quinta-feira, 21 de maio de 2020

Para além do nazifascismo

Dizer que B. é nazista, hoje em dia, já não é novidade. Sem esforço, ele tica todas as características das definições mais pops do fascismo como prática de Estado, de U. Eco à dupla D&G. Mas há algo no seu projeto de fim de mundo que vai além.

Uma das propriedades apontadas por várias pessoas que já se debruçaram sobre o assunto é o culto à morte. Há sempre uma proposta de aniquilamento daqueles modos de viver que não participam desta mesma proposta de aniquilamento.

Esse extermínio de minorias, dos outros, acaba consumindo, ao final, o próprio projeto – mas somente quando todos os outros mundos foram já varridos ou, no mínimo, silenciados. É um projeto cuja criação é, verdadeiramente, destruição. Não sobra nada. Para eles, a vida é morte.

O governo de B., entretanto, tenta – ao menos em canais oficiais e discursos ensaiados –, em tempos de pandemia e recordes de falecimento, jogar para o adversário (oposição, jornalistas, cientistas, artistas e qualquer sujeito meramente crítico) o culto pela morte.

No dia que o número oficial de mortos pelo covid-19 quase chegou a 1200 pessoas, a Secom (que já postou uma versão do “só o trabalho liberta”) fez questão de divulgar o número de doentes recuperados, alegando que o governo quer focar em boas notícias.

E o que dizer da já histórica entrevista da ex-ministra e ex-atriz Regina “leveza” Duarte para a CNN, em que ela diz que são os outros que carregam os caixões, e se envergam debaixo das mortes de décadas passadas?

Ainda não sei o que é exatamente nem como categorizar essa girada no parafuso. Talvez o ato de “negar a morte” seja uma forma de esconder os defeitos do governo. Talvez seja uma tradição brasileira que sempre fala “e daí?” para os nossos genocídios. Sei lá.

(Outras ideias que me ocorreram: o luto, a assimilação corajosa da morte de outras pessoas, é uma das formas possíveis de se voltar a viver. A melancolia, esse estado de semivida, é o resultado do ato de não encaramos de frente e deglutirmos a morte dos nossos próximos.)

Tenho para mim apenas que não estamos mais, apenas, na zona nazifascista. Temos que pensar novos termos para essa força destrutiva, para essa máquina de matar gente e a acabar mundos que se disfarça atrás do lema da “leveza”.

sábado, 2 de maio de 2020

O Covid-19 é [visto como] uma doença de rico

O Covid-19 é visto pelos mais pobres como uma doença de ricos. É uma hipótese ainda, mas cheia de convicção. Não que os pobres não vão morrer – ao contrário. Vão morrer até mais, proporcionalmente, que os mais ricos. Mas, mais uma vez: só quando o modo de vida dos ricos é afetado que isso chama atenção do status quo.

Porque poderíamos pensar que já vivemos outras epidemias: Quantas pessoas morrem vítimas de armas de fogo, por exemplo? Quantas de tuberculose? Quantas de dengue? Quando uma criança morre atingida por uma bala perdida, os jornais fazem burocraticamente reportagens que denunciam a repetição do capítulo. Assistimos, nos emocionamos com algumas cenas, e logo esquecemos e continuamos nossas vidas.

Viver no limite, jogar roleta-russa com uma arma cujo tambor tem pouca capacidade já é o cotidiano da imensa maioria da população brasileira. Ser mal atendido nos hospitais, penar para conseguir qualquer cuidado sanitário, ser visto como cidadão de segunda, terceira categoria... O que mudou, na prática, para os que são sempre mais atingidos? O covid-19 foi apenas mais uma bala a colocar nesse pequeno tambor. Há uns anos foi a zika, depois a chikungunya... A cada ano, uma nova bala e ninguém se importa, de verdade, com eles.

Por isso o papo do Bolsonaro pegou facilmente – e vemos uma migração do apoio para as classes mais baixas. Ninguém quer morrer, ao contrário, mas se sabe que sem trabalhar eles VÃO morrer – e aos poucos. Vão sentir as dificuldades se aproximando e se sentirão de mãos atadas. E não há nada pior que a impotência.

B. sugere que eles tentem a sorte. Qual foi o governante que teve a coragem de dizer isso com todas as letras? Foram todos hipócritas, do ponto-de-vista das promessas não cumpridas. Por isso B. é visto como verdadeiro, por não fazer o jogo das promessas vazias. Fala a “verdade”.

Os mais pobres têm que desviar de bala perdida, de invasão da polícia na hora da saída para o trabalho, desviar do valão de esgoto, da água empoçada, do lixo não recolhido... o vírus é apenas mais um “desvio”. E essa preocupação toda? Uma “coisa de rico”.