quarta-feira, 29 de agosto de 2018

Talvez 'precisemos' de mais autoridade

Cometi o erro de assistir aos cinco minutos finais da entrevista do Bolsonaro ontem no JN. Fiquei com uma gastura e um sentimento de amargor na garganta, misturado com uma queimação no estômago e um riso nervoso. E é sobre o riso nervoso que queria falar.

A animosidade contra a Globo é tão grande, [auto]cavada durante tantos anos, construída de tantas formas, que mesmo um candidato fascistoide criando um curto circuito na organização de perguntas e respostas e réplicas e tréplicas do Bonner &cia. nos causa um certo prazer - um prazer culpadíssimo, que evitamos admitir, mas que aparece, sem que percebamos, nesse sorriso estranho.

Uma das razões é, inclusive e exatamente, o apoio em 1964 das Organizações Globo ao golpe militar - golpe que o Bolsonaro chama de revolução, repetindo um coro que foi engrossado exatamente pela Globo desde antes mesmo do primeiro momento, ou do primeiro de abril.

Ter admitido por meio de um editorial, há apenas cinco anos, no meio da efervescência das ruas de 2013, portanto cerca de 50 anos depois do início do apoio, que essa base de sustentação foi um equívoco, é muito pouco. Parece que não aprenderam a lição.

Quando repetimos a platitude que nós, como projeto de país, não gostamos de olhar para a História, poderíamos usar esse exemplo para nos apoiar. Não adianta simplesmente "pedir desculpas", se continuar a repetir as mesmas táticas, meio século depois. Vide o caso do apoio à derrubada da presidenta eleita sem qualquer motivo que justificasse essa virada de mesa completa. Essa ferida tem também seu preço, e estamos vivendo as consequências dele, até hoje - e vamos viver por muito tempo.

O Bolsonaro é, também, fruto de uma mentalidade que não extirpou a possibilidade do retorno a um governo profundamente autoritário, que não acabou com o ranço absolutista e feudal, que mora na psiquê da nossa pseudo-elite, que tem como uma única tática de governança propor [mais] violência para acabar com a violência. O que foi nossa lei de anistia? O que foi a nossa Comissão da Verdade?

E a Globo é parte integrante desse esquema. Não é fácil assistir ao Bonner falar do problema das balas perdidas sem quase rir de escárnio, lembrando do apoio que as OGs em geral deram à limpeza étnica promovida pelo Cabral nas favelas e periferias cariocas, na sua sanha de implantar UPPs para os "grandes eventos". Isso para citar um único exemplo.

Talvez "precisemos", nós, esse projeto de nação, retornar a um governo autoritário e sem qualquer traquejo social, para, como acontece na psicanálise, experimentar novamente os horrores da nossa mais profunda pulsão de morte. Não adianta que os iluminados e esclarecidos acendam as tochas e digam qual é o caminho, se os demais preferem seguir em direção à fogueira.

Não há nada para "ensinar" uns aos outros - temos que todos perceber o quanto é pior viver num país com suas liberdades democráticas diminuídas. Enquanto isso não for uma realidade, carnal, dolorida, para todos, inclusive aí para o Grupo Globo, nada vai mudar, mesmo.

Ou talvez para a grandessíssima maioria da população não houve, assim, significativas mudanças desde que voltamos a ir de quatro em quatro anos a uma urna escolher um entre outros nomes. Por isso, voltar ou não voltar para uma ditadura [escancarada ou envergonhada] não faria tanta diferença.

Apenas [e outro talvez aqui] por apenas um curto período de tempo, os mais pobres se sentiram olhados, cuidados, apenas em um curto período eles sentiram que havia um projeto de país que incluía eles, também. Não à toa que há um candidato com 40% das intenções de voto. E não à toa, para mostrar o quanto não aprendemos nada, que esse candidato esteja preso.

ps. Essa não é uma declaração de voto, nem um bater de ombros cínico, mas uma tentativa de pensar a política institucional além das próprias questões eleitoreiras, para evitar em mim esse sentimento generalizado de incapacidade. É lembrar de todas as nossas responsabilidades no jogo, além do simples apertar botões num computador com os números de candidatos virtuais.

sexta-feira, 3 de agosto de 2018

O espelho do homem-hétero-branco-cis

O homem hétero branco cis, topo da cadeia social, é colocado desde o início da vida, da história da civilização ocidental, do capitalismo, em frente a um espelho que não reflete exatamente a ele, mas a um ideal de identidade, fixa, imutável, que devora as diferenças e defeca uma igualdade. Quando ele não se enxerga nesse espelho, ele encontra, não a si próprio, mas o vazio, o abismo, o nulo. Ele vê o nada.

Provavelmente todos os homens não se enxergam nesse espelho a todo o momento.

Provavelmente, todos os homens se enxergam nesse espelho em algum momento.

Alguns, quando não se enxergam, fecham os olhos e pensam que estão vendo alucinações. Buscam qualquer disfarce que encontram para tapar as próprias vergonhas. Vasculham na memória outros valores em desuso para colocar no lugar dos atuais, que acabaram de sumir. Esperam o tempo passar, e conferem de tempos em tempos a imagem até que ela volte a tremular - assim espera - formando novamente a tal imagem que ele já estava acostumado a fazer de si mesmo. Ou outra imagem correspondente aos seus maiores medos.

Essa imagem é um algoritmo que catalisa todas as ações do mundo, para quem quer acreditar nela, que funciona como uma resposta pronta, datada e parada no espaço, para diversos problemas que se apresentam ao longo do curso da própria vida e história. Como se comportar diante das questões, quais caminhos tomar nas encruzilhadas, o que fazer entre o "certo" e o "errado", o "certo" e o "duvidoso".

É tão sólida essa imagem auto-refletida que quase não há qualquer margem para manobra, para movimentação, para ajustes. É uma torre alta, firme, de mármore, mas que qualquer vento mais suave a faz tremelicar. É uma torre frágil, no sentido de poder ser derrubada a qualquer momento, por qualquer ato, mesmo que ligeiramente menos ortodoxo.

Não há quem estabeleça seus padrões, um culpado, é um consenso sem rosto, que muda de acordo com o tempo histórico e a localização geográfica. É estabelecido pela força, pela cobrança, pela competitividade, pela tentativa de se destacar, se tornar mais topo que os outros topos, nessa demografia sentimental triste.

Outros homens, quando não se enxergam no tal espelho, caem no próprio buraco que eles encontram ali, no vidro vazado e infinito. São sugados, como num vácuo, e ficam navegando a esmo, culpando o mundo ao seu redor por conta das mentiras que contaram para ele desde a infância, por conta do sofrimento de não ter qualquer identidade onde se apoiar mais firmemente, um em-si anterior que eles podiam acreditar que existiria como um fundamento, um solo, ao longo da sua vida inteira. Eles não têm mais resposta e, tal um garoto mimado, vivem pelos cantos, reclamando da má sorte que tiveram, como se eles fossem pobres-coitados que perderam a alma, vagando sem rumo, porque não há razão de ser, o mundo não faz sentido e blablablá.

Há aqueles que tomam um susto quando percebem que o reflexo no espelho sumiu, fugiu, ou mesmo nunca existiu, era uma alucinação coletiva, bancada por vozes uníssonas que repetem obviedades já cristalizadas, em um estado de coisas antigo, mofado, doente e triste. Uma espécie de máquina de moer gente, uma hereditariedade não-genética tóxica. Buscam o corrimão, a tradição, a história e quase caem do caminho - porque não há nada, não há qualquer parâmetro. Apagaram a linha do horizonte. Vale tudo - para todos os lados - mas não é uma vale-tudo, e nem tudo vale.

Depois do baque, de espernear, de se sentir abandonado por uma figura paterna no meio do deserto sem nem mesmo um sol para dizer onde é o Norte, alguns, alguns conseguem finalmente se tornar, de se deixar ser, se aceitar como - por um instante, numa fração de segundo, ou por mais tempo - mulher. Devir mulher, gay, trans, preta, animal, pedra. Se perceber não como uma rocha, mas como o que for a cada instante, criando os solos apenas nos exatos momentos em que o passo precisar de um chão.

A única possibilidade de sair dessa posição de carregador de peso do estado - do Estado -, de tirar o passado de sobre as costas, mesmo que momentaneamente, é aceitar o vazio como constituinte, o vazio como a nossa única certeza, e nos pensar a partir de então. Mas uma certeza capenga, que só existe aqui como um sinônimo incompleto e aproximado. Uma certeza instantânea, apenas para efeito de comparação, de comunicação.

Só o homem-branco-hétero-cis, esse sujeito oculto, inexistente, ficcional, tem, desde o início, um projeto já fechado, que ele é obrigado comprar com as portas fechadas e não pode mudar um centímetro. Mas esse projeto não existe - é uma ficção, uma ilusão, uma mentira como um espelho que só reflete a mesma imagem sempre, independentemente de quem a olhar.

Todas as (outras) figuras translúcidas da diferença precisam construir a própria vida, ao longo da própria vida - nada é garantido, nada é certeza, sempre há alguém te olhando de cima para baixo, te cobrando ser igual ao modelo. Elas devem descobrir quais são os próprios desejos, dentro dessa fumaça impalpável e disforme, ou das encruzilhadas de vetores tão diferentes entre si, que são as fontes dos desejos - e, se corajosas, segui-los.

Se com o século XX descobrimos o "vazio da existência" (eca), podemos nesse tempo que ainda nos resta, antes que o deserto avance totalmente, nos preencher com alegria. Não uma euforia efêmera, que passa com o virar das páginas do calendário, mas com uma alegria que não nos deixe dobrar debaixo de qualquer obrigação, qualquer formato já pré-estabelecido. Uma alegria que aceite as variações do tempo, que saiba que a tristeza é sua própria constituinte, que perceba que só há diferença, diferenças, nunca formatos fechados. Uma alegria que tenha verdadeira noção de como não há saída, de que sempre nos pegaremos procurando alguma imagem no espelho, nos momentos mais complicados, de que as lembranças de outras imagens antigas vão ressoar e acionar gatilhos já condicionados, e que podemos no máximo criar contra-gatilhos, e apenas vagarosamente reconfigurar nossos próprios sistemas internos. Uma alegria que saiba que qualquer prescrição de método - como esse texto mesmo - é fadado ao fracasso, exatamente porque não há qualquer modelo a se seguir. Uma alegria que aposte mais em exemplos, que conte as histórias entre as identidades [homem-inter-mulher, branco-pardo-mestiço, gay-bi-hétero etc.], mais que sobre as identidades. Uma alegria que não se queira verdade.

quarta-feira, 1 de agosto de 2018

A felicidade que vence o medo

Vejo muitos amigos profundamente preocupados com a aparente solidez de uma campanha de extrema-direita para a presidência e fico absolutamente aflito com essa angústia. Esse texto aí foi para tentar acalmar - a mim e aos meus próximos.

Política não pode ser o futebol dos escolarizados, dos "intelectuais", com suas disputas ferrenhas e debates acalorados sobre única e exclusivamente o "vencedor", o "melhor". Nada contra o futebol - ao contrário - mas os dois seguem caminhos diferentes. E não estou me referindo à batida disputa metafísica entre coração x mente - porque nesse aspecto futebol e política são muito parecidos: ambos são "quentes", absolutamente "emotivos". Aliás, como todos os problemas que enfrentamos cotidianamente e que nos [co]movem.

Mas não podemos pensar que a vitória ou a derrota do nosso candidato tem alguma coisa a ver conosco - seja por nossa influência, seja nos influenciando. Em outras palavras, a política institucional é apenas um dos formatos da política - pensada aqui como a arte de dividirmos o mesmo espaço público-comunitário. Não nos deixemos aprisionar pelo ideal de que a política é apenas votar de dois em dois anos. É desse tipo de pensamento que nossos medos se nutrem. Ficamos presos apenas no voto e se o perdemos não temos mais nada. Não pode ser assim. Não deve ser assim. É melhor não ser assim.

Além disso, seria bom admitir de cara: o tal candidato fascistoide já levou. Não estou dizendo a eleição, porque previsão do tempo é algo que nem meteorologista nem feiticeiro acerta com precisão - e só alguns homens, achando ter razão acima de tudo, se arriscam. E não quero repetir o erro de sugerir uma série de atitudes como profilaxia para nos salvar - não tenho qualquer sugestão relevante para o assunto, nem se devemos atacar os indecisos, nem uma lista de perguntas possíveis para o tal candidato [cujo nome evito por pura superstição]. Mas pensando em como está cada vez mais presente em nosso cotidiano a pauta de a violência ser combatida por apenas mais violência; ou como o moralismo explícito tentou, com frequência crescente, censurar movimentos de alargamento de horizontes; ou como se alastrou a epidemia de medo, mesmo em classes sociais bem seguras, economicamente falando.

Lembremos, para comprovar, de como a intervenção militar foi usada também para abocanhar um naco dos eleitores do deputado ex-capitão, ou do endurecimento [ainda maior] do discurso do candidato sabor chuchu; ou como o MBL surfa em guerras contra exposições de artes plásticas; ou como os telejornais sangram diariamente, parecendo que vamos ser atacados ao cruzar a esquina mesmo das ruas mais ricas do país.

Também podemos pensar em nossa "derrota" em todas as vezes que esse senhor povoa nossas conversas, sequestra nossas atenções. Ele representa tudo o que "nós" - esquerdistas, esclarecidos, liberais - mais abominamos. Não é, então, de se espantar o susto. Mas o medo, o pavor, o desespero? Não exageremos, não exageremos muito. O que ele pode fazer de tão assustadoramente mortífero - que outros já não fazem, não fizeram - para nos paralisar assim? Vide, inclusive, os exemplos para mostrar como ele  ganhou.

Por que não virar a chave, então? Sair das cordas e partir para o ataque?

Não seria esse espanto uma ótima oportunidade para nós pensarmos em outras soluções políticas que não incluam o caminho da política institucional? Evitarmos focar todas as nossas forças nesse processo de voto para que evitemos depositar numa urna todas as nossas esperanças? Para não termos pavor de um sujeito claramente incapaz de ocupar qualquer cargo eletivo - vide a sua incapacidade de aprovar projetos em seu nome, nas quase três décadas de congresso?

O que nós podemos fazer para nos nutrir de sentimentos opostos ao pavor? Como sair da posição de acuado e ser mais dono da própria vida? Como redescobrir, não o que nos deixe eufórico e some, mas aquilo que nos torna mais felizes, mais autônomos, mais independentes?

Bolsonaro não é um fenômeno isolado. Ele não apareceu ontem. É produto de uma série de sentimentos tristes que se encontraram em uma encruzilhada histórica, que vão desde a crônica política de insegurança pública, passando pelas fobias e ódios generalizados, que ficaram fermentando debaixo do tecido social por gerações e puderam sair do armário recentemente, chegando à desagregação geral pela política institucional, cujo cume foi a destituição política de uma presidenta eleita sem que ela tenha cometido um crime digno do nome. Ele é um símbolo de nossa época. Mas não é o único. Podemos nos alimentar de outros caminhos.

Deixar que ele colonize nossos pensamentos, drene nossas forças, nos acue no canto é perder o jogo - o verdadeiro jogo - antes mesmo de ele começar.