segunda-feira, 10 de junho de 2019

A farsa da isenção jornalística

Um dos grandes mitos do jornalismo é a isenção. Uma espécie de distanciamento, uma tentativa de equanimidade, um auto-engano em que o jornalista acredita emular uma posição sóbria e desinteressada, distanciada, tal qual um deus justo e superior. Suspeito que a origem desse procedimento seja o naturalismo do século XIX na literatura, com os seus narradores onipresentes, oniscientes e praticamente onipotentes, que por sua vez buscava emular uma pretensão de reprodução das condições [quase] perfeitas de laboratório ao isolar variáveis de influência, dentro das ciências exatas.

Um dos procedimentos mais usados para fingir essa justiça narrativa é o chamado "outro lado". Segundo esse estratagema, deve-se ouvir todas as partes envolvidas na questão da matéria jornalística. Mas nem sempre é fácil identificar quem é o outro lado. Ou, muito pior, nem sempre mostrar o outro lado é fazer tal justiça. Ao contrário: ao dar voz para vozes dissonantes, o jornalismo vez por outra apenas aumenta os ruídos, equiparando versões fortes [verdadeiras] e fracas [falsas] do mesmo fenômeno.

Um exemplo disso é a questão do aquecimento global. Não há "outro lado". Quem nega que haja um catástrofe ecológica em curso atualmente parte de um princípio absolutamente outro que aquele que é defendido pela própria matéria jornalística, isto é, a ciência como base do conhecimento do Ocidente. Negar o aquecimento global é negar evidências científicas em prol de um obscurantismo profundo, sempre ligado a interesses escusos, e travestido de paladino da justiça, diante de hordas ditatoriais.

Não precisamos, porém, nem chegar a esse ponto. O que dizer de políticos que abertamente mentem sobre os assuntos perguntados? Eles deveriam ter o direito de emitir enunciados totalmente falsos apenas para ter respeitado o direito do outro lado? Como lidar com o limite de espaço, por exemplo nas publicações físicas, ou o limite de tempo, nas entrevistas cronometradas com tais figuras públicas?

Algumas publicações assumem e até mesmo incentivam o uso da primeira pessoa, para tentar mostrar que todo o texto tem uma perspectiva, um ângulo claro. Mas isso não impede de o espaço ainda cair na mentira do "outro lado". Perdemos os tempos das sutilezas: seria preciso ainda mais presença do autor do texto, para chamar, por exemplo, o mentiroso de mentiroso. Sem subterfúgios.

Outras publicações se colocam numa posição de não tentar influenciar o leitor: a função do jornalismo não é ser [para usar um exemplo aleatório] procurador, mas apenas juiz, dizem. O problema é: e se não houver mais a diferença entre as duas funções - se é que já houve? Vamos ter que esperar o bom senso dos leitores que querem apenas a condenação dos suspeitos de sempre?

Perdemos um normal e estamos sem encontrar um solo em que podemos nos basear. Todas as forças estão em guerra aberta para puxar o seu lado. É imprescindível escolher um deles, sabendo que o muro que separa as diversas vertentes é cada vez mais fino e inseguro. Em algum momento se cairá para um dos lados - normalmente o lado falso.

A Cecília Oliveira, do Intercept, disse muito melhor que eu aqui: