quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Uruguai: um estudo de campo

Professores, acadêmicos, estudiosos passam a vida inteira para tentar decifrar um aspecto de seus próprios países e nós, quando passamos apenas o período de nossas férias no lugar, já nos achamos no direito de dizer o que é ou não é tal lugar. É claro que não dá para saber ao certo o que é um país - nem em 20, 30 dias, nem em uma vida inteira. Mas, talvez, os primeiros dias, aqueles em que você está com as antenas mais abertas, que tenta captar todas as nuances do lugar, que confronta com as suas expectativas, ou seja os dias das suas férias, podem ser os mais marcantes. Feita esta reserva, podemos continuar afirmando o óbvio: o Uruguai é surpreendente - positiva e negativamente.

O polêmico Palácio Salvo, durante um tempo o mais alto edifício da América Latina
Comecemos pelo aspecto que talvez mais vai boquiabrir os brasileiros-classe-média-liberais: Mujica não é uma unanimidade entre os uruguaios. A primeira pessoa que me falou isso, não exatamente uma esquerdista, não me convenceu. Porém foi ela quem me deu pela primeira vez as razões e os motivos que iriam se repetir por toda a viagem.

O melhor paralelo que eu pude fazer - que não é assim excepcional - foi com Lula, e sua recepção no Brasil versus no exterior. Claro que Lula foi o presidente que teve a maior aprovação da história, que elegeu sua sucessora sem muito esforço, mas o símbolo que ele representava para os estrangeiros, de um homem do povo, um operário que chegou ao cargo mais importante da política brasileira, era muito maior. O que leva a crer que os estrangeiros ficamos apenas com o símbolo do político, com a poesia que ele representa, e, nós sabemos, sabemos desde Ferreira Gullar: o preço do feijão não cabe no poema.

É aí que Pepe trabalha
José "Pepe" Mujica é criticado por falar demais, em uma linguagem simples, não ter tido uma profissão regular, ter virado um profissional da política, por ter prometido grandes investimentos na educação, que não se concretizaram. Até seu aspecto mais simples de viver é visto, pelos seus partidários, como uma espécie de obrigação a que todos os políticos deveriam assumir. Já pelos seus opositores, como uma espécie de exotismo, que estão loucos para se ver livre. Articulista do jornal de direita El Observador um determinado dia dizia que esperava a próxima eleição ver novamente um presidente de gravata. Acho que conhecemos bem o que é isso.

O partido de Mujica, o comparativamente recente Frente Amplio, é visto como um rolo compressor, que estraçalhou a oposição e aprovou tudo o que queria. E é ainda mais criticada por não ter feito, mesmo com essa ampla maioria, os investimentos prometidos em campanha. Aliás, os oposicionistas acham que o pior inimigo da F.A. é a própria F.A., que é um saco de gatos, que lutam para puxar o país mais ligeiramente para a esquerda ou muito mais para a esquerda. Também já vimos esse filme.

Os uruguaios também têm um Pan de Azúcar - esse morro aí
Pelo outro lado, os tradicionais partidos Blanco e Colorado, de direita, tentam voltar ao governo na eleição deste ano, utilizando um discurso bem conhecido do espectro político que representam: o medo da violência. Argumentam que Montevidéu, por exemplo, capital do país, principal cidade que reúne cerca de metade da população da baixamente populada nação, virou um caos. Esqueceram de combinar com a realidade: o país - e também a cidade - é a de menor taxas de homicídio, por exemplo, de toda América Latina [o que não é muita vantagem, é verdade].

O argumento, contudo, não encontra eco na população, aparentemente. Pelo que eu pude perceber - e eu posso estar completamente enganado - os jovens gostam ou toleram a F.A. por conta de suas atitudes mais liberalizantes [apesar de ninguém comentar, espontaneamente, sobre a legalização da maconha, por exemplo, como se fosse algo que não impactasse a vida deles, como se fosse algo normal, comum, mais que obrigação]. Os mais pobres gostam da F.A. porque, bem, porque pela primeira vez foram atendidos, mesmo que em menor grau em suas exigências. A classe média - e o Uruguai é um país de classe média - porque não enxerga na direita qualquer possibilidade de melhora real. Só sobram os ricos, frequentadores de Punta del Este e adjacências, para votar na direita, com medo de uma invasão de estrangeiros, por exemplo - uma das últimas propostas a assustá-los.

Tirei poucas fotos em Punta del Este
Por isso tudo aí, o Uruguai me surpreendeu: esperava uma versão em miniatura da Argentina e encontrei um país bastante diferente, com uma influência, sim, imensa do irmão do sul, mas também a presença constante e maciça do outro irmão, do norte. O Brasil existe para o Uruguai, inclusive, como uma alternativa da ligação com os argentinos.

Aliás, esse é um belo conselho para se dizer aos gaúchos que ainda sonham em se separar do Brasil: dê um pulo no Uruguai. O país é extremamente dependente dos países vizinhos para sua sobrevivência econômica. Houve crise na Argentina? Diminuirá o fluxo de turistas nas praias uruguaias no verão. Menos divisas, menos dinheiro, crise uruguaia. Inclusive, o conselho de estudiosos das relações internacionais para o próximo presidente era exatamente tentar fugir dessa dependência com os hermanos, e tentar uma maior aproximação com os irmãos.

Piriápolis
No aspecto social-comportamental, Montevidéu me pareceu uma cidade um tanto quanto provinciana, no melhor e no pior que o termo carrega. Se é ainda comum ver senhoras e senhores de certa idade sentados fora de casa, observando a rua, tomando o mate do fim do dia, coisa que no Rio, ao menos, só vemos na nossa memória do subúrbio, e em comunidades, quando é possível, também é curiosa o tom das conversas da juventude, que se baseia quase que na totalidade em uma espécie de colunismo social ao vivo, quando não resvala na fofoca moralista.

Essa foto é de Colonia, mas poderia ter sido de Mdeo
Claro que esse comportamento futriqueiro é comum em todos os lugares onde há círculos sociais: todos temos nossos códigos de conduta e, caso algum deles seja quebrado, se torna objeto de pauta. Mas, com uma população tão pequena, é mais comum que todos se conheçam, que os círculos sejam mais fortes, que os compartilhamentos, mais intensos. Sem dúvida há universidades importantes, livrarias incríveis, cujas vitrines espelham as obras completas de todos mais conhecidos os filósofos ocidentais, gente que estuda arte, que lê, pensa, desenha, produz. Mas, contrariando a música, o que se pode perceber é que a classe média e alta individualista é classe média e alta individualista em qualquer canto. As misérias é que são diferentes.

De toda forma, não espere um país "de esquerda", seja lá o que isso queira dizer hoje em dia - bastando passar em Punta del Este para acabar com qualquer expectativa nesse sentido. Mas um país mais tranquilo, mais calmo. E múltiplo: quando em Cabo Polônio, talvez um dos lugares mais incríveis que eu conheci na vida, perguntei para duas montevideanas se aquele pequeno pueblo, encravado dentro de um parque nacional, um pequeno paraíso que não tem luz elétrica nem água corrente, faria parte do Uruguai, ou era uma exceção, elas me disseram que sim. Que o Uruguai era exatamente a soma de suas diversidades, de cidades exuberantes como Punta del Este, e rústicas, como Cabo Polônio. De achados históricos portugueses, como Colônia do Sacramento, a cidades que representam a tradição da colonização espanhola na região do Prata, como Montevidéu.

Cabo Polônio
Como todos os países, o Uruguai não é um, mas vários. Esse foi apenas o que eu consegui enxergar e reproduzir.

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