quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Rio desconcentra

É verão em Roma, e o escritor Jep Gambardella, interpretado pelo ator Toni Servillo, está cercado de amigos no terraço de um apartamento que encara o Coliseu. Autor de um único romance, escrito há muito, Jep é acuado pelos outros: “Mas quando vai escrever um novo livro?” Ele traga o cigarro, disfarça, dá atenção à vista deslumbrante. Responde: “Não consigo. Roma me desconcentra.”
A cena faz parte do italiano “A grande beleza”, candidato ao Oscar de melhor filme estrangeiro, em cartaz em muitos cinemas da cidade. A desculpa de Jep poderia ser usada perfeitamente por cada um dos seis escritores convidados pela Revista O GLOBO para participar desta edição especial, que celebra o aniversário de 449 anos da cidade, comemorados no próximo dia 1º. A proposta era que cada um fizesse um texto inédito sobre o Rio, usando-o como mote, cenário ou personagem. Topas?
— Não posso. O Rio me desconcentra — poderiam ter dito.
Mariana acerta novamente. Como o Rio desconcentra as pessoas!

ps. Se tiver que ler uma única história, leia a da portuguesa Alexandra Lucas Coelho. De nada.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Moralismo fofo

...o filme sofre por estar contaminado de uma sensibilidade romântica de algodão-doce. Theodore passa a maior parte do tempo pedindo desculpas por ser quem é, por não levar em conta os sentimentos e expectativas da ex-mulher, da garota que leva para jantar, dos amigos. A jornada de superação do vazio afetivo implica em ser cordato, bonzinho e infinitamente devoto à sensibilidade alheia, uma perspectiva cuja irrealidade o roteiro não parece levar em conta. É possível que o filme tenha consciência disso e pretenda fazer uma crítica ou registro neutro de uma marca geracional. Com boa fé, podemos ver aí uma problematização desse moralismo fofo.
Gostei muito do pé-na-porta do Galera, sobre "Her". 

Ainda sobre "Her", um ótimo filminho, da "Vice":

 

domingo, 23 de fevereiro de 2014

Vizinho londrino


A vizinhança londrina foi escolhida a dedo para dar tranquilidade ao fim da vida de Freud, que havia muito sofria de câncer na mandíbula. As amplas casas de tijolos vermelhos exalam a solidez da sede do império onde, dizia-se, o sol nunca se punha (e ainda assim esteve para ser invadida por Hitler, embora Freud não vivesse para passar por mais esta aflição). Suas coisas, inclusive o célebre divã, estão lá, como se lá sempre tivessem estado. A casa tornou-se museu depois da morte de sua caçula e pupila, Anna, em 1982. É uma visita educativa, tocante e simpática. À saída, compra-se um boneco de pelúcia de Herr Doktor para pôr na prateleira com os livros de psicanálise ou um mousepad reproduzindo o não menos célebre tapete persa que fica sobre o divã.
Dapieve escreveu sobre o meu ex-vizinho em Londres. Quando fui lá, não vi nada dessa lojinha. Será que eu estava sublimando meus desejos de compra?

Nunca foram embora

Nos ensaios sobre “Leviatã”, de Hobbes, e cartazes de alistamento para a guerra como o do Tio Sam, você encontra em discursos e na iconografia política elementos que mostram poderes seculares “invadindo” terreno da religião. Como funciona esse fenômeno e quais são suas consequências?
A secularização — termo conveniente mas ambíguo — não é um fenômeno pacífico. É um fenômeno conflituoso e em andamento, que vem invadindo esferas da vida pública e privada dominadas pela religião há séculos ou milênios. (Pela necessidade de concisão, vamos assumir que o significado do termo “religião” é evidente, o que não é o caso.) As imagens são um exemplo desse tipo de invasão: por trás do cartaz do Tio Sam e de seu ancestral britânico, o cartaz de Lord Kitchener, podemos ver gestos que já foram atribuídos a Jesus. Hobbes chamava Leviatã, o símbolo do Estado, de “um Deus mortal”: uma imagem atemorizante. A luta contra ou a favor do secularismo continua diante de nossos olhos. Há poucos anos alguém falou em “retorno das religiões”; mas elas nunca haviam ido embora.
 O historiador Carlo Ginzburg conversa com Guilherme em uma entrevista para o Prosa há um mês.

ps. muito legal os cartazes que ilustram a entrevista:

sábado, 22 de fevereiro de 2014

O objeto de concórdia: o transporte público

Percebi o problema quando eu escrevi lá no fakebook: "J. M. Wisnik entra na discussão O Globo x Freixo...". Desde quando a discussão é, ou deveria ser, entre O Globo x Freixo? Depois, ainda tento melhorar, mas pioro, chamando as manifestações de "o objeto da disputa". Realmente, como diz um amigo, viramos sommeliers de tudo, comentaristas difusos de pautas aleatórias. Por que, em vez disso, não estamos focando nossas atenções, nossos esforços, nossas energias para o que interessa? Por que em vez de protestos, imprensa, etc., não estamos mirando um problema que nos une em nossas desgraças? E, qual é o assunto, qual é o tema que junta no desespero pobres e ricos, Zona Sul e Zona Norte? O transporte público.

Negar que haja desdobramentos dos protestos, como a violência policial ou a disputa ideológica das narrativas, para ficar em apenas dois exemplos à esquerda do espectro político, seria ignorar a realidade. A morte do cinegrafista da Band é uma tragédia, como todas as mortes estúpidas [se alguma não é] são. E é claro que essa morte é consequência de um ato de violência - mas qual ato dentro de uma manifestação não o é? Como fazer uma manifestação asséptica? Como fazer um protesto que não incomode ninguém? Aliás, por que ir às ruas, nessas condições?

Amigos híbridos jornalistas, companheiros da esquerda, pessoal da direita enrustida, podemos discordar de como as manifestações estão acontecendo. Podemos execrar ou amar os Black Blocks. Podemos afirmar que O Globo está certo e o Freixo tem ligação com a morte do cinegrafista - ou achar isso um absurdo. Podemos, inclusive, ignorar todo esse debate e ficar à margem da discussão, porque acha que isso não leva ninguém a nenhum lugar nem a nada. Mas quem, quem entre nós, entre vocês, entre as pessoas normais, que você conhece, que estão nas ruas, que trabalham, estudam, ralam de segunda a sexta, às vezes mais, quem está satisfeito com o transporte público de suas cidades? Diga-me onde é que ele funciona bem?

Por isso, proponho uma trégua, uma bandeira branca, um acordo de paz, uma junção de forças em prol de um objetivo comum. [Vou falar do Rio porque é onde eu moro, onde eu sei as informações, mas acredito que, em menor ou maior grau, a história se repete por todo o Brasil.] Após dizer que seria uma decisão técnica, o prefeito do Rio ignora completamente a sugestão dos técnicos do Tribunal de Contas do Município e, para cumprir um acordo firmado após uma licitação sem quase concorrência, aumenta os preços das passagens de ônibus da cidade. Após negar que faria o mesmo, o governador segue o colega da capital e também eleva o preço das tarifas de ônibus e metrôs. Ou seja, ambos mentem, ou mentiram. Uma das duas possibilidades.

Não adiantou termos reportagens no principal - e único grande - jornal do Rio. A imprensa não afeta mais a credibilidade dos políticos. Ao menos, não desses. Ou, ao menos, não uma reportagem esporádica, factual. Ou, amigos da imprensa, insistimos ad nauseam com o assunto, deixando bastante claro que houve má fé nessas atitudes, ou outras pessoas que sofrem, como vocês, com esses problemas, e que não têm tanto sangue frio, e, talvez, mais tempo livre, vão sair às ruas para reclamar disso. É uma consequência [protesto] da causa [cara-de-pau].

Não importa se com reportagens, manifestações, depredações, pula-roletas, posts em blogs... temos que reclamar e muito. Mostrar como a política aqui não é feita para os cidadãos, mas para um grupo de pessoas que sempre ganhou dinheiro - e sempre vai ganhar. [Isso porque não falamos dos grandes consórcios, das empreiteiras, que estão refazendo, a não sei que custo, o Rio de Janeiro.]

Não estou sugerindo a revolução, pedindo pela instalação do comunismo, nem que você dê um de seus filhos a casais estéreis: quero apenas transporte público decente. Quero poder ir de um lado a outro da cidade com conforto e segurança. E quero pagar uma tarifa decente por isso. Não vejo como alguém - além dos empresários do ramo - pode ser contrário a essa ideia.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Uruguai: um estudo de campo

Professores, acadêmicos, estudiosos passam a vida inteira para tentar decifrar um aspecto de seus próprios países e nós, quando passamos apenas o período de nossas férias no lugar, já nos achamos no direito de dizer o que é ou não é tal lugar. É claro que não dá para saber ao certo o que é um país - nem em 20, 30 dias, nem em uma vida inteira. Mas, talvez, os primeiros dias, aqueles em que você está com as antenas mais abertas, que tenta captar todas as nuances do lugar, que confronta com as suas expectativas, ou seja os dias das suas férias, podem ser os mais marcantes. Feita esta reserva, podemos continuar afirmando o óbvio: o Uruguai é surpreendente - positiva e negativamente.

O polêmico Palácio Salvo, durante um tempo o mais alto edifício da América Latina
Comecemos pelo aspecto que talvez mais vai boquiabrir os brasileiros-classe-média-liberais: Mujica não é uma unanimidade entre os uruguaios. A primeira pessoa que me falou isso, não exatamente uma esquerdista, não me convenceu. Porém foi ela quem me deu pela primeira vez as razões e os motivos que iriam se repetir por toda a viagem.

O melhor paralelo que eu pude fazer - que não é assim excepcional - foi com Lula, e sua recepção no Brasil versus no exterior. Claro que Lula foi o presidente que teve a maior aprovação da história, que elegeu sua sucessora sem muito esforço, mas o símbolo que ele representava para os estrangeiros, de um homem do povo, um operário que chegou ao cargo mais importante da política brasileira, era muito maior. O que leva a crer que os estrangeiros ficamos apenas com o símbolo do político, com a poesia que ele representa, e, nós sabemos, sabemos desde Ferreira Gullar: o preço do feijão não cabe no poema.

É aí que Pepe trabalha
José "Pepe" Mujica é criticado por falar demais, em uma linguagem simples, não ter tido uma profissão regular, ter virado um profissional da política, por ter prometido grandes investimentos na educação, que não se concretizaram. Até seu aspecto mais simples de viver é visto, pelos seus partidários, como uma espécie de obrigação a que todos os políticos deveriam assumir. Já pelos seus opositores, como uma espécie de exotismo, que estão loucos para se ver livre. Articulista do jornal de direita El Observador um determinado dia dizia que esperava a próxima eleição ver novamente um presidente de gravata. Acho que conhecemos bem o que é isso.

O partido de Mujica, o comparativamente recente Frente Amplio, é visto como um rolo compressor, que estraçalhou a oposição e aprovou tudo o que queria. E é ainda mais criticada por não ter feito, mesmo com essa ampla maioria, os investimentos prometidos em campanha. Aliás, os oposicionistas acham que o pior inimigo da F.A. é a própria F.A., que é um saco de gatos, que lutam para puxar o país mais ligeiramente para a esquerda ou muito mais para a esquerda. Também já vimos esse filme.

Os uruguaios também têm um Pan de Azúcar - esse morro aí
Pelo outro lado, os tradicionais partidos Blanco e Colorado, de direita, tentam voltar ao governo na eleição deste ano, utilizando um discurso bem conhecido do espectro político que representam: o medo da violência. Argumentam que Montevidéu, por exemplo, capital do país, principal cidade que reúne cerca de metade da população da baixamente populada nação, virou um caos. Esqueceram de combinar com a realidade: o país - e também a cidade - é a de menor taxas de homicídio, por exemplo, de toda América Latina [o que não é muita vantagem, é verdade].

O argumento, contudo, não encontra eco na população, aparentemente. Pelo que eu pude perceber - e eu posso estar completamente enganado - os jovens gostam ou toleram a F.A. por conta de suas atitudes mais liberalizantes [apesar de ninguém comentar, espontaneamente, sobre a legalização da maconha, por exemplo, como se fosse algo que não impactasse a vida deles, como se fosse algo normal, comum, mais que obrigação]. Os mais pobres gostam da F.A. porque, bem, porque pela primeira vez foram atendidos, mesmo que em menor grau em suas exigências. A classe média - e o Uruguai é um país de classe média - porque não enxerga na direita qualquer possibilidade de melhora real. Só sobram os ricos, frequentadores de Punta del Este e adjacências, para votar na direita, com medo de uma invasão de estrangeiros, por exemplo - uma das últimas propostas a assustá-los.

Tirei poucas fotos em Punta del Este
Por isso tudo aí, o Uruguai me surpreendeu: esperava uma versão em miniatura da Argentina e encontrei um país bastante diferente, com uma influência, sim, imensa do irmão do sul, mas também a presença constante e maciça do outro irmão, do norte. O Brasil existe para o Uruguai, inclusive, como uma alternativa da ligação com os argentinos.

Aliás, esse é um belo conselho para se dizer aos gaúchos que ainda sonham em se separar do Brasil: dê um pulo no Uruguai. O país é extremamente dependente dos países vizinhos para sua sobrevivência econômica. Houve crise na Argentina? Diminuirá o fluxo de turistas nas praias uruguaias no verão. Menos divisas, menos dinheiro, crise uruguaia. Inclusive, o conselho de estudiosos das relações internacionais para o próximo presidente era exatamente tentar fugir dessa dependência com os hermanos, e tentar uma maior aproximação com os irmãos.

Piriápolis
No aspecto social-comportamental, Montevidéu me pareceu uma cidade um tanto quanto provinciana, no melhor e no pior que o termo carrega. Se é ainda comum ver senhoras e senhores de certa idade sentados fora de casa, observando a rua, tomando o mate do fim do dia, coisa que no Rio, ao menos, só vemos na nossa memória do subúrbio, e em comunidades, quando é possível, também é curiosa o tom das conversas da juventude, que se baseia quase que na totalidade em uma espécie de colunismo social ao vivo, quando não resvala na fofoca moralista.

Essa foto é de Colonia, mas poderia ter sido de Mdeo
Claro que esse comportamento futriqueiro é comum em todos os lugares onde há círculos sociais: todos temos nossos códigos de conduta e, caso algum deles seja quebrado, se torna objeto de pauta. Mas, com uma população tão pequena, é mais comum que todos se conheçam, que os círculos sejam mais fortes, que os compartilhamentos, mais intensos. Sem dúvida há universidades importantes, livrarias incríveis, cujas vitrines espelham as obras completas de todos mais conhecidos os filósofos ocidentais, gente que estuda arte, que lê, pensa, desenha, produz. Mas, contrariando a música, o que se pode perceber é que a classe média e alta individualista é classe média e alta individualista em qualquer canto. As misérias é que são diferentes.

De toda forma, não espere um país "de esquerda", seja lá o que isso queira dizer hoje em dia - bastando passar em Punta del Este para acabar com qualquer expectativa nesse sentido. Mas um país mais tranquilo, mais calmo. E múltiplo: quando em Cabo Polônio, talvez um dos lugares mais incríveis que eu conheci na vida, perguntei para duas montevideanas se aquele pequeno pueblo, encravado dentro de um parque nacional, um pequeno paraíso que não tem luz elétrica nem água corrente, faria parte do Uruguai, ou era uma exceção, elas me disseram que sim. Que o Uruguai era exatamente a soma de suas diversidades, de cidades exuberantes como Punta del Este, e rústicas, como Cabo Polônio. De achados históricos portugueses, como Colônia do Sacramento, a cidades que representam a tradição da colonização espanhola na região do Prata, como Montevidéu.

Cabo Polônio
Como todos os países, o Uruguai não é um, mas vários. Esse foi apenas o que eu consegui enxergar e reproduzir.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

'Her': o filme de uma geração

O cineasta americano Spike Jonze faz parte do grupo que nasceu para o audiovisual fazendo videoclipe. Um grupo de então garotos, como Roman Coppola, Michel Gondry, até David Fincher, por que não?, que produzia pérolas para bandas e artistas do universo cool, tais quais Sonic Youth, Weezer, Daft Punk, Fat Boy Slim... Quem não se lembra da dancinha de "Praise you"? Depois, ele e Gondry se associaram a Charlie Kaufman e adentraram o mundo da tela grande. Jonze com "Quero ser John Malkovich" e depois "Adaptação", Gondry com "Human nature" e a obra-prima "Brilho eterno de uma mente sem lembranças".

Em seguida, Kaufman enlouqueceu - ver "Sinédoque, Nova York" - e Gondry e Jonze tiveram que seguir seus próprios caminhos. Gondry filmou seus próprios roteiros [loucos] e Jonze adaptou um livro infantil: "Onde vivem os monstros". Com "Her", última obra de Jonze, finalmente temos uma peça com roteiro e direção do moço que quando nasceu recebeu dos pais a alcunha de Adam Spiegel. Valeu esperar. É, também, uma obra-prima, comparável a "Brilho eterno...".

'Sinédoque...' é protagonizado por um atormentado Philip Seymour Hoffman

Antes de entrar no filme em si, um pouco de fofoca especulativa, que pode contextualizar a questão. Para isso, temos que voltar até 2003, e a um filme de uma cineasta que tinha ligação com o grupo dos videoclipes, mas apenas de maneira indireta: "Lost in translation", de Sofia Coppola. Como se vê, ela é irmã de Roman, filha de Francis Ford, e de 1999 até 2003, foi mulher de Jonze.

Para quem não se lembra de detalhes do filme com Bill Murray e - por favor, atentem para isso - Scarlett Johansson -, é a história de uma mulher que vai para Tóquio acompanhar o marido, e fica isolada no hotel, enquanto o cara, um fotógrafo muito requisitado, faz e acontece, sem dar muita atenção para ela. Ela, completamente isolada, conhece o personagem de Murray, um cara de meia idade que também está entediado, e que passa um tempo com ela, numa relação que fica na fronteira entre o paternal, o fraternal e o amoroso, no sentido sexual do termo.


Não duvido que Charlotte, a personagem de Scarlett, seja uma projeção do estado de espírito de Sofia, naquela época. E o fotógrafo, vivido por Giovanni Ribisi, representaria como Sofia via seu então marido. Bob Harris [Murray] seria a necessidade de proteção, de companhia masculina, no sentido antigo, o da segurança, de alguém para ficar com ela nos momentos de solidão. Não deve ser coincidência o filme sair exatamente no ano em que Sofia e Spike se separaram.

Suspeito que "Her" é, finalmente, a resposta [à altura] de Jonze para Sofia. Para ser direto, simples e com spoilers: é a história de Theodore Twombly, um sensível ghost-writer de cartas pessoais, logo após se separar da mulher, Catherine, por quem ele ainda tem um imenso carinho. Por questões que ele não sabe explicar, ele foi se afastando, se afastando, até que não tinham mais conexão. Theodore está sofrendo por essa separação, e não consegue se perdoar pela sua negligência. Está numa deprê braba até que conhece Samantha.

Samantha não é uma pessoa, mas um sistema operacional superdesenvolvido, que se adapta e evolui à medida que as necessidades se apresentam. No início da relação entre os dois, ela começa tentando animar Theodore, fazendo com que ele saia da cama, comece a viver novamente, encontre novas pessoas, se divirta, até que, após um encontro frustrado, os dois se envolvem. Amorosa e sexualmente.


Com uma cena em blecaute, apenas com as vozes, Jonze demonstra que o sexo reside mais na cabeça do que em qualquer outro órgão humano. Os dois vão narrando suas imaginações, num caminho rumo a um clímax que ambos vão atingir juntos. Samantha é capaz de chegar ao orgasmo.

Um detalhe que merece um parágrafo só para ele: Samantha é dublada por ninguém menos que Scarlett Johansonn. Seria mera coincidência ter escolhido a mesma atriz que interpretou a versão projetada de Sofia Coppola nas telas? E não exatamente a atriz, mas a sua voz, para que possamos imaginar o restante, considerando, inclusive, que não vemos qualquer desenho de um corpo, ou algo do gênero, de Samantha? O que nós temos é a voz de Johansonn e a nossa imaginação para fazer o restante.

Theodore e Samantha começam a namorar e tudo na vida do escritor melhora. Decide finalmente assinar os papéis do divórcio e encontrar sua ex-mulher, também uma escritora, nascida em uma família que exige muito dela, que sempre cobra um ideal de perfeição [Como deve ser a vida da filha de Francis Ford Coppola?]. Theodore, interpretado magistralmente por Joaquin Phoenix [Sofia Coppola agora é casada com o vocalista da banda Phoenix... mas acho que aí pode ser apenas coincidência mesmo], descreve ternamente a relação dele com Catherine como uma relação em que os dois amadureceram juntos, que os dois eram muito jovens quando se envolveram e saíram totalmente modificados.

No encontro entre Theodore e Catherine, ele lhe conta que está namorando um sistema operacional, e ela, com os olhos marejados, lhe responde que era bem a cara dele, querer alguém que não fosse real, que não tivesse os problemas de carne e osso. Theo fica arrasado. Sua relação com Samantha esfria porque ele se sente, novamente, culpado, aceitando todas as críticas como se fossem a única verdade possível. Seria ele alguém tão inadaptado ao convívio social? A relação dele com Samantha era real ou virtual? O que ele sente é verdadeiro ou apenas uma imaginação?

"Her" é, provavelmente, o primeiro filme completamente adulto de Jonze [sem qualquer demérito aos anteriores por conta disso]. Um filme que reflete bem as dúvidas e angústias de uma geração de homens que se coloca entre a insensibilidade completa, como a que caracterizaria os nossos pais, e a sensibilidade extrema, que seria ligada apenas ao espectro feminino do jogo, portanto, ligado a nossas mães. Uma geração que está sofrendo para descobrir uma nova forma de masculinidade que não precisa ser necessariamente violenta, ou grosseira, mas que é cobrada para dar ainda segurança e conforto, como mostra o filme de Sofia. Uma geração de homens que quer, ao contrário, também um pouco de segurança e conforto, e quer principalmente uma troca mais igualitária entre os dois lados da relação. Uma geração de homens que pode ser mais "feminina", sem afetar sua masculinidade por isso.

A última cena do filme demonstra para quem o longa é dedicado: Theodore escreve uma carta para Catherine. E diz que para sempre ela vai estar dentro dele. Para sempre ele vai carregar um pouco dela em si. É assim que as melhores relações frutificam.