quarta-feira, 1 de julho de 2020

O DEMÔNIO DA MEIA-NOITE [ficção]

A perene ampulheta do existir será sempre virada novamente – e você com ela, partícula de poeira!
Nietzsche

A carta chegou num dia banal. Tinha acabado de acordar, às 6h, como todos os dias, visitado o banheiro e me encaminhava para a cozinha para passar o café quando vi diante da porta da rua um envelope branco, sem qualquer identificação, pousado aleatoriamente, acabando com a simetria perfeita dos tacos do meu chão. Está contaminado? É a minha primeira pergunta. É uma bomba biológica, com vários agentes que podem destruir minhas imunidades e me fazer morrer em questão de horas? Posso controlar minha paranoia quando lembro que eu não sou ninguém. Qualquer tipo de esforço nesse sentido seria, no mínimo, uma perda de tempo para quem quer que fosse. Minha autoestima nunca me deixou ser um paranoico clássico.

Como higienizar papel?, é a segunda questão que me ocorre. Busco na internet e não encontro nada muito confiável. Sei que a peste pode ficar ali por horas – ou seriam dias? Antes de pegar, eu preciso limpar a celulose. Ainda me ocorre me perguntar sobre por que eu devo pegar uma carta de um desconhecido, mas a empolgação com algo que quebra as minhas expectativas, passa por cima das minhas interrogações mais controladoras. Eu estou com palpitações! Eu preciso saber o que é aquele papel ali. Papel. Eu fico repetindo para mim. Papel. Quem tem papel e envelope em casa? Papel! E chego a esboçar um pequeno sorriso, como não dava há tanto tempo que eu não sabia o quando. Pano e álcool 70, como sempre. Passo por fora uma quantidade pequena para não inutilizar o papel, e o levo para o sofá. Abro o envelope e outra vez o procedimento, com o cuidado para não manchar as letras. Não tenho a mesma sorte e algumas palavras ficam borradas, mas dá para entender o todo, acho.

O meu sorriso desaparece à medida que avanço. Agora eu consigo organizar melhor a minha interpretação – porque, na hora, eu fiquei confuso, e não conseguia entender, e relia, mas não entravam as palavras, eu entendia cada letra, os vocábulos, cada frase, mas elas não se encaixavam e não tinham um sentido, e relia, e reli – a carta condensava em pouquíssimas linhas os quatro momentos da guerra. Para não a copiar, vou tentar reproduzi-la: Foi escrita pela mulher de um casal idoso, meus vizinhos do outro lado do corredor em uma linha reta transversal, gente de que eu me lembrava muito vagamente, ele gordinho, baixo, óculos grandes e redondos, ela, quieta, igualmente baixinha, mais preocupada com a aparência, mais ressabiada. Os dois nunca foram de conversas, chegavam a ser rudes, como quando passavam sem cumprimentar. Ela escrevia que o marido tinha uma doença autoimune e precisava de uma medicação que, por conta de declarações de que era um remédio contra a peste, estava em falta generalizada. Eles não pediam dinheiro, eles não pediam nada além de informações sobre como obter o remédio. Eles ainda tinham remédio até o fim do mês, mas ao virar da folhinha, ele estaria completamente desprotegido. Que dia era hoje?, me perguntei e fui ver que não havia muito tempo: dia 20. Eu não tinha qualquer ideia de por onde começar, mas eu queria ajudar.

***

Estávamos numa espécie de quarta e mais duradoura fase de toda a guerra, como foi chamada por todas as autoridades. Era uma guerra curiosa, em que não há inimigos, um rosto, alguém para odiar, uma guerra em que só há os mortos, os feridos, os sobreviventes, e os incompetentes. Esta é única fase que certamente não tinha qualquer previsão para se acabar. As outras, as anteriores, produziram sentimentos paradoxais. Apressaram mudanças que estavam represadas ou adiantaram outras que evitávamos com força para nossa proteção, ultrapassando limites que nos davam segurança.

Primeiro vieram o susto e as negações: não era possível, como pode, assim vamos quebrar, esses números não são verdadeiros, é muito barulho por nada, vai afetar apenas os mais velhos, é preciso salvar a economia. Nos trancamos em casa, mas ainda tínhamos alguma mobilidade. O principal problema, além das mortes no varejo que começavam a aparecer, era a ansiedade, a insegurança. As informações oficiais pareciam orquestradas para serem incoerentes e causar ainda mais pânico.

Esse primeiro momento não me afetou muito. Ao contrário. Talvez pelo excesso de precaução, eu sempre imaginei uma catástrofe de proporções parecidas com a dessa primeira fase. Foram anos antevendo uma desgraça enorme e o quanto eu deveria ser autossustentável para não ser afetado por ela. Eu tinha uma pequena horta no meu apartamento, com cenoura, rabanete, alface e ervas. Eu fazia pão, queijo, iogurte, granola, produtos de limpeza e higiene pessoal e cerveja. Eu cortava meu próprio cabelo e praticava exercícios físicos em espaços exíguos, regularmente. Tinha uma coleção de livros ainda sem explorar e internet o suficiente para me abastecer de filmes e séries indefinidamente. Me adaptar aos procedimentos de higiene foi apenas acrescentar mais uma rotina para a minha série de rotinas. Era um tempo em que nada aconteceu. As mortes eram distantes, números pequenos de início de guerra. Era a fase em que a nós cabia apenas ficar em casa para diminuir o tamanho da onda que nos submergiria em breve – mas só avistávamos de longe e embaçadamente este futuro. Eu sentia algo que, na falta de outro nome, eu vou chamar de felicidade. Havia, finalmente, chegado a minha hora.

Só não estava precavido para as próximas fases. Os óbitos se ampliaram, os corpos se amontoaram, todas mortes não-oficiais. Sabíamos por conversas com gente da área da saúde, pelas histórias dos tios de amigos que morreram de “pneumonia”, com o aumento de casos de problemas respiratórios, que acometeu o vendedor onde eu comprava frutas, com a faxineira daqui de casa, que logo depois se aposentou e morreu, com o entregador do mercadinho, que desapareceu por completo, com o passeador de cachorros que se sentia um barítono, cantando árias pela rua, e que morreu tossindo e cuspindo sangue. Como em uma ditadura em que os assassinatos do Estado são escondidos para que os ditadores não tenham qualquer prova contra si, nesse segundo momento da pandemia, não havia qualquer número que nos garantisse o tamanho da desgraça em que estávamos metidos.

A minha preparação não contava com o tamanho da tragédia. Presenciar a moça que vivia pelas ruas perto aqui de casa, a moça que carregava plásticos, latinhas de alumínio e papelão, que tinha os olhos mais assustados e tristes do mundo, usava um lenço sempre encardido em volta da cabeça de pele preta, que pedia dinheiro em frente à padaria balbuciando palavras sem sentido e com as mãos estendidas em forma de concha, vê-la, pela janela, morrer do outro lado da rua, arfando, sem conseguir sugar o ar para os pulmões atacados, percebendo ela se debater, em luta contra o próprio corpo, os olhos cada vez mais esbugalhados, saltando das órbitas, ela se estrebuchando, num som cada vez mais agudo da falta de ar, a garganta embotada, eu tremendo, ela se contorcendo, gastando as últimas energias numa disputa interna, que ela não tinha como vencer, aquilo, aquela cena me destruiu.

A morte daquela mulher – jovem! Ela deveria ter no máximo 30 anos! Eu nunca tinha trocado com ela qualquer palavra, ela sempre me pareceu um bicho assustado, alguém que tinha sofrido uma violência imensa quando mais nova, e tentava se proteger de qualquer agressão direta; inclusive, num processo esquizoide, se precavendo da própria realidade, que deveria ser muito dura para ela. Quando ela morreu, e ela foi a primeira de muitas pessoas aqui da área (depois vieram o porteiro do prédio em frente, o taxista que dirigia com uma calma incomum, o dono da academia dos marombeiros...), minha guarda ficou completamente aberta. A partir daí, como numa luta de MMA, o adversário conseguiu encaixar os golpes em mim, me derrubando aos poucos e me transformando em massa amorfa indiferente do betume do asfalto.

A terceira fase foi a de tentar me reerguer. Mas aí eu já era outro, esvaziado por dentro.

Eu precisava voltar a ficar de pé, precisava raspar a barba, salvar a horta que tinha ressecado completamente, jogar fora o queijo mofado, tirar o limo do banheiro, varrer o chão, arranjar algum dinheiro, fazer comida, mas pouca coisa me importava. Uma imensa sensação de tanto-faz me abraçou e eu só queria ver séries. Era um novo mundo em que não tínhamos mais acesso a determinados sites, programas e redes sociais. Os aplicativos de conversa criptografados foram banidos, e os demais precisavam passar por um filtro em que determinadas palavras eram proibidas. Vi conhecidos meus serem investigados e presos em casa por falarem em genocídio, em fascismo, em necropolítica, em tanatocracia, e outras palavras que eles inventaram. Os casos se apinhavam como um ruído branco e eu me acostumei. Eu culpei essas pessoas por serem tão descuidadas e burras, sim, burras. Precisavam falar de determinados assuntos? Precisavam ser tão explícitos? Precisavam conversar? Precisavam?

Eu sempre trabalhei com arquitetura de sistemas e logo os trabalhos voltaram a aparecer. Os negócios devem sempre continuar, foi o slogan da campanha oficial, e eu obedeci, automatamente. Sair de casa não era mais um processo banal, contudo. Precisávamos agora de autorizações oficiais, tudo com o intuito de evitar novamente o risco de contágio. E essas autorizações não eram expedidas por qualquer razão. O governo mudou por completo a abordagem dos casos da peste, começando a levá-la a sério, demais até. Oficialmente a peste havia se modificado e ficado ainda mais mortífera. Eu me perguntava: vale a pena arriscar sair e me tornar uma bomba virótica – ou, muito pior, morrer? Desisti.

Começamos a viver dentro dos nossos apartamentos e casebres, e o mercado de entregas, se aclimatando rapidamente, acompanhou todo o processo, principalmente com a chegada de mais empresas internacionais. Agora os entregadores vinham dentro de macacões impermeáveis, que cobriam até os cabelos, com máscaras N95, trocadas regularmente e óculos de segurança. Em pouco tempo nos acostumamos com as rotinas e com as novas feridas.

Essa espécie de nova estabilidade era a quarta fase. Esse era o novo normal, parecido com o antigo normal, mas, ao mesmo tempo, completamente diferente, porque infinitamente mais triste e menor, mais árido. Eu trabalhava quase todo o tempo, ganhava bem menos, mas ainda o suficiente para mais que sobreviver, apesar de estar pagando muito mais impostos, condomínio, plano de saúde, luz, gás, e comprando tudo o que eu não precisava, estocando alimento, jogando noite adentro games online, aumentando a minha banda de conexão, me viciando em todas as séries que eu podia, interagindo ao vivo com quase ninguém, diminuindo meus contatos sexuais a quase zero, gastando o que sobrava da minha energia com exercícios físicos enfadonhos. Completei a minha transformação em um ermitão, um misantropo, um recluso que passava dias sem abrir a boca, semanas só mandando mensagens ou, no máximo, e-mails profissionais, e que já contabilizava seis meses sem transar com ninguém.
Toda a espécie de esperança que algumas pessoas nutriram, de uma nova humanidade muito mais solidária por conta dos traumas, encalhou na realidade de isolamentos cada vez maiores. Era, num primeiro momento, uma solidão social compulsória. Em pouco tempo, porém, quase ninguém se lembrava como havia sido antes. Todo tipo de imaginação de uma justiça maior, em que os piores tipos seriam as principais vítimas, ou de uma peste democrática, que atacasse a todos sem distinção, ou ainda qualquer sentimento de moralidade, como aquilo que era o certo a se fazer por todos, caiu por terra, para debaixo da terra, junto com os cadáveres que ainda se amontoavam – agora, também de outras pandemias, como a fome, a violência social, as doenças mais tradicionais. Só sobreviveu quem quis muito e, principalmente, quem teve sorte.

***
Me paramentei completamente, máscara, óculos, luvas, touca, e decidi atravessar o corredor. Abro a porta e instantaneamente fico ofegante e apavorado. A luz automática demora menos de um segundo para ligar, mas é o suficiente para eu ter a primeira impressão do ambiente sob o véu da escuridão, a poeira acumulada, o vazio que ecoa no piso frio, o cheiro de produto de limpeza barato. Eu me esqueci como era, como era lá fora. Parece envelhecido, abandonado, mas não está muito diferente, eu acho. Começo a respirar fundo e tentar me controlar, como um astronauta descendo numa lua desconhecida. Tento parar de pensar para continuar em frente. Inspira, expira. O primeiro passo, grande, maquinal, numa atmosfera com outra gravidade. Assim que ultrapasso o portal da minha casa, começa uma coceira no braço, e não se pode coçar, e eu tento me convencer de que a coceira não tem qualquer relação com a peste, não há nenhuma informação nas toneladas de links que eu li sobre coceira no braço no histórico da peste, mas é o suficiente para a coceira vir para os olhos e eu não posso fazer nada – porque aí sim já estamos falando de contaminação. Tenho que me controlar, não é nada, não é nada, nada. Inspira, expira. Inspira, expira. Saio de casa, determinado, focado, concentrado, como quem sai da nave, e cruzo vagarosamente o corredor, pé ante pé, como se o chão não existisse debaixo da minha sola sem que meu pé toque o solo. Antes de tocar a campainha, olho para trás, a minha porta encostada, e o meu vizinho do lado, a família tradicional com dois adolescentes, eles desenharam uma cruz com giz na porta... Uma cruz que provavelmente eles viram em algum filme... Uma cruz de giz para espantar a praga... Uma cruz malfeita, na ausência de uma em madeira... Me volto, respiro fundo – inspira, expira, inspira, expira – e toco a campainha.

Foram no máximo 30 segundos, mas demorou bem mais, como sempre. Eu não sabia o que fazer naquele ínterim e pareceu que me expunha à radiação de Chernobyl. Escuto uma música gospel que vem de outro andar e a melodia me parece fúnebre, uma reza por aqueles que não conseguiram ultrapassar a guerra. Quando eu ia desistir, a vizinha entreabre a porta, uma fresta apenas, em que ela coloca um pedaço da testa, o cabelo e os olhos para fora – os olhos que se arregalam quando me veem. Não sei identificar se é sinal de reconhecimento ou de surpresa. Talvez a segunda opção, considerando que, com a máscara, os óculos e a touca, nem minha falecida mãe saberia me diferenciar de outra pessoa. Levanto a carta e ela abre um pouco mais a porta, mostra o rosto com a indefectível máscara e desce os olhos, mirando o papel. Sinto um leve pesar sombreando os olhos por sobre as sobrancelhas. Ela abre mais a porta, ainda em silêncio, é o primeiro contato direto entre os dois mascarados.

“Quero ajudar”, falo e percebo os olhos dela se enchendo de lágrimas. Começo a tremer também, como que intoxicado por algumas químicas do corpo há muito esquecidas. Uma lágrima escorre lá no momento em que sinto a garganta travar. Ela abre um pouco mais a porta, o vizinho está deitado no sofá, ao fundo da sala, máscara, soro, pele pálida, perda de peso, ele me observa de longe, levanta o braço para me cumprimentar, eu devolvo o gesto, tento sorrir simpaticamente, mas a máscara tapa as minhas feições. Fungo e ela volta a arregalar os olhos: “Não, não estou doente. É só... é só que isso é muito diferente...” Ela parece acreditar no meu discurso, confirmando com um leve movimento de cabeça. “A gente já tentou tudo... Pagamos pela internet... Perdemos muito dinheiro... Fomos enganados... Estamos perdidos...”, ela fala entre as reticências, a voz, apenas um fio fino, totalmente desacostumada com o ar livre. “Eu vou arranjar o remédio”, prometo, sem saber como nem por onde começar. A gente se olha mais uma vez e eu tento sorrir de novo, me esquecendo da máscara.

Após chegar em casa e todo o longo processo de desinfecção, entro na internet. Busco o remédio nas pesquisas, mas todos os links que eu encontro são inseguros. Com preços ridículos, são obviamente charlatanice para roubar dos mais otários. Outros prometem versões caseiras do medicamento. Outros mandam primeiro baixar um programa no seu computador. Entro em uma comunidade que eu frequento usualmente, um lugar onde é possível encontrar coisas até mais difíceis que o remédio. Me enfio pelo emaranhado desorganizado do fórum e encontro uma conversa que parecia sólida. Há um mercado totalmente estruturado do medicamento. Ainda assim fico na dúvida – para ter alguém querendo ganhar dinheiro dos mais afobados é fácil. Não vejo qualquer tipo de segurança, nada. Reconheço um usuário no meio da discussão, um sujeito com quem eu converso sobre games, e ele afirma em um papo que tinha comprado o remédio milagroso. Entro em contato com ele. Não demora muito, ele me responde: “Sim, comprei pro meu pai... ele ficou doente dessa merda dessa peste, foi tudo feito meio que no desespero.” “E deu certo?” “Porra nenhuma. Meu pai morreu.” “Carai!” “Essa merda de remédio não serviu para porra nenhuma”. “Foi mal perguntar...” “Ah, cara, sem problema... já foi há um tempinho.” “Quando foi?”  “No início do ano... Pô, parece que tem bem mais tempo...” Ficamos em silêncio uns instantes. “E o remédio... você tem certeza de que é o verdadeiro?” “Cara, os caras desviaram um carregamento grande da farmacêutica. Duvido que tenha acabado.” Calculo que o remédio ainda esteja na validade. “Você tem o contato deles?” “Cara, eles funcionam como um grande distribuidor de bebidas, em geral, e aproveitavam o espaço para vender alguns produtos extras. Você tá precisando?” “Não, não... é para os meus vizinhos...” “Vizinhos?”

***
Mando mensagem para os caras e eles me avisam de supetão: “A gente não faz entrega do remédio, tem que buscar aqui.” “E onde é ‘aí’?”, pergunto com receio de ser algo impossível de se chegar, principalmente com a mobilidade urbana encurtada. “Sabe a Rua Direita? Aquele beco do lado da Avenida Central?” “Sei colé”, percebendo que era factível. “E por que não tão entregando mais?”, não consigo conter a minha curiosidade. “Você é imbecil ou o quê? Como você pode ser tão alienado?” “Não, é que...” “O comércio do remédio está controlado pelo governo. Quem for pego vendendo é condenado à morte sem julgamento. A gente não precisa correr mais riscos do que já corre.” Eu não entendo metade das coisas, mas decido não insistir. O preço é exorbitante, mas eu não tenho mais o que fazer com a grana que ganho. Combino de comprar com ele no domingo – “Domingo está bom para você?” Ele riu: “A gente abre todo dia, não tem mais esse negócio de fim de semana, não”. Assim que terminamos, confiro as informações que ele passou e fiquei mais assustado. Primeiro com a minha total desinformação – a minha tática de me ausentar completamente do debate político tinha funcionado. Depois, do grau de destruição institucional: a constituição tinha ficado datada e não representava mais a maioria da população; o importante era seguir as jurisprudências defendidas pela corte máxima do país. Isso incluía as causas pétreas, como a pena de morte. Uma das primeiras decisões da corte, logo após a abolição da carta, foi tornar o tráfico de substâncias ilícitas passível de morte por fuzilamento. Eu me encostei na cadeira e senti o peso de todas as minhas últimas decisões caindo sobre os meus ombros de uma só vez. Como se a voz que eu estava tentando evitar desde que havia recebido a carta chegasse agora gritando dentro da minha cabeça, furiosa.

O risco era enorme. De vários lados, de várias formas, de vários jeitos. Havia a obrigatoriedade de ficar em casa, havia a ronda policial, havia a falta de meios de transporte, havia a compra de um medicamento proibido, havia o deslocamento com essa droga, havia as barreiras de segurança, havia a lei contra mim e, por fim, e a causa de todas as questões: havia ainda a peste! Se eu conseguisse passar incólume por todos os problemas visíveis, eu ainda estaria me expondo por muito mais tempo que eu poderia me sentir confortável. Se para atravessar o corredor já tinha sido uma odisseia homérica, imagine atravessar quatro bairros e voltar? Outra questão que me fazia tremer: como? Como eu iria e voltaria do Centro?

***
Horário: sei que os policiais e a limpeza da rua passam duas vezes por dia, uma de manhã, outra de tarde. Planejo sair depois da primeira ronda. Trajeto: peço ajuda para alguns conhecidos que me informam a partir da geolocalização dos celulares policiais onde as barreiras acontecem. Com esse mapa, traço a rota por caminhos vicinais. Eu quase não utilizaria as ciclovias, mas as ruas todas estavam desertas. Proteção: máscara, touca, óculos e luvas, além de roupas longas, e levaria tudo sobressalente. A máscara eu pensei em usar duas, mas percebo que seria apenas desperdício. Veículo: Bicicleta. Tomo coragem e vou vê-la.

***
O prédio está praticamente abandonado. O zelador não dá conta de todo o trabalho. Ratos andam despreocupadamente perto da lixeira central. Na garagem, a luz funciona mal, mas posso ver que minha bike continua lá. Com uma camada de mais de um centímetro de poeira sobre ela. Limpo um pouco, o que consigo, e jogo óleo nas engrenagens. Nessa hora, escuto um barulho grande e gelo. Não estou fazendo nada de errado – ainda – mas é como se alguém me pegasse no flagra. Não consigo me mexer, como se a minha imobilidade me tornasse também invisível. Apenas meus olhos rodam de um lado para o outro, tentando alcançar de soslaio ao menos algum vislumbre da origem do barulho. Já estou com a resposta pronta para o caso de alguém me perguntar o que eu faço ali – se alguém me perguntasse. Após alguns instantes do barulho, reúno coragem para dar uma meia volta e aumentar o meu raio de visão. Outro barulho e volto à posição zero, sem perceber na hora o ridículo do movimento. Logo depois, dou um giro maior e consigo conferir a origem dos meus medos: um gato carregando na boca um rato quase do seu tamanho. Ele me ignora e eu faço o mesmo.

***
Domingo, olho na janela para esperar a ronda passar. Ansiedade grande dentro de casa, respiração ofegante embaçando a janela fechada. Está nublado, o que é uma boa notícia, parece menos calor. Não há hora certa, mas eu espero que seja cedo. Nunca é cedíssimo, mas cedo já está bom. Não é. Demora quase toda a manhã minha tocaia, e só quase na hora do almoço eles cruzam a rua.

Primeiro passa o caveirão aberto carregando dois policiais na caçamba, apontando rifles automáticos para a rua deserta, sob o sol branco. Vagarosamente, na contramão, barulho de sirene que antecede o medo. Cabeças cobertas por capacetes, óculos escuros e as agora onipresentes máscaras. Para eles, eram máscaras pretas, que combinam com o restante do uniforme e contêm um certo sadismo, principalmente aquele ali, o da direita, com desenho de caveira à guisa de mandíbula. Eles se arriscam em rondas por nós, gritam os alto-falantes. Se sairmos de casa, eles estão autorizados a atirar para proteger as nossas vidas da contaminação. Morrer para não morrer, e matar, em suma. Faz sentido, mas um sentido perverso.

Depois vêm os lavadores de rua: homens e mulheres vestidos com roupas de astronauta brancas, com máscaras de filtragem nanométrica, e grandes mangueiras que aspergem uma mistura de vapor com líquido detergente por toda a extensão da rua, conectadas ao caminhão adaptado para carregar os produtos de limpeza. Andam em câmera-lenta, produzindo um forte barulho maquinal, que preenche todos os espaços vazios diante da ausência de ruídos cotidianos.

Como algo para me dar energia, mas sem fome. Abro a porta, inspiro, expiro e parto. Desço as escadas quase correndo, ao mesmo tempo que tento não fazer barulho. No térreo, encontro com o zelador. Há quanto tempo não o via? É um senhor negro, idoso, com o rosto enrugado, que manca de uma perna. Ele sorri por trás da máscara, tenho certeza, ele sorri quando me vê e eu sorrio de volta. “Cabou o futebol, né?”, ele tenta puxar uma conversa, eu sorrio de volta e “pois é... a gente pensou que seria tão rapidinho, mas não foi, né...” Ele larga a vassoura e segue para o painel de controle do portão: “vai sair?”, pergunta sem qualquer censura, e eu vou sendo tomado de um medo novamente, mas continuo: “sim, vou sim...”.

Não me lembrava de como era bom ter o vento no rosto, mesmo que através da máscara, dos óculos, da touca, com a bicicleta pegando velocidade. Dura pouco. Ao virar a esquina, me esqueço de tudo diante do cenário apocalíptico: as ruas vazias, o comércio fechado, o tempo parado, que só se movimenta com o vento fresco que sopra. É sombrio, lúgubre e triste. Num ato reflexo, vou direto para a ciclovia, um caminho que eu sempre fiz no período pré-guerra, mas me lembro a tempo de voltar para a ruazinha que eu devo seguir. Tenho que atravessar quatro pistas da avenida principal, olhando desnecessariamente para os lados, e com risco de ser exposto, mas sigo, por falta de opção. Meu receio também é ser denunciado por outros moradores, já que eu estou praticando uma atitude no mínimo suspeita. Não há mais ninguém de bicicleta. Vez por outra eu escuto um motoqueiro fazendo alguma entrega, mas aposto que com eles eu não corro risco. Só querem trabalhar para conseguir um dinheiro para sobreviver. Atravesso ruas outrora sempre engarrafadas, vejo árvores nascendo no meio dos paralelepípedos, ouço sons de pássaros desconhecidos, sou acompanhado por uma matilha de vira-latas. O shopping está com os vidros quebrados, o banco onde eu tenho conta colocou tapumes, alguém tacou fogo em um carro em frente a um antigo ponto de ônibus. Viro numa rua mais estreita. Caçamba de lixo lotada – os lixeiros não pararam, mas não acompanham o crescimento da produção de dejetos. Um vazamento de água – ou era esgoto? É esgoto, o cheiro não nega. Como chamar a prefeitura? E como descobrir o vazamento? Estou fora de forma, em pouco tempo já fico ofegante. Preciso continuar, ainda não estou nem na metade do caminho. A praça, antes sempre cheia, saída de metrô, entroncamento de três bairros, que sempre teve muitos moradores de rua, agora é praticamente um abrigo a céu aberto, esse paradoxo entre os diversos oxímoros. Eles comem, dormem, deitam, me ignoram, riem, bebem de garrafas pequenas algum tipo de álcool, outro ali vira uma quentinha velha, vejo uma fogueira, e uma discussão, e empurra-empurra, todos, todos sem máscara – mas não posso parar para ver detalhes, devo continuar. O asfalto irregular quase sumiu na rua que quando chove fica inteiramente submersa. Há muito tempo, antes da civilização, o rio passava aqui. Foi canalizado, mas ele insiste em passar, mesmo com a peste, mesmo com ou por causa do aquecimento global. Um grupo de gatos em frente a uma escola depredada, janelas vazias, apenas o esqueleto de concreto. Um outro grupo de moradores de rua, igualmente sem máscaras, agora perseguindo alguém à frente, correndo muito rápido, mais rápido do que eu pedalo, o fugitivo pula um pitoco de calçada, desvia de um andaime, tropeça num buraco, toma uma decisão errada e é encurralado, e começa a ser espancado pelos demais. Os pontos turísticos vazios, caindo pedaços, vergalhões enferrujados à mostra. Um grande descampado, percebo alguém à frente tentando antever meus movimentos, alguém de máscara, e eu tento prever os movimentos dele, ou agir de maneira incoerente, para que não seja possível traçar algum tipo de caminho, para evitar interceptação, não era uma boa vizinhança para parar e pedir informações, eu saio um pouco do traçado do meu mapa, deveria improvisar, o alguém à minha frente fica para trás. Escolho uma rua paralela à do plano, não houve grande transformação, apenas desviar da grande cratera no meio da rua, uma obra abandonada, que agora acumulava água parada. O Centro, finalmente, o Centro com os prédios grandes e espelhados, inabitados, os palácios e os museus, só fachadas, gradeados, o mobiliário urbano decaindo, quando não propositalmente quebrado, pilhas de lixo se acumulando pelas esquinas, provavelmente não era o foco principal dos garis essa área menos habitada, ou simplesmente decidiram não tratar esse problema ali, o que me faz pensar o que deveria estar acontecendo nas periferias, nos morros, nas favelas, essas áreas já abandonadas antes da pandemia começar, e cheguei à região antiga, das ruelas. Estou esbaforido, cansado, sentindo meu sangue descer todo para as pernas, a pressão caindo, dificuldade de respirar, mas não posso tirar a máscara, devo me acalmar, inspira, expira, inspira, expira. A Avenida Central. Dobrar e já estou na Rua Direita. Inspira, expira. As lojas com as portas de ferro todas descidas. Livrarias, farmácias, lanchonetes, lojas de roupa, de cosméticos, de perfumes, produtos eletrônicos, galerias e prédios comerciais fechados, escritórios de advogados, de arquitetos, consultórios médicos, empresas de tecnologia, de engenharia, tudo parado. Chego ao destino.

Bato à porta, conforme o combinado, pensando no quão contaminada fica a minha mão, observando o vazio oco à minha frente, a estreiteza das ruas ao meu redor, a falta de rotas óbvias de fuga. O silêncio preenche os poucos espaços disponíveis e eu estou alerta para todos os mínimos movimentos. Pombos sem patas inteiras arrulham, os machos enchendo seus pescoços e dançando em frente às fêmeas que os ignoram e continuam a ciscar a sujeira entre os pedregulhos que formavam o chão. Um galho de árvore envolvido numa trança ou dança com o poste de luz desativado. O vento abalroando a porta de ferro que se concava. Os pombos levantam voo todos de uma vez, assustados por uma sombra que eu não identifico. A porta de ferro do meu lado abre. Um sujeito vestido dos pés à cabeça com um macacão como o de produtores de drogas sintéticas, com direito à máscara de filtro, atrás de um vidro que eu juro que era blindado. Vejo um número no comunicador à frente dele, que ele aponta, e eu logo mando mensagem pelo meu celular. Ele desaparece e eu reparo que alguma coisa se movimentou ao meu redor e eu não sei exatamente o que foi. Parece que as sombras tinham mudado de lugar, mas o sol não se mexeu tanto. Olho para o céu e vejo mais nuvens. O calor aumenta e uma grossa gota de suor escorre pela minha fronte, molhando a lateral da máscara. Devo trocar? O homem vestido de borracha volta e recebo uma mensagem dizendo como proceder no pagamento. Entro no aplicativo de transferência de dinheiro e passo para a conta dele. Ele joga um saco vedado hermeticamente numa gaveta e atravessa o vidro blindado. Desço da bicicleta, receoso, ela encostada no meio-fio, e entro no cubículo para pegar o pacote de drágeas. Olho pela transparência do plástico. É isso.

Quando volto à bicicleta, remédios já dentro da mochila, percebo o dono da sombra à minha frente. Um garoto, jovem, com faca tipo estilete na mão, desmascarado. Ele anda vagarosamente, juntando forças para dar o próximo passo, mas decidido como um morto-vivo. O que ele queria de mim?, consigo ainda pensar. Não tenho dinheiro... o meu celular? Os remédios, será? Será que ele quer alguma coisa? Eu que não iria perguntar: sem qualquer reflexão, acelero o máximo que eu consigo nos pedais e vou em direção a ele – não tento desviar, eu quero atropelá-lo, eu quero passar por cima dele! Ele não parece surpreso com a minha decisão e apenas se prepara para o choque. Avanço e ele permanece imóvel, eu me movimento e ele continua parado, até que... nos trombamos! Diferentemente da minha expectativa, porém, eu mal consigo afetá-lo. Não estou em velocidade suficiente para nem mesmo derrubá-lo, quiçá para passar por cima de um corpo, mesmo que franzino. Apesar do impacto, ele consegue se aprumar e aproveita a proximidade para tentar me golpear com o estilete. Eu dou um salto para trás, largando a bicicleta, que despenca, e a lâmina passa colada no meu corpo. Olho para baixo e percebo um fio vermelho escorrendo. Ele cortou, superficialmente, o meu braço esquerdo. Contaminação! Penso na hora. Eu bufo, a máscara sobe um pouco, minha mandíbula à mostra. Estou descontrolado, ilimitado, explodindo! Enlouqueço: Arranco a máscara na hora. Jogo fora os óculos, tiro a touca. E pulo sobre ele. Pulo mesmo, de mergulhar. Ele cai com o peso do meu corpo e com a manobra inesperada. O estilete voa longe. Quando estou no chão, eu, facilmente, consigo sentar sobre o magro peito e começo a esmurrar seu rosto, bati, bati tanto até que o sangue que sai dos buracos da cara dele se combine com o sangue que sai dos meus punhos. Só paro quando percebo que ele apagou – desmaiado ou coisa pior. Não me importa.

Volto à bicicleta, subo no banco, coloco a máscara sobressalente de maneira cuidadosa, como se eu ainda precisasse evitar a contaminação, e volto para casa o mais depressa possível.

A volta é rápida, ou eu que não consigo me concentrar em nada além da vontade de chegar em casa apressadamente, e tomar um banho de duas horas, passar álcool em todo o meu corpo, água sanitária, sei lá, tacar fogo nas minhas roupas, e pular eu mesmo dentro da fogueira. Quero uma forma de desinfetar que fosse a mais profunda possível, tão profunda que voltaria no tempo e me impediria de me contaminar no momento que eu me contaminei. Tão profunda que voltaria ainda mais no tempo e me impediria de sair de casa, de tentar qualquer interação com os vizinhos, de me expor a qualquer perigo... Jogo a bicicleta na garagem e corro para casa – direto para o banheiro, com as botas pisoteando a casa. Entro debaixo do chuveiro ainda vestido e tiro a roupa com puxões que rasgaram a camisa e desprendem o botão da calça. Me esfrego tanto que o corte do estilete, já coagulado, volta a sangrar. Meus dedos enrugam e se ferem. Tufos de cabelo caem. Assoo tanto o nariz que estouro um vasinho e o sangue escorre. Na tentativa de me proteger, eu me machuco ainda mais. Entro em um processo convulsivo, caio no próprio banheiro e desmaio.

Acordo com outro corte na testa, da queda, mas já estancado, e com a água do chuveiro correndo ao meu redor. Estou com uma espécie de ressaca, sentindo o corpo mais pesado que o normal, dolorido em lugares que eu nem sabia que existia. Uma culpa me consome e eu me sinto a pessoa mais horrenda do mundo: aquela que fez as piores escolhas. A única coisa que consigo é me levar até o quarto e me fazer deitar. Apago ainda molhado, sem qualquer cuidado com o novo nem com os antigos machucados.

Quando me levanto, estou perdido no tempo – não sei que dia nem que horas são: está escuro, é a única coisa que dá para perceber. Há apenas um único pensamento na minha cabeça: eu devo tomar os remédios que comprei com o meu dinheiro para me proteger da peste. Eles são meus, e entre pessoas desconhecidas e eu, é melhor eu sobreviver. Talvez não seja o suficiente, como aconteceu com o pai do meu conhecido, mas eu devo me precaver e usar todas as possibilidades para me manter vivo. E o remédio é a minha última chance...

Bufo e quase sorrio, balançando a cabeça. O demônio da meia-noite está sempre à espreita. Diferentemente do seu irmão zenital, que insiste em tirar a vontade de viver a qualquer momento do dia, o noturno prioriza a sua própria vida sem enxergar nada nem ninguém ao seu redor, mesmo que precise morrer no processo ou por conta disso. Não viver para viver, em suma.

Limpo todas as feridas, desinfeto a casa, jogo fora as roupas estragadas e como alguma coisa assim que o sol sobe. É um dia banal. Escrevo uma carta perguntando como eles estão. Me paramento, abro a porta e atravesso o corredor, mais uma vez. Passo a carta, após limpá-la com álcool, por debaixo da porta, e deixo os remédios na maçaneta da porta, antes de tocar a campainha. Começa, então, a minha própria expectativa para saber se estava ou não contaminado, os 15 dias de aflição os quais eu aproveito para escrever essa história.