domingo, 18 de janeiro de 2015

O deus Billy Wilder ou quando ficamos tão caretas?

Chamado ao palco para receber o Oscar de melhor filme estrangeiro em 1994, o diretor espanhol Fernando Trueba pegou a estatueta das mãos de Anthony Hopkins e fez um discurso quase tradicional. Começou agradecendo as pessoas de sempre e terminou com uma frase que ficou famosa: "Eu gostaria de acreditar em deus para agradecê-lo, mas eu só acredito em Billy Wilder. Por isso, obrigado, senhor Wilder". Dizem que Wilder, que era um senhor de 88 anos à época, no dia seguinte ligou para Trueba e, quando o espanhol atendeu, falou: "Alô, aqui é deus". Não foi a única vez que ele foi confundido com o todo-poderoso.



Michel Hazanavicius, diretor de "O artista", também foi outro que, em vez de uma santíssima trindade mais tradicional, decidiu citar três pessoas em uma em seu discurso pelo Oscar de melhor filme em 2012: "Eu queria agradecer a Billy Wilder, eu queria agradecer a Billy Wilder e eu queria agradecer a Billy Wilder". Dessa vez, o diretor nascido numa pequena cidade no então império austro-húngaro já não estava mais neste plano, mas deve ter tentado fazer um interurbano de onde se encontra, à direita de si mesmo.



O que faz esse cineasta que não tem a obsessão e o perfeccionismo de um Hitchcock ou a grandiosidade de um Orson Welles, para citar dois outros cineastas que fizeram carreira prioritariamente nos EUA, um de uma década anterior e outro de uma posterior, ser assim tão reconhecido? É um dos mais premiados pela academia, seus filmes são todos razoavelmente perfeitinhos, corretos, nunca erra, nunca exagera, nunca faz algo que poderia ser visto como de mau gosto. É quase quadrado, se ele não desafiasse a moral vigente em todos os filmes - mesmo os mais banais - que ele escreveu, depois dirigiu e, por fim, produziu. O que faz dele, então, um deus?


Samuel "Billy" Wilder é primeiro um escritor. Começou como jornalista, depois passou para os roteiros, ainda na animadíssima Berlim de Brecht, de Schönberg e da Bauhaus, onde viveu depois de ter crescido em Viena, a então capital do império da casa dos Habsburgo. Com a subida de Hitler ao poder, foge, primeiro para Paris, depois para os EUA, onde vai procurar emprego em Hollywood. Trabalha numa espécie de indústria de roteiros e se identifica com o único diretor de grande nome a se tornar também chefão de um estúdio, Ernst Lubitsch, que vai se transformar em seu deus particular. É com Lubitsch que faz seu primeiro roteiro de grande sucesso: "Ninotchka". É neste filme que Greta Garbo não apenas deixa de lado o drama como abertamente gargalha numa gag de comédia pastelão.

Ninotchka from laregoladelgioco on Vimeo.


Nesse filme de 1939, aparentemente bobo, Wilder já mostrava alguns dos seus milagres. Primeiro, essa falsa impressão de puerilidade. Filmada em uma Paris resplandecente de antes da Segunda Guerra, o longa mostra um cômico trio de russos enviados numa missão oficial para a França para vender joias da aristocracia apreendidas pelo governo socialista. O empreendimento não dá muito certo e Garbo, uma funcionária burocrática muito séria, chega para resolver os problemas. Ela se encontra com um playboy galanteador francês que vai mover o mundo - quase literalmente -, quebrar algumas regras diplomáticas, e usar todo o seu charme para conseguir amaciar o coração de Ninotchka. Durante o processo, as irônicas farpas cômicas atingem todos os lados: a frivolidade da aristocracia falida, a censura e a rigidez do socialismo real, o esbanjamento e a desproporção social do capitalismo liberal. Todos os lados são atingidos. O objetivo é caçoar da caretice e fazer graça de todo mundo.

O cineasta vai repetir alguns desses elementos em "One, two, three", filme que mostra a tensão entre a Berlim Oriental e a Ocidental, logo no momento em que o muro foi construído. O trio de russos está de volta. As piadas tanto à esquerda quanto à direita, idem. O personagem sério que vai se afrouxando, igualmente. Esse tipo, aliás, Wilder já tinha usado ainda em "A foreign affair", de 1948, com Jean Arthur como a senadora tradicional, conservadora e republicana americana. Filmado em uma Berlim completamente destruída, essa é a sua primeira produção com Marlene Dietrich, com quem ele iria ainda filmar, na Inglaterra, "Witness for the prossecution", que tem a participação estupenda de Charles Laughton, como o advogado de defesa.



Era um cineasta que gostava de mulheres lindas. Era um cineasta da chamada "era de ouro de Hollywood", uma época recheada de grandes estrelas. E ele as aproveitou como ninguém. As principais atrizes femininas de sua época filmaram com ele. Wilder colocou a aristocrática Audrey Hepburn primeiro como uma empregada de uma mansão de milionários capitalistas em "Sabrina" [numa dobradinha com Humphrey Bogart] e depois como uma adolescente parisiense que finge ter diversos amantes em "Love in the afternoon" [dessa vez, fazendo par com Gary Cooper]. A adorável Shirley Maclaine é a amante enganada em "The apartment" - talvez o principal sucesso de Wilder, em termos de premiação, tornando o primeiro cineasta a ganhar as três principais estatuetas da festa pelo mesmo filme -; e uma prostituta de sucesso que defende eticamente sua profissão em "Irma la douce". E, claro, Marilyn Monroe, a voluptuosa vizinha de "Seven year itch", com a famosa cena da saia levantada, um dos maiores ícones do cinema de todos os tempos; e "Some like it hot", considerada nada menos que a melhor comédia já feita. Isso sem contar com a mignon Ginger Rogers, a estupenda Gloria Swanson ou a exuberante Kim Novak, entre tantas.



Autor de grandes clássicos do cinema ["Double indemnity" - que fez Hitchcock dizer que a partir de então as duas principais palavras do cinema eram "Billy" e "Wilder" -, "Sunset Boulevard", "Lost weekend", para ficar em apenas alguns], se pode enxergar sua capacidade de desconstruir a moral vigente mesmo em um filme "menor", menos conhecido. Em "Kiss me, stupid", por exemplo. Nele, um famoso cantor americano está indo de carro de Las Vegas para Los Angeles e tem que pegar uma estrada alternativa, por conta de uma obra na rodovia principal. No caminho novo, ele passa numa pequeníssima cidade de Nevada, onde dois compositores querem ter a oportunidade de vender suas músicas e fazer sucesso. Um deles o recebe em casa e o outro, percebendo a tara do cantor famoso por qualquer mulher, decide fazer uma troca e oferecer uma prostituta à guisa da esposa do parceiro. O que poderia ser um filme extremamente sexista, machista, retrógrado, retratando novamente as mulheres em uma posição de completa passividade e inferioridade, sai totalmente do esperado. Com a troca feita, o dono da casa se divide entre oferecer a "mulher" - nada menos que Novak, arrasadora - e vender suas músicas. Até que ele se enfeza com a atitude considerada desrespeitosa do cantor e assume Novak como sua esposa legítima, mesmo que por uma noite, apenas. A prostituta, com baixíssima estima, se sente acolhida e tenta manter uma relação de igual com o compositor. Já a esposa do compositor sem querer assume o lugar da prostituta no bar onde ela trabalhava e recebe coincidentemente o próprio cantor - por quem ela sempre teve uma paixonite. Ninguém é de ninguém.

O filme foi um dos que mais recebeu críticas por atentar contra a moral e os bons costumes. Além de todo o tema ser bastante "avançado" para a época [1964], ou mesmo para hoje, as cenas eram bem sensuais. Os puritanos americanos se incomodaram e muito. Wilder, um remanescente de um período aristocrático, se divertiu com a polêmica.



Talvez seja essa a explicação do sucesso do cineasta nascido austríaco. Ele era de uma Europa que não seguia muito as regras comportamentais, principalmente quando o assunto era sexo. Defendia uma elite intelectual, quase do mesmo jeito que Nietzsche fazia, mostrando que não era necessário respeitar qualquer código de conduta. Raymond Chandler, um dos principais escritores do noir americano, chamado para escrever "Double idemnity" com Wilder, reclamou dos frequentes telefonemas que o companheiro recebia de mulheres. Wilder, novamente, se divertiu.

Mas não era só com mulheres que demonstrava sua vontade de viver livremente. Ele queria fazer com que todo mundo se divertisse mais, fosse mais leve, independente, menos chato e quadrado. Em uma cena de "A foreign affair", de 1948, o capitão interpretado por John Lund, numa postura policialesca, recebe um pai com o filho pestinha que tinha pichado suásticas pela vizinhança. Após a repreensão do militar, o pai promete colocar o filho de castigo num quarto fechado. O capitão responde que os alemães já tinham usado o campo de concentração e não tinha dado certo. Que era melhor ele dar menos disciplina e mais brincadeira para o menino. O pai, ainda acostumado a receber ordens, sai batendo os calcanhares. Ao se virar, vemos que ele também tinha sido alvo das pichações do filho. O judeu Wilder, com a guerra ainda no retrovisor da História, teve a coragem de fazer piada com as piores e mais duras memórias das atrocidades cometidas pelos nazistas.

Quando ficamos tão caretas? Ou melhor: por que ficamos tão caretas?



Ao fim da década de 1970, Luis Fernando Verissimo disse que Woody Allen "sabe que Nova York, como ele, consome cultura de segunda mão: o cinema – que não é feito lá – e o alto pensamento europeu", daí sua opção pela paródia, que era a arte de segunda mão por excelência. Quando Wilder morreu, em 2002, aos 95 anos, ele se referiu ao cineasta como o homem que trouxe para os EUA exatamente esse alto pensamento europeu: "É o melhor exemplo da grande mistura que deu a mentalidade 'mittel' europeia com o dinheiro e as possibilidades de Hollywood". Como se Wilder fosse uma espécie de antecessor de Allen - de quem diz gostar de seus filmes. Assim como o neurótico nova-iorquino, um homem que fez filmes populares e inteligentes, com os melhores roteiros já escritos nos EUA.

Billy Wilder sobrevive sozinho, entretanto. Não precisa se apoiar em outros diretores para mostrar sua importância. Mesmo que ele negue que seja o seu objetivo, seus filmes desafiam o establishment forçando-nos a repensar sempre onde fica a linha que separa o que é certo do errado. Uma característica, como se sabe, divina.


Ps. Apesar de não ser um grande nome entre as estrelas do cinema de Hollywood, Cliff Osmond é um dos atores de estimação de Billy Wilder. Fez três longas com o cineasta, mesmo número de filmes de figuras carimbadas como Walther Mathau ou William Holden. Só Jack Lemmon, com seis filmes, participou de mais produções de Wilder.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Uma questão técnica


O fato de o mundo se basear na técnica não nos obriga a segui-la, assim como, na História do ocidente, já houve momentos em que o mundo ocidental, de influência eurocêntrica, era basicamente cristão e isso não “obrigava” os homens e mulheres a serem cristãos – apesar de ser uma “obrigação” formal de todos serem cristãos, não era possível garantir essa ligação pela fé. A técnica é uma resposta que não-responde muito para as perguntas que os homens se fazem. É uma certeza, um dogma, algo que determina um modo de ser entre infinitos possíveis – mas ainda assim um modo de ser. “A técnica é, então, finalmente, o cunho da época na qual termina, plenamente cumprida, a metafísica ocidental imposta à escala planetária”[1]. Um modo de ser perigoso de nosso tempo. Que pode colocar o homem como um mero apertador de botão, que age irrefletidamente, de maneira automática, para cumprir as metas no prazo recorde, tal qual o personagem de Chaplin em Tempos modernos. Mas em vez de apenas o trabalhador de chão de fábrica se alienar do processo total, e ser mastigado pelas engrenagens da máquina em que trabalha, toda a humanidade seguiria nesse caminho único, rumo a ausência de pensamento. O homem age, já, então, maquinalmente, seguindo as regras estabelecidas pela com-posição, que o encaixa em determinado quadrado de sua estante existencial. A com-posição não “escuta” nem “enxerga” o ser dos entes; ao contrário, força de dentro dos entes a pro-dução de outros entes, que se tornam dis-poníveis – estoque para regular o humor dos mercados. Dis-pensáveis. “O destino enviado na dis-posição é, pois, o perigo extremo”, argumenta Heidegger. O problema não é a técnica, em si, não é o maquinário, o mundo dominado por máquinas – mas o homem abdicar de sua própria capacidade de pensamento em prol de um pensamento técnico, de ciência dura, matemática simples de causa-e-efeito, pouco meditativo ou imaginativo, em que só existe algo para que outro algo exista, numa relação que impede as possibilidades várias de ser. “O que há é o mistério de sua essência. Sendo um envio de desencobrimento, a essência a técnica é o perigo. Talvez a alteração de significado do termo ‘com-posição’ torne-se agora mais familiar, quando pensado no sentido de destino e perigo”[2]


[1] BORGES-DUARTE, Irene. Arte e técnica em Heidegger. Documenta (Lisboa): 2014, p. 172.
[2] HEIDEGGER, Martin. “A questão da técnica”, in: Ensaios e conferências. Ed. Vozes e ed. Universitária São Francisco: Petrópolis e Bragança Paulista (s.d), tradução de Emmanuel Carneiro Leão, p. 30-31.