos estavam fazendo um pouco mais de jus aos vencimentos, trabalhando infinitas horas, de maneira quase ininterrupta. Alguns não sabem nem intubar os pacientes, menos ainda operar um respirador, eu tenho que ensinar tudo, mas pelo menos não escuto mais as piadinhas.

O trajeto é rápido e em geral vazio, menos debaixo dos viadutos da Avenida Brasil em frente à favela da Maré. Antes do viaduto, fica a passarela improvisada com tábuas de madeira, tapumes estragados pela chuva e andaimes enferrujados, erguida após destruírem a anterior, feita de concreto. Do outro lado, as ruínas da construção do ponto do ônibus articulado, eternamente inacabado. Tudo plano para os grandes eventos, que passaram num passado tão outro que parecia então que havia até futuro. No meio, o viaduto, sob o qual os usuários de crack tentam viver, após terem sido expulsos da favela pelos traficantes, se instalando sobre e entre as pedras paralelepídicas concretadas ao chão só para dificultar a vida. Mas eles sempre dão um jeito, sempre dão.

Sandro sente o cheiro característico, uma espécie de solvente sendo queimado aos poucos, misturado com as latrinas abertas. Vê os farrapos esvoaçantes, os colchões esburacados, as cabanas improvisadas, os papelões espalhados, os plásticos, os copinhos transformados em cachimbos, as latinhas, as lâmpadas quebradas, as pessoas invadindo as pistas, cada vez mais desconectadas, flutuando, ele tendo que desviar, receoso, não podia atropelar ninguém, e como eles conseguem dinheiro hoje em dia para comprar as pedras?

Esse era o seu primeiro medo do dia. O segundo era o da contaminação. O hospital onde trabalhava, no Centro da capital, não era referência no tratamento da doença, mas, nessa altura, isso não existia mais. Tudo estava lotado. Os doentes ficam pulando de emergência em emergência na esperança que alguém tenha morrido recentemente e liberado um leito.

Por ter feito alguns cursos de pneumo, ele foi escalado para atuar na UTI. Os plantões se acumulavam. Trabalhava em escala de um para três, depois, um para dois e já tinham sugerido que ele fizesse um para um. Ele só pensava na sua avó, que conseguiu, como diarista, bancar os seus estudos. Desde pequeno quis ser médico, mas sempre imaginou que era impossível entrar na faculdade. O que ela pensaria dele, caso ele não trabalhasse, nessa hora que mais precisam dele? Ao mesmo tempo também pensava: ela já tem mais de 60 anos, é diabética, obesa... Se ele a contaminasse...

“Acabou”, disseram assim que ele chegou, antes mesmo de ele trocar de roupa, ainda segurando o capacete. “O quê? Hum?” “O material de proteção, o EPI acabou...”

***

A parada é o seguinte: a gente se junta pra atacar e depois se espalha, cada um pra um lado. Ainda tem uns maluco passando, aí a gente aproveita e pã, dá o bote, pega tudo e corre. Os verme vêm atrás, mas não dá pra pegar todo mundo. Escolhem um e corre atrás. Pegaram o Mindinho e o Mais-gordo. Já deram uns tiro em mim, mas eu sou malandro, não dou mole.

A gente dorme onde dá, mas nunca junto. Vim pra cá porque é melhor, tem mais gente. Agora tá foda. Tudo fechado. Eu ficava ali na lanchonete da esquina, o China sempre me dava caldo de cana e pastel. Era pastel de vento, mas melhor que nada. O China até tentou abrir, mas ninguém ia, aí ele fechou.

De vez em quando chega umas mulher, umas mulher aí com carro e distribui quentinha. Elas vão ali pra Carioca, e fica lotado, mas sempre dá pra comer. Tem gente que não sai mais da Carioca, pra se proteger. Eu prefiro andar por aí, não ficar preso em lugar nenhum.

Elas tão sempre de máscara, a gente deve tá fedendo muito. O Mosquito disse que é essa parada aí, o vírus, eu não entendi. Parece que tá todo mundo morrendo. Será que é o fim do mundo? O Mosquito que fala que é crente falou que é. E aí, o que acontece quando o mundo acabar? A gente morre também? E aí? O Mosquito fica falando essas parada aí, de paraíso, de inferno. Mó mala. Se tiver essas parada, to fudido. Vou direto pros braço do capeta, e aí ele vai ter que me aguentar. Hehehe.

Às vez fico pensando como deve ser essa parada de inferno. Não deve ser mais quente que o asfalto no meio do verão. Já vi aquela parada, como é?, termômetro, essas parada aí marcando 50 graus. Mermão! 50 graus! E tu lá, com a cara no asfalto, e o asfalto balançando, dançando, rebolando pra tu. Duvido que o inferno seja mais quente que asfalto em dia de verão. Aí eu fico pensando: como é que cê passa o dia no inferno? Tem comida no inferno? Tem loló no inferno? Tem mulherzinha no inferno?

Essa parada aí de inferno deve ser mó chatão. Todo dia a mesma merda, sem porra nenhuma pra fazer. Pior que o inferno só mesmo o paraíso. Aí que eu morro de chatice. Morro de novo, né, porque eu já vou tá morto! Hehehe. Fora que não vou conhecer ninguém lá! Hahahaha. Mó solidão da porra, e eu lá, andando no gramadão verde! Mas desse mal eu não vou sofrer. Eu vou pro inferno.

Que merda. Acho essas parada tudo bizarro. Eu falei pro Mosquito: Não acredito nessas parada aí, não. Ele falou que eu vou pro inferno. Eu falei: de novo? Quantas vezes eu vou pro inferno? Acreditar ou não acreditar não muda porra nenhuma, eu disse pra ele. Prefiro não acreditar. Sei lá, nem me importar com essas parada.

Minha vida é uma merda, mas é minha. Tu acha que eu gosto de dormir com a cara no papelão, no meio da sujeira? Porra nenhuma. Os verme vêm e dá porrada na gente também, mó merda. Um dia um cara tentou na madrugada, eu tava dormindo, ele tentou me enrabar, porra! Eu bati tanto nele, tanto, eu bati de quebrar o pau. Depois eu ouvi que ele morreu, mas foda-se, vai se fuder, rapá, vai querer me comer, vai tomar no cu, vai morrer, porra!

É uma merda a minha vida, com esse corpo ainda, uma merda, mas eu não tenho outra, e, porra, não quero viver no inferno. Aqui, pelo menos, eu posso fazer o que eu quiser. Quando dá.

***

Eu não tinha ideia de que era a última festa que eu iria. Ninguém ali, acho, tinha. A gente ficou fazendo piada: Aqui, o vírus tem que entrar na fila dos problemas. Não entra nem no top 10. A dengue e a zica vão cuidar do vírus, podeixar. Os risos que a gente dava eram nervosos, entretanto. Como se tentando conjurar um futuro que ninguém sabia ao certo como seria, se seria. Será que, então, a gente pressentia, já naquela época, o que aconteceria na pandemia, como animais fugindo antes do tsunami?

Eu fui sozinho, Paula não quis ir. Já tínhamos decidido a separação, mas um divórcio não ocorre tão rapidamente como desejamos, é preciso alugar uma casa nova, decidir quem fica com o sofá, separar as contas conjuntas. Há uma preguiça misturada a uma impotência a uma fraqueza a uma tentativa de evitar olhar de frente o problema. Se ela soubesse que no dia seguinte já começaria a quarentena, ela talvez tivesse ido. Ou talvez tivesse ido embora.

Na festa, a única pessoa que parecia não-ironicamente preocupada com o vírus era o Leandro. Biólogo, trabalhando em laboratório, sempre pensando em ciência, um pouco apocalíptico demais, mas sempre agradável conversa, ele não quis apertar a mão de ninguém quando chegou. A gente logo rodou os olhos e pensou: “é o Leandro, né?”. Em seguida, ele se manteve a uma distância razoável das pessoas, meio que isolado. “Por que ele veio, então?”, alguém atrás de mim falou.

As dinâmicas de festa são imprevisíveis e, pouco depois, eu acabei próximo a Leandro, num canto da festa. “Curioso o nome que deram para essa doença, né?”, tentei ser simpático. “Como assim?”, ele saiu dos próprios pensamentos no meio da frase. “Ah, é uma sigla. Achei bem a cara do nosso tempo, em que as pessoas riem escrevendo LOL, hahahaha ou rs.” Ele pareceu se interessar e se aproximou, mas parou a tempo de assegurar a distância. “Será que daria para fazer um estudo sobre os nomes das doenças e o que elas representam às suas épocas?”, ele disse se empolgando, “‘Peste negra’ é um nome bem dramático, digno de uma época em que as pessoas morriam de amor, lutavam por honra, respeitavam reis e o papa.” Sorri e tentei contribuir: “Influenza deve ter alguma coisa a ver com as navegações espanholas.” Ele catou o celular e me corrigiu: “Na verdade, vem do italiano, e, por sua vez, do latim. Foi usada pela primeira vez por um médico italiano para reforçar a relação astrológica com os estados de espírito e as doenças.” “Que loucura!” “Quer dizer que você não acredita em astrologia?” “Você acredita?” “Claro que não! Mas achei curioso você não acreditar. Hoje em dia, todo mundo acredita.” “Eu só acredito profissionalmente: tenho que me manter antenado no que as pessoas gostam, querem, precisam...” “Publicitários...” “Alguém tem que vender aquilo que ninguém compraria caso ninguém vendesse!” Os dois rimos e percebemos que estávamos muito mais próximos que a distância segura apregoava. Na verdade, estávamos nos encostando. Ficamos um pouco sérios, o que no caso do Leandro ressaltava ainda mais seu maxilar quadrado e o queixo pontudo, uma versão com acabamento pouco delicado do super-homem dos quadrinhos.

Naquele momento, alguma coisa aconteceu em mim e eu não sei bem explicar a razão. Talvez o gin, talvez a proibição da proximidade, talvez a minha separação estivesse batendo diferentemente. Eu fiz um carinho no rosto dele. Passei os dedos da minha mão pela testa, depois fronte, depois bochecha, maxilar e queixo. Ele deixou. Foi estranho. No momento em que eu o toquei, vários sentimentos me preencheram, muitas vezes conflitantes, mas ele mordeu mais forte e vi um músculo do rosto se retesar, aí olhei para o pescoço e percebi outro músculo que estava tenso, teso. “Vamos para o banheiro?” Tenho certeza de que não fui eu a convidar, mas ele também não tinha falado nada. Eu devo ter dito sem nem perceber – o gin estava fazendo mais efeito que eu poderia controlar.

Nos agarramos de verdade no banheiro, com uma violência que nenhuma mulher que eu conheci já tinha colocado em ato, e em seguida, um apagão da minha memória. Amnésia etílica, suspeito. Não lembro muito bem até onde fomos, só sei que assim que saímos de lá, eu resolvi ir embora, sem me despedir de ninguém, sem falar nada. Tropeçando escada abaixo, peguei o primeiro táxi que passou, e, ao chegar em casa, me joguei na cama, ainda de roupa e sapato.

Não me considero gay, ele também não, tenho certeza – eu conheci até a última namorada dele! –, mas, desde que a quarentena começou, tenho sonhado com frequência com o que aconteceu ou poderia ter acontecido naquele banheiro e invariavelmente acordo excitado. Estou bastante confuso e sem ninguém com quem conversar. A gente nunca mais se falou e não saberia o que dizer para ele – desculpa? Saudade? Que pena? Que bom que foi? Não me lembro de nada? – mas confesso que bebo todos os dias para me derrubar.

***

Deitada no chão frio e sem camisa, dona Memê tentava aplacar o calor que não tinha sumido com o vírus, enquanto escutava a pregação do rádio do lado da cama. Quando o pastor começou a dizer que Jesus iria curar a pandemia, ela se levantou e desligou o aparelho. Não ia à igreja há quatro semanas, e, nesse período, descobrira um buraco que só aumentava dentro dela.

Saiu de casa uma única vez, nesse período: para tentar pegar o dinheiro a que tinha direito, da renda básica, mas antes de conseguir sacar o valor, teve um pequeno ataque de pânico dentro da agência lotada. Na volta para casa, viu uma cena que a deixou ainda mais assustada: um grupo de crentes da sua igreja ajoelhados nas calçadas do seu bairro, orando para acabar com a pandemia. Chegou em casa ofegante.

Teve que se virar com as diárias que algumas patroas ainda depositavam para ela, na conta do neto. A madame do Leblon foi a única que condicionou o pagamento a ida de dona Memê para trabalhar, porque ela não queria dar “esmola” – foi a palavra usada.

Hermengarda de Souza Lemos morava nesse prédio em Queimados desde sua construção. Era um desses projetos de habitação popular que, a cada retorno de Saturno, abre oportunidades para quem tem pouco ou quase nenhum dinheiro guardado. No meio dessas voltas, outra das características era o abandono progressivo das construções. Nas últimas décadas, esse abandono foi associado também ao crescimento das invasões por homens armados cobrando taxas para que as pessoas não precisem pagar taxas para as empresas de energia, de gás, de água. Dona Memê não pagava essas taxas para esses homens e era mal vista por eles.

Fazia um café ralo e enchia de açúcar, mesmo sendo diabética, para a contrariedade do neto, que ela criou, já que a filha, mãe do neto, tinha fugido com um homem e deixado o moleque para trás. Não era a única maneira de contrariar o neto. Ela também não respeitava todos os limites que ele tinha imposto na casa. Agora, ele tinha feito um acordo no hospital para trabalhar diariamente, em plantões de 12 horas, sem descanso nos fins de semana. Folga, só de duas em duas semanas. Ele chegava em casa só para dormir: ficava no quarto e não saía para nada. Tomava banho e comia no hospital. Só não dormia lá porque não tinha espaço. Ela entrava no quarto dele e deixava uma bananada sobre a cama. Ao chegar de noite, ele reclamava, de longe: “Vó! Não é para a senhora entrar aqui! É perigoso!” Ela sentia o buraco crescer um pouco mais.

Depois de tomar o café, dona Memê não tinha muita coisa para fazer. Não conseguia ler a bíblia, porque os olhos estavam falhando. Se sentava diante da TV, ligava nos televangelhos e ficava assistindo até que o pastor falasse algo sobre a proteção divina contra o vírus – aí, ela não aguentava e desligava o aparelho. Não que ela duvidasse do poder do sangue de Jesus, nem sobre o fato de a humanidade estar recebendo o troco dos pecados que praticava, mas não achava que Deus iria resolver todos os problemas sozinho. Para ela, o sopro divino nos dava ânimo para completar nossas missões. Os milagres eram feitos por homens e mulheres como... como... como Sandro. A campainha tocou.

“Dona Memê, quanto tempo!” Era Anselmo, cabo da polícia militar nas horas vagas, que fazia sua ronda, falando entre perdigotos. “O que você quer, seu Anselmo?”, responde dona Memê limpando uma gotícula que acertou sua bochecha. “O que é isso, dona Memê? Eu estava passando aqui e senti um cheiro de café e pensei se a senhora ainda teria um...” “Acabou.” “Que pena, que pena. Dona Memê, mesmo que a senhora não goste de colaborar com a gente, eu to passando aqui para dizer que a gente vai reabrir o comércio aqui da vizinhança porque o Brasil não pode parar, não é mesmo? Tem muita gente que exagera e...” “Sandro não exagera.” “Como assim, dona Memê?” “Sandro diz que esse vírus é traiçoeiro. Uma praga.” “Ah, dona Memê... acho que o seu filho...” “Neto.” “Neto está desinformado. Desatualizado, vamos deixar assim.” “Ele vai trabalhar todos os dias, de manhã cedinho, no hospital, ele não está...” “A gente vê ele saindo de moto. Aliás, ele sempre sai muito avoado. Pode acontecer alguma coisa com ele... É melhor ele tomar cuidado...” Ela gela, mas não deixa transparecer. “É só isso, seu Anselmo?” “Vou deixar aqui meu telefone, para o caso de a senhora precisar de alguma coisa.” “Sandro falou para não pegar em nada que tenha sido tocado por outra pessoa.” “Bobagem”, ele diz e mantém o braço estendido com o papelzinho, ela permanece imóvel. Ele dá uma tossida forte, protege a boca com o dorso da mão que segurava o papel, e continua: “Bem, vou deixar aqui no chão, então. O que precisar, pode falar conosco.” Ela bate a porta com mais violência que o necessário e deixa o papel do lado de fora.

***

Os prédios autorizaram as construções de puxadinhos nas janelas onde os drones poderiam pousar para fazer entregas. Paula recebe um pacote da farmácia com remédios de tarja preta para se acalmar e dormir. “Obrigada”, ela diz para aquele bicho metálico com quatro hélices em paralelo, que responde levantando voo em silêncio. Passando displicentemente as mãos pelas paredes esverdeadas de infiltrações, Paula leva o pacote para a cozinha. Pega um copo com água e vira dois comprimidos na boca. Volta à janela, onde ela passa o máximo de tempo, observando, observando. No horizonte, o grande morro, que tapa o sol ao nascer, totalmente careca, amarelo-avermelhado, sem árvores, arbustos, gramíneas, seco. Alguma coisa lhe chama a atenção. É um outro bicho voador, um inseto, mas não uma mosca ou mosquito, que ela identificasse de primeira. Logo vê outro e mais outro, todos iguais, voando na direção do seu vizinho. Mete a cabeça para fora e olha para o lado: um imenso vespeiro feito de barro e terra cobrindo quase toda a janela da sala, que dá o aspecto de uma caverna paleolítica para o apartamento quando visto de fora. Sua primeira reação é colocar a cabeça para dentro de novo. Depois, volta e tenta ver se elas tinham feito ninho em outro lugar, na sua casa, nas outras construções, nos carros e fica focada nessa busca até ser despertada por uma sirene. Diferentemente dela, as vespas ignoram a chegada de uma ambulância e de um rabecão, bem no seu prédio. Os homens paramentados com roupas que ela só tinha visto em filmes entram correndo portaria adentro e Paula fica imaginando em qual andar jaz o morto da vez. Em menos de meia hora, eles voltam com uma pessoa dentro de um saco preto. Ela busca pela janela o vizinho que tinha sofrido a perda e encontra umas mãozinhas bem pequenininhas do lado de fora dando tchau para o corpo sendo levado. Começa a hiperventilar e tem que se sentar na cadeira. Cruza as mãos sobre o ventre, como um cinto de segurança abdominal. De alguma forma que ela não procura entender, ela vê os próprios genes sofrendo uma mutação, os genes de todas as pessoas tinham mudado, e agora ela só é capaz de procriar com uma única pessoa, aquela com quem esteja passando toda essa quarentena. Mário. Ela não quer procriar com Mário. Não quer deixar mãozinhas pequenas dando tchau pela janela – principalmente sendo Mário a segurar essas mãos. Se vê como pertencendo a uma raça diferente da raça do vizinho, dos amigos, de todas as outras pessoas com quem ela conviveu na vida. Corpo mais azulado, menos denso, mais aquoso, olhos arredondados e maiores. Pensa que quando acabasse o confinamento ela não seria capaz de encontrar mais ninguém compatível com ela. O fruto de cruzamento de raças diferentes seria filhotes com defeitos genéticos, filhotes estéreis, uma raça inferior. A espécie inteira teria se degradado e diversas outras aparecido. O contato que sobrou para ela é Mário. Fica nervosíssima e sai correndo em direção à saída do apartamento, mas no lugar onde havia a porta, agora só encontra uma parede. Bate e bate na parede, desesperada, tentando quebrar os tijolos e fugir, bate e bate, com força, de machucar as mãos, mas ignora a dor e continua a bater até que desperta.

Se apoiando nas paredes, ainda zonza, suada, rosto inchado, vai para o outro quarto ver Mário, como ele está. Encontra o marido dormindo, mas excitado, com o pau mais duro que ela já tinha visto na vida nele. Ele passando a mão, como se fosse sem intenção, mas aparentando gostar. Ela não para um segundo para pensar. Parte para cima. Arranca as calças compridas dele, despertando Mário, e sem qualquer aviso senta sobre o marido. Mário fica um pouco assustado, não espera essa reação da mulher, mas decide interagir com Paula, que cavalga, primeiro vagarosamente e aproveitando toda a extensão do marido, subindo e descendo, quase perdendo o contato na subida, mas habilmente abocanhando na volta, na descida, gemendo no ritmo do movimento, percebendo o corpo sendo tomado por um calor incontrolável, uma manta líquida quente e invisível, que dá ignições, ligeiras chamas tomando conta das exterioridades do corpo, sendo absorvidas pela pele, incêndio submergindo em brasa viva, em seguida, já embebida nesse líquido-inflamável, inflamado, começa a aumentar a força na cavalgada, rapidamente atinge a violência pura, fogo se alastrando, quase pulando com o corpo sobre Mário, incêndio descontrolado, agarra com as unhas os ombros dele, arranhando a pele, sangrando, ele começa a gritar também entre a dor e o prazer, percebendo o fogo também nele, pega nas pernas de Paula, para mantê-la presa, percebendo a cabeça do seu pau sendo maltratada, triturada, ela batendo o ilíaco no seu baixo ventre, como que incentivando a produção ritmadamente, percebendo as ondas de prazer subindo e descendo à velocidade da cavalgada violenta de Paula, que muda para uma terceira velocidade, agora mais rápida ainda, com menor extensão, idas e vindas descontroladamente controladas, deixa o tronco em paralelo sobre o dele, os olhos fechados, os dois respirando ao mesmo tempo, grunhindo juntos, gritando juntos, os corpos queimados, incendiados, unidos, até que explodem ao mesmo tempo.

Rosto enfiado no travesseiro, Paula tinha acabado de desabar de bruços sobre o curto espaço da cama de solteiro à mostra. Ela permanece alguns segundos desmaiada, sem respirar. Por sua vez, Mário cai num leve sono em que pedaços do sonho que ele estava vivendo voltam para se misturarem com o ataque sofrido na vigília. Nessa mescla, Mário não estava com Paula, mas com Leandro, Leandro que o tinha atacado. De supetão, sem conseguir respirar, Paula levanta a cabeça assustada, buscando ar. Olha para baixo de si e vê Mário que a observa também despertado com olhos bem arregalados. Ela fica alguns instantes em silêncio, antes de desmontar de Mário. Trôpega, caminha para fora do quarto, mas para à porta, sentindo um gosto estranho, um peso dos mais pesados, como se a gravidade estivesse mais grave apenas sobre ela, e começa a gritar: “Eu quero que você vá embora, Mário, hoje, agora, já! Eu nunca mais quero te ver na vida!”

***

Nos últimos dias, Sandro havia reparado em um detalhe novo quando passava diante da Maré: além dos cheiros característicos, do visual degradante, ele estava também escutando uma bateria desafinada de tosses e respirações em falso, gente tentando inspirar, mas sem força o suficiente para capturar o ar para dentro dos pulmões. Mesmo atrasado, ele para na frente do amontoado de pessoas. Havia grupos diferentes, espalhados, como pequeníssimos clãs, com regras próprias. Olhava para os farrapos e só conseguia pensar: queria que eles morressem rapidamente, o mais rapidamente possível.

***

Antes mesmo de comer qualquer coisa, Mário sai para a rua. Veste uma bermuda, coloca uma camisa qualquer, calça os chinelos e sai, sem pentear o cabelo, lavar o rosto, sem qualquer máscara ou proteção. Sai do prédio, sob os olhos reprovadores do porteiro, que se lembra que o prédio tinha vários senhores de idade, e Mário está expondo a todos, mas Mário não consegue pensar nisso. Ele só pensa em como se sente injustiçado, em como ele quer continuar casado com Paula, construir uma família, e como ela é insensível em relação ao que eles construíram juntos.

***

Mosquito começou a tossir. Aí é foda. Essa porra vai dar merda. Vai matar geral. Essa porra é porque o homem vai lá e fode a natureza. Fica destruindo a porra toda e não sobra nada. É burro, tudo burro. E pra quê? Quero ver comer dinheiro! A gente às vezes consegue uns dinheiro de uns ganho aqui mas não tem lugar pra comprar nada. Que que adianta ter esses notão? Onça, garoupa, essas porra serve de porra nenhuma quando não tem comida! O pessoal vai morrer geral. Ouvi que o Cabeça tentou ir pro hospital ali perto da Central, mas não tinha vaga. Morreu ruim, na rua, o viado. O bando todo tá fudido, se morre um, morre todo mundo, como quando voa os pombo. Agora vai cair geral. Mas alguém vai sobreviver nessa porra, alguém com muita sorte.

***

Tinha um peso sobre o peito e um cansaço enorme rondando Dona Memê. O corpo doía e ela estava com dificuldade de locomoção. Virou o corpo para o lado para se levantar da cama, mas quase caiu de novo com a tosse seca, forte, uma turbina. Ela não podia se abater, tinha que fazer comida e deixar pronta para o neto – mesmo que ele não comesse. Pensava em Sandro e sentia uma saudade imensa do menino – apesar de morarem na mesma casa, parecia que estavam há quilômetros de distância. Queria só mais uma vez, só mais uma vez abraçá-lo. Gostava do jeito que ele colocava a cabeça no ombro dela, ele fazia isso desde pequenininho e nunca mudou, mesmo tendo virado um homão de quase dois metros. Ele estava combatendo o vírus, o vírus que ele dizia que era o pior problema que o mundo já enfrentou. Acho que ele quer me assustar, ela pensa. Dona Memê passa um café e se serve. Pega o saco de açúcar para ver se tinha algum problema e coloca mais uma colher na xícara, já que não está sentindo o doce.

***

Um rapaz da sua idade para na frente de Sandro enquanto ele observava os crackudos deitados. Sandro fica impressionado em como o garoto se parecia com ele próprio, apenas bem mais magro, os olhos mais fundos, sem camisa, a bermuda caindo de larga. O garoto é uma versão sua, Sandro pensa, uma versão sua do outro lado do espelho, de outra dimensão. O garoto começa a se aproximar dele, com os braços estendidos e Sandro só tem tempo de acelerar e fugir.

***

Por onde andava, as pessoas olhavam para um desmascarado Mário, alguns com reprovação, cochichando ao fundo, ou xingando em voz alta, outros apenas curiosos, sem entender por que ele estava se arriscando assim. Ele continuava atravessando os bairros sem prestar atenção em onde andava. Se ele soubesse exatamente o endereço de Leandro, ele iria para a casa do amigo. Leandro o receberia, de um jeito que Paula é incapaz. Não conseguia entender a reação da mulher... Por que não é ela a se mudar, já que ela quer tanto se separar...?

***

A galera tá marcando de ir lá pra perto do hospital, ali na Central. O Buiú chegou e falou: “Aí, Pixota, geral vai ficar por ali porque tem coisa acontecendo lá. Tem gente, tem comida e qualquer coisa dá para subir pra Providência”. Duvido que os verme tem coragem de subir a Providência, falei pra ele. Aí, neguim, aí tu vê que eles são frouxo, frouxo mesmo. Buiú se engraçou: “tu é mulher, mas tu é sinistra”, dei um tapa na cara dele e só parei porque me seguraram. Que mulher o caralho, mulher, mulher... Só nasci com esse corpo, mas não sou mulher porra nenhuma.

***

Sem conseguir parar de chorar, Paula acompanhava a culpa se alastrar por onde antes o fogo tinha preenchido o seu corpo. O que de mal tinha Mário? Ela pega um comprimido e joga na garganta. Pega o segundo. Observa o frasco e aperta o vidro entre os dedos. Afasta. Aproxima. Pega mais um. E outro. E mais outro. Tenta engolir, mas começa a tossir sem conseguir parar e os comprimidos voam da sua boca. Só para já sem fôlego. Abaixa a cabeça, segurando-a com as mãos espalmadas.

***

Deitada no sofá da sala, dona Memê está com o cartão de Anselmo. Não podia atrapalhar o neto, ele estava salvando vidas, mas precisava ir para um hospital. Olha para os números e o nome de Anselmo escrito com caneta preta.

***

Exausto, Mário chega ao Campo de Santana, fechado por conta da pandemia, e segura nas grades, olhando para dentro e vendo as cutias correndo entre os pavões, os gansos, os patos, os gambás.

***

Ali, aquele ali, tá dando mole.

***

Paula pega o telefone e disca um número.

Ao desligar, começa a arrumar as malas. Ao terminar, ela veste uma máscara, dá uma última olhada para o apartamento que nunca foi seu, e sai de casa.

***

Sandro entra com a moto na rua do hospital, colado ao Campo de Santana.

***

Dona Memê amassa o papel com o nome de Anselmo e joga longe. Pega o telefone.

***

Os moleques vão em direção a Mário e o cercam. Ele está avoado e não entende o que acontece. Os garotos o derrubam e Pixota mete as mãos nos bolsos dele. Arranca o celular e acha a chave de casa, arremessa longe. Não tem mais nada. “Cadê a grana, o comédia?! Cadê!?” Mário tenta se desvencilhar, se arrastando para a grade do Campo de Santana. Os moleques começam a chutar Mário com força. Quebram um dente, sangram o seu nariz, incham seu olho.

De longe, Sandro observa o ataque e acelera em direção aos moleques que se levantam e se espalham, sumindo em segundos. Sandro para ao lado de Mário: “Tudo bem?” Mário só consegue balançar vagarosamente a cabeça.

Dona Memê liga para Sandro.

O telefone de Sandro começa a tocar. Ele tira o capacete para atender e se afasta um pouco da moto. “Volto já, um segundo...”

Dois policiais entram correndo na rua, com as armas em punho e olham Mário, branco, deitado, ensanguentado, e Sandro, negro, cabelo crespo, de pé, telefone em punho, moto ligada, e começam a atirar.

A primeira bala acerta o pescoço de Sandro que cai no chão como que desmontando.

No visor do celular está escrito: “Vó” e os botões de atender ou desligar.