sábado, 25 de maio de 2019

Crise estética nacional

O Tosco Brasileiro é uma revolta contra a ilusão. Não apenas contra as ilusões específicas de um certo programa político que o antecedeu e o condicionou, mas contra o estatuto mesmo da ilusão. Ilusões nos fazem acreditar em futuros diferentes do passado. Ilusões traídas nos fazem odiar o próprio trabalho de ilusionamento. Se o esboço e a incompletude são as formas típicas da produção ilusiva, o estereótipo e caricatura são o seu inverso não dialético. O Tosco Brasileiro parece odiar a arte e a ciência ela mesma, realizada na figura dos professores de uma elite, sentida como impostora e inautêntica. Por isso lhe é essencial se apresentar “sem partido”, “sem ideologia”, “sem pontos obscuros ou ambíguos”, “as coisas mesmas na vida como ela é: nota sobre nota”. Toda ambiguidade local é uma certeza redobrada em segunda instância, pela comunidade estética de gosto. Daí que o Tosco Brasileiro seja uma estética religiosa, no sentido kantiano de uma comunidade de gosto e no sentido lacaniano de uma comunidade de gozo. Lembremos que o problema aqui é saltar da particularidade dos juízos de gosto, por meio dos qual algo é belo porque assim nos parece, para algo é belo porque esta é a realidade mesma deste objeto.
Christian Dunker dando início ao pensamento sobre a crise estética atual. 

segunda-feira, 20 de maio de 2019

Notas curtas sobre a vontade e o desejo

"Wie man wird, was man ist" é a expressão em alemão que segue como subtítulo da autobiografia de Nietzsche, Ecce homo. Numa tradução ao pé da letra seria: como se tornar o que se é. Pesquisando um pouco, se descobre que o poeta grego Píndaro tinha um verso parecido: "Torna-te o que tu és". E não precisa de muito esforço para se lembrar da famosa frase que o oráculo de Delfos disse para Sócrates ("Conhece-se a ti mesmo") como contraponto.

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Uma das grandes tradições da filosofia ocidental foi a criação da ideia de um sujeito - ou de um "eu". É difícil pensar no seu oposto. A começar por todas as gramáticas, já somos arremessados dentro de um sistema pronto que nos força a pensar numa primeira pessoa que individualizaria nossa subjetividade. 

Ou ainda, de maneira bem pragmática, podemos concluir que eu existo quando nos tocamos, olhamos num espelho, sentimos dor ou fome. 

Mas eu não sou / não é "eu".

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É curioso e até engraçado pensar a principal forma usada por Borges para explicar por que ele tinha tanto medo dos espelhos. Em Tlön... ele já fala da multiplicação dos seres como um problema (junto a cópula - não por acaso ele não deixou filhos), mas não era apenas a multiplicação, simples, repetição exata e igual. Ele tinha medo de se olhar no espelho e não se enxergar, não se reconhecer, ver um monstro. Isso mesmo quando tinha ficado completamente cego.

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A partir de um determinado momento - podemos colocar esse início em Descartes, e o seu ego cogito, ou nos românticos, com sua busca pelo gênio, ou com todo o aparato das vontades, a partir de Schopenhauer - o sujeito, do tipo individual, entrou no foco central das discussões. 

Nietzsche - e aqui eu admito a minha dúvida extrema - talvez seja uma bola dividida. De um lado, ele propõe em vários momentos que a sua vontade de poder [Wille zur Macht] é impessoal e vai além mesmo dos humanos: tudo o que há tem vontade. Por outro, ele insiste no fato de só existir uma vontade egoísta, e que sempre haveria diferença hierárquica entre as vontades, nunca tendo um equilíbrio.

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Essa última frase pensada abstratamente não parece ser muito problemática: a própria física, por exemplo, diz que não há vácuo no universo. Ou seja, as vontades seriam as possibilidades de movimento, do mais forte para o mais fraco. Porém, quando se pensa em seres tentando viver em conjunção com outros seres, a frase pode ser vista com bastante dureza. Ou uma justificativa, uma naturalização da violência. 

Ou esse tipo de leitura mostra apenas a minha falta de traquejo para conseguir ler suas defesas de um pensamento egoísta de maneira diferente de uma defesa da vontade subjetivista.

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O pensamento de Nietzsche, de toda forma, abriu portas para uma série de pessoas - principalmente no chamado pós-estruturalismo francês - que tentavam pensar ao mesmo tempo liberdade de ações sem que isso fosse uma negação do outro. Ou seja, a vontade [a força, o desejo, antes o conatus ou até mesmo a libido] não deveria querer dizer a objetificação de um outro ser qualquer.

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Somos iguais porque todos participamos das mesmas estruturas - e superestruturas, para falar como os marxistas - mas somos diferentes porque o simples fato de existirmos em um determinado tempo e espaço nos torna únicos de qualquer outro ser - únicos, porém não melhores ou maiores. Todos temos vontade, mas temos vontades diferentes, cada um tem a sua própria vontade. Interagir uma e outra questão, ao mesmo tempo, é o grande drama político-social dos últimos séculos, parece.

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Uma leitura errada, diria até propositalmente errada, da noção de vontade [e desejo e conatus...] percebeu que, sim, todos os seres são formados pelas suas vontades, e que, sim, todos têm direito de ter acesso aos seus desejos-vontades. Por que não, portanto, fornecer a todos um pacote fechado para eles poderem decidir, entre as opções oferecidas, o que querem? O plot do capitalismo thickens.

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Winnicott dizia sempre que era preciso uma mãe suficientemente boa para que as suas crianças pudessem aprender a desejar. Uma mãe muito "presente" retirava a possibilidade de construção do desejo [ou possibilidade da falta, que é a condição do desejo para alguns]; uma mãe muito "ausente" não deixava nem a esperança de uma concretização dos desejos, destruindo-os ainda antes das suas formulações.

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A máquina de captura do desejo do capitalismo funciona da mesma forma: de um lado não dá espaço para que nós desejemos. Do outro, torna qualquer imaginação de mudança um horizonte tão distante, que parece impossível qualquer - mesmo que mínima - mudança.

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O mar de marasmo, ou os desesperos por encontrar algum sentido exterior, ou a dificuldade de aceitar o buraco como parte integrante da vida. Aqueles que não conseguem nem perceber o que é desejo, ou os que buscam em criações ilusionistas de outras verdades [ou pós-verdades], ou quem foge da angústia se afogando em algum escapismo. Três maneiras de nomear a quase totalidade das formas niilistas nesse nosso período de capitalismo avançado.

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Apesar de tudo, temos que ter vontade, temos que desejar. A minha aposta principal é essa: a única maneira de se viver é desejando. O resto é estacionar dentro do mais fundo poço escuro, numa queda livre, sem saber para qual direção se está indo. Um movimento maquínico, cotidianamente irrefletido, sem gosto e com um constante tanto-faz e bater de ombros como fórmula.

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Mas como desejar se todos os sentidos estão embotados? Se o prato já vem pronto e não temos nem tempo nem espaço de falar que não queremos isso ou aquilo? Ou ainda: como se manter em uma desejo, quando inúmeras promessas de euforia passam na sua timeline a cada refresh?

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Primeira possibilidade de se pensar / primeira questão: mesmo a euforia é um desejo.

Há vários tipos de desejo, alguns fracos e outros mais fortes; alguns constitutivos, outros mais destrutivos; alguns mais perenes, outros mais instantâneos.

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Nenhum desejo é "melhor" que outro. Mas uma dieta com pouca variedade de desejos nos torna repetitivos, monotemáticos, com o tempo desérticos, por fim, inférteis. Talvez seja uma forma recente de niilismo.

Possibilidade a se cogitar.

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Os desejos do tipo de euforia produzem depressões ainda mais profundas que os cumes alcançados. Algumas vezes são indispensáveis, outras nem tanto. De toda forma, tornar-se uma relação constante, se habituar a um único tipo de desejo, parece uma maneira fácil de ser seduzido. O que é uma das maneiras de se perder para dentro de si.

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Como manter desejos que são mais perenes, para conseguir modificar o cardápio, e sair da ventania das opções em que viramos o rosto para buscar sempre a próxima promoção, a cada grito publicitário?

Segunda possibilidade de pensar / segunda questão: A promessa.

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A promessa é a continuação de uma aposta na intuição que nos atravessa, no momento t=0,0...1. Não temos quase nenhuma certeza, mas algo que não dá para dizer de onde vem, ou seja, um segundo influxo, nos diz que devemos seguir essa intuição. Esse segundo movimento, que é colado no primeiro, é a aposta. 

A promessa é a tentativa de se manter nesse caminho por tempo além da aposta inicial. É fazer uma promessa consigo mesmo, para aguentar um pouco mais, até quando conseguir aguentar. É se amarrar no mastro do navio para poder voltar a Ítaca.

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Ler Deleuze e Sloterdijk para pensar melhor isso.