terça-feira, 31 de outubro de 2023

Filmes mudos

No meu atual momento Buster Keaton, acabei por ver um documentário no Mubi dirigido pelo Peter Bogdanovich sobre o ator-diretor-roteirista considerado um dos maiores do cinema mudo. A obra de Bogdanovich não faz nada além do feijão-com-arroz, entrevistando grandes nomes do cinema para elogiar Keaton, abordando um pouco sua vida -- ele era filho de artistas e começou bem cedo nos palcos -- e dedicando um bom espaço para a obra dele. Keaton, descobri só então, fez todas as suas obras-primas, como The general, Sherlock Jr. ou, como se pode ver abaixo, Steamboat Bill Jr. (isso para ficar apenas nos longas, que nem são necessariamente os seus melhores) em um espaço de dez anos, na década de 1920, antes que o cinema ganhasse som direto. 


No doc também descobri que Keaton fez duas participações especiais em obras da década de 1950, obras de diretores que ficaram bem mais famosos que ele: "Luzes da ribalta", do Chaplin, e "Crepúsculo dos deuses", do Billy Wilder. O tema de ambos os filmes é o mesmo, embora seja tratado de forma bastante diferente: a obsolescência do artista, ou, mais simplesmente, o envelhecimento. 

Em "Sunset boulevard", título original do filme do Wilder, a relação com o cinema mudo é direta: a protagonista Norma Desmond é uma ex-estrela que protagonizou vários filmes com diversos dos maiores cineastas do período sem som direto -- entre eles Cecil B. DeMille, que também faz uma ponta no filme, e um certo Max von Mayerling, que é interpretado por ninguém menos que o também cineasta Eric von Stronheim, no que é, para mim, o melhor personagem de todo o longa por conta de sua entrega quase silenciosa. Por sua vez, Norma também é interpretada por uma ex-estrela que fez muito sucesso no período dos filmes mudos e que, com a chegada do som, caiu no ostracismo: Gloria Swanson. Ou seja, é a história que subjaz toda a trama do clássico de Wilder.

Já no filme de Chaplin, a referência ao cinema mudo é mais sutil, mas só um pouco: o personagem de Chaplin é um ator de comédia em decadência que ficou famoso por interpretar um vagabundo. Se o personagem imortalizado em diversas obras silenciosas se chamava Carlitos (ao menos no Brasil), em "Luzes...", ele se chama Calvero. Atualmente, porém, Calvero não consegue mais arrancar gargalhadas do público e abusa do álcool com a desculpa de que só assim consegue ficar engraçado.


Em ambos os filmes há uma nostalgia pelos tempos passados, com seus protagonistas querendo recuperar o estrelato de outrora, se digladiando consigo mesmos para não assumirem que se tornaram ultrapassados, que perderam o pulso do tempo presente. Só são reconhecidos pelos mais velhos, que até lhes prestam algumas bonitas homenagens, mas representam ícones de um mundo que se silenciou. Tanto no título em inglês como na versão em português, a noção de apagamento está presente, com mais (no original) ou menos sutileza (na tradução). 

Keaton, em ambos os filmes, faz um papel de um ex-astro também escanteado por conta das mudanças do mundo -- isto é, uma versão encenada dele próprio. Inclusive, em "Crepúsculo...", ele é creditado como "Buster Keaton" interpretando ele mesmo. Uma forma de homenagear uma grande estrela que desapareceu quando o cinema ganhou som.

Por esses dias, também, vi uma entrevista do Scorsese em que ele fala por quase 30 minutos sobre Glauber Rocha, sua paixão por filmes como "Terra em transe" e, principalmente, "O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro". Um dos seus principais argumentos sobre o filme é que ele serve de antídoto contra a caretice, que ele, Scorsese, aplica em novos talentos do cinema. Para mostrar que há possibilidade de fazer filmes fora dos padrões hollywoodianos mais conservadores. 


Esse tipo de declaração fica ainda mais forte se lembrarmos que recentemente Scorsese foi um dos poucos a se levantar contra a homogeneização do cinema que aconteceu com a entrada de muitos filmes de boneco que colonizam as salas de cinema e o imaginário de uma geração de cinéfilos. 

O paralelo que surgiu em minha cabeça foi óbvio: a morte do cinema mudo ocorreu apenas por uma mudança tecnológica em que os espectadores renegavam ativamente os filmes sem som direto, ou houve algum tipo de forçação de barra para se adotar acriticamente uma novidade e se esquecer o passado? 

Muito provavelmente a resposta está entre os dois lados, mas eu apostaria que apesar do interesse do público pela novidade, há sempre uma campanha pesada da indústria para que o público queira adotar a moda do dia.

Longe de mim defender a nostalgia ou um "no meu tempo que era melhor", mas não dá para deixar passar o fato de os filmes de Keaton serem hoje considerados como clássicos por cineastas tão diferentes como Werner Herzog e Quentin Tarantino -- para citar apenas dois dos nomes entrevistados por Bogdanovich no documentário. Ou que os filmes de Keaton são sempre eleitos entre os melhores filmes de comédia de todos os tempos. Ele continua bom, mesmo depois que o som apareceu. Como?

Junto a isso, também vi nesse fim de semana passado a peça "A descoberta das Américas", em que um único ator -- o multitalentoso Julio Adrião -- sem auxílio de música ou de grandes estripulias de luz preenche o palco num teatro de ação ao mostrar como foi a chegada dos europeus neste lado do Atlântico ainda no século XVI. É o teatro apenas na carne e no osso, o teatro com todos os recursos que o ator, e só o ator, pode oferecer, de pantomimas a onomatopeias, a fisicalidade, o movimento, as expressões faciais, o timing perfeito. Um tour de force que faz você se esquecer que há apenas um intérprete, quase pelado, no palco.

Julio Adrião em cena da peça 'A descoberta das Américas'
— Foto: Renato Mangolin/Divulgação [roubada daqui]


Um ator apenas no palco. Um exemplo da necessidade da adaptação que o teatro precisou passar ao longo dos anos. Diminuir os custos, se ater ao estritamente necessário, ser minimalista. O teatro não acabou com o cinema, mas teve que se transformar enormemente com a chegada do cinema. E da TV. E da internet. Incomum agora são peças grandiosas -- exceção feita aos musicais, pelos seus próprios motivos.

O teatro sobreviveu e parece reflorescer e estar até mais inteiro que o próprio cinema, nesse período pós pandemia [será que as pessoas querem o contato face a face, e o cinema pôde ser substituído pela experiência caseira?], mas não é o mesmo que foi há 20, 50, 100 anos. 

Isso tudo para chegar, finalmente, no assunto que eu queria abordar desde o início: a literatura.

Várias ideias passam pela minha cabeça ao mesmo tempo para falar sobre isso, mas a escrita precisa de algum tipo de ordem. Não encarem o que vem a seguir como hierarquia, é apenas aleatório:

/ Borges dizia que conseguia entender o fim do romance, mas não o do conto. O romance era um formato recente, quase mercadológico, acompanhando, de certa forma, a sociedade burguesa-liberal. O conto, praticamente eterno, vivendo ao lado da própria linguagem.

/ Quando conheci Marcelo Lachter, o saudoso livreiro carioca, nosso santo bateu de primeira. Numa de nossas conversas, ele disse uma frase que nunca vou esquecer: em breve seremos pagos para ler, não para escrever.

/ Em editoras de autopublicação que parecem lanchonetes fastfood (escolha os toppings: revisão gramatical? ABNT? Orelha? Apenas mais R$ 2,99 por item), há filas para publicar. 


Juntando isso tudo, percebe-se que não há exatamente um problema no lançamento de livros, mas no mercado de leitores -- se isso pode ser dito dessa forma. Há, agora, escritores que querem apenas lançar seus livros e abdicam totalmente de serem lidos. 

Claro que há fenômenos literários -- e isso é inegavelmente interessante --, mas a literatura ocupa hoje um espaço no mínimo diferente na classe intelectualizada, digamos assim. Mudou o perfil do escritor, do leitor, dessa mesma classe intelectualizada? Claro que sim, e ainda bem, mas mudou também o apelo que o próprio livro tinha. 

O livro de ficção, cuja mensagem, por definição, é mais "abstrata", menos "figurativa" (para usar uma metáfora que escutei esses dias vinda das artes plásticas) que de um livro de não-ficção (usando aqui categorias amplas, por favor), se tornou menos desejado. Não há espaço para tanto lero-lero, é importante chegar diretamente no ponto: qual é a sua mensagem. Os próprios livros de ficção que fazem mais sucesso, mesmo, ficaram mais diretos, menos "metafóricos". É preciso dizer tudo com todas as letras -- sem tempo para a nuance, irmão.

Ainda: o próprio suporte livro também perdeu relevância. Vide as vendas em declínio. Mas, de forma paradoxal, ao mesmo tempo continua sustentando uma certa aura, uma certa distinção que nenhum outro objeto artístico-cultural carrega. O livro é quase um sinônimo, ainda hoje, de intelectual, de inteligência e, ao cabo, de superioridade. Contudo, esses sinais não vêm de ler as obras, mas de, sim, escrevê-las.

Por que, então me pergunto, por que escrever? Por que colaborar para esse estado de coisas? Por que tentar produzir algum tipo de narrativa, mesmo sabendo que furar essa homogeneização é complicado, quase impossível, percebendo que se esforçar para participar do jogo tem poucas ou nenhuma recompensa e, acima de tudo, desconfiando fortemente da própria capacidade de fazer algo minimamente relevante? Mas relevante para quem, como, onde?

Ao mesmo tempo, como não escrever? Embora haja muitos motivos para virar as costas e dar uma banana para toda essa fonte de frustrações, estou eu aqui, arriscando algum texto, mesmo que não-narrativo-ficcional, para falar sobre o que me assombra nesse momento.

O exercício possível de se fazer -- e aqui corro o risco de soar como uma receita ou, pior, como autoajuda -- é tentar desenvolver uma força antifrustração, para não arrastar as correntes de um mundo que nunca foi assim tão perfeito, ainda mais do ponto de vista do mercado editorial, e que, ainda mais por isso, jamais vai voltar. Como as estrelas de filmes mudos.

Um possível pós-escrito

Ontem, fui ao lançamento da coleção de livros de ensaios organizado pelo Pedro Duarte e pela Tatiana Salem Levy, ensaios que misturam literatura e filosofia, meus dois mundos mais presentes na atualidade. O primeiro livro da coleção tem o sugestivo nome de Não escrever [com Roland Barthes], e é escrito pela Paloma Vidal, escritora, professora, entre muitas outras coisas, que tenta entender o que poderia ter impedido Barthes de escrever o livro que ele tinha planejado produzir no finzinho da vida.

Claro, ele sofreu um acidente que ceifou sua vida de uma hora para outra, o que é mais que uma explicação para não ter terminado seu romance, mas parece que ele já não iria mesmo acabar de escrever. Sua obra, sua arte, parece estar no constante adiar, no caminho, no processo em si de escrever. Mais que terminar o livro, ele queria escrever. Mais que publicar, escrever. Mais que lançar o livro com pompas, se tornando o autor que ele havia matado anos antes: pensar, dar aulas e escrever.

Enquanto produz esses textos que se tornarão -- se tornaram -- esse ensaio com Roland Barthes, Paloma não escreve o romance que ela está se preparando para escrever há tempos. As dúvidas de Barthes não necessariamente a contaminam -- talvez elas sejam as mesmas. Ela escreve para não escrever. Ela escreve para escrever.

Abri uma exceção orçamentária, interrompi meu lado mais castrador, e comprei o livro da Paloma. Toda a proposta de seu curto livro ecoava muito aqui para que eu não me abalasse.

Em certo momento, Paloma cita Barthes diretamente, sobre por que ele queria escrever um romance:
Algo ronda em nossa História: a Morte da literatura: ela erra em torno de nós; é preciso olhar esse fantasma cara a cara, a partir da prática - trata-se, pois, de um trabalho tenso: ao mesmo tempo inquieto e ativo (o Pior não está garantido). 

Em seguida, sobre o curso que ele deu por dois anos enquanto preparava o romance, até morrer atropelado:
A gente poderá considerar que o curso será uma palavra nostálgica que girará em torno desse espectro: a morte da literatura, que está mais ou menos em torno de nós. Mas, nesse momento, é preciso olhar o espectro de frente, a partir da prática.
Paloma nota: "A 'palavra nostálgica' está ali, e percorre o curso, sem dúvida, mas ela não encerra seu sentido, justamente porque há em jogo uma prática". Ela percebe: escrever não é uma falta que precisa ser preenchida, não é um passado que precisa ser resgatado, mas um futuro que precisa ser construído. Se a melancolia existe, ela é combatida pela vontade, pelo desejo de escrever, que é maior que qualquer saudosismo, que as previsões assustadoras, as incertezas e, talvez, as frustrações.