O homem hétero branco cis, topo da cadeia social, é colocado desde o início da vida, da história da civilização ocidental, do capitalismo, em frente a um espelho que não reflete exatamente a ele, mas a um ideal de identidade, fixa, imutável, que devora as diferenças e defeca uma igualdade. Quando ele não se enxerga nesse espelho, ele encontra, não a si próprio, mas o vazio, o abismo, o nulo. Ele vê o nada.
Provavelmente todos os homens não se enxergam nesse espelho a todo o momento.
Provavelmente, todos os homens se enxergam nesse espelho em algum momento.
Alguns, quando não se enxergam, fecham os olhos e pensam que estão vendo alucinações. Buscam qualquer disfarce que encontram para tapar as próprias vergonhas. Vasculham na memória outros valores em desuso para colocar no lugar dos atuais, que acabaram de sumir. Esperam o tempo passar, e conferem de tempos em tempos a imagem até que ela volte a tremular - assim espera - formando novamente a tal imagem que ele já estava acostumado a fazer de si mesmo. Ou outra imagem correspondente aos seus maiores medos.
Essa imagem é um algoritmo que catalisa todas as ações do mundo, para quem quer acreditar nela, que funciona como uma resposta pronta, datada e parada no espaço, para diversos problemas que se apresentam ao longo do curso da própria vida e história. Como se comportar diante das questões, quais caminhos tomar nas encruzilhadas, o que fazer entre o "certo" e o "errado", o "certo" e o "duvidoso".
É tão sólida essa imagem auto-refletida que quase não há qualquer margem para manobra, para movimentação, para ajustes. É uma torre alta, firme, de mármore, mas que qualquer vento mais suave a faz tremelicar. É uma torre frágil, no sentido de poder ser derrubada a qualquer momento, por qualquer ato, mesmo que ligeiramente menos ortodoxo.
Não há quem estabeleça seus padrões, um culpado, é um consenso sem rosto, que muda de acordo com o tempo histórico e a localização geográfica. É estabelecido pela força, pela cobrança, pela competitividade, pela tentativa de se destacar, se tornar mais topo que os outros topos, nessa demografia sentimental triste.
Outros homens, quando não se enxergam no tal espelho, caem no próprio buraco que eles encontram ali, no vidro vazado e infinito. São sugados, como num vácuo, e ficam navegando a esmo, culpando o mundo ao seu redor por conta das mentiras que contaram para ele desde a infância, por conta do sofrimento de não ter qualquer identidade onde se apoiar mais firmemente, um em-si anterior que eles podiam acreditar que existiria como um fundamento, um solo, ao longo da sua vida inteira. Eles não têm mais resposta e, tal um garoto mimado, vivem pelos cantos, reclamando da má sorte que tiveram, como se eles fossem pobres-coitados que perderam a alma, vagando sem rumo, porque não há razão de ser, o mundo não faz sentido e blablablá.
Há aqueles que tomam um susto quando percebem que o reflexo no espelho sumiu, fugiu, ou mesmo nunca existiu, era uma alucinação coletiva, bancada por vozes uníssonas que repetem obviedades já cristalizadas, em um estado de coisas antigo, mofado, doente e triste. Uma espécie de máquina de moer gente, uma hereditariedade não-genética tóxica. Buscam o corrimão, a tradição, a história e quase caem do caminho - porque não há nada, não há qualquer parâmetro. Apagaram a linha do horizonte. Vale tudo - para todos os lados - mas não é uma vale-tudo, e nem tudo vale.
Depois do baque, de espernear, de se sentir abandonado por uma figura paterna no meio do deserto sem nem mesmo um sol para dizer onde é o Norte, alguns, alguns conseguem finalmente se tornar, de se deixar ser, se aceitar como - por um instante, numa fração de segundo, ou por mais tempo - mulher. Devir mulher, gay, trans, preta, animal, pedra. Se perceber não como uma rocha, mas como o que for a cada instante, criando os solos apenas nos exatos momentos em que o passo precisar de um chão.
A única possibilidade de sair dessa posição de carregador de peso do estado - do Estado -, de tirar o passado de sobre as costas, mesmo que momentaneamente, é aceitar o vazio como constituinte, o vazio como a nossa única certeza, e nos pensar a partir de então. Mas uma certeza capenga, que só existe aqui como um sinônimo incompleto e aproximado. Uma certeza instantânea, apenas para efeito de comparação, de comunicação.
Só o homem-branco-hétero-cis, esse sujeito oculto, inexistente, ficcional, tem, desde o início, um projeto já fechado, que ele é obrigado comprar com as portas fechadas e não pode mudar um centímetro. Mas esse projeto não existe - é uma ficção, uma ilusão, uma mentira como um espelho que só reflete a mesma imagem sempre, independentemente de quem a olhar.
Todas as (outras) figuras translúcidas da diferença precisam construir a própria vida, ao longo da própria vida - nada é garantido, nada é certeza, sempre há alguém te olhando de cima para baixo, te cobrando ser igual ao modelo. Elas devem descobrir quais são os próprios desejos, dentro dessa fumaça impalpável e disforme, ou das encruzilhadas de vetores tão diferentes entre si, que são as fontes dos desejos - e, se corajosas, segui-los.
Se com o século XX descobrimos o "vazio da existência" (eca), podemos nesse tempo que ainda nos resta, antes que o deserto avance totalmente, nos preencher com alegria. Não uma euforia efêmera, que passa com o virar das páginas do calendário, mas com uma alegria que não nos deixe dobrar debaixo de qualquer obrigação, qualquer formato já pré-estabelecido. Uma alegria que aceite as variações do tempo, que saiba que a tristeza é sua própria constituinte, que perceba que só há diferença, diferenças, nunca formatos fechados. Uma alegria que tenha verdadeira noção de como não há saída, de que sempre nos pegaremos procurando alguma imagem no espelho, nos momentos mais complicados, de que as lembranças de outras imagens antigas vão ressoar e acionar gatilhos já condicionados, e que podemos no máximo criar contra-gatilhos, e apenas vagarosamente reconfigurar nossos próprios sistemas internos. Uma alegria que saiba que qualquer prescrição de método - como esse texto mesmo - é fadado ao fracasso, exatamente porque não há qualquer modelo a se seguir. Uma alegria que aposte mais em exemplos, que conte as histórias entre as identidades [homem-inter-mulher, branco-pardo-mestiço, gay-bi-hétero etc.], mais que sobre as identidades. Uma alegria que não se queira verdade.
Provavelmente todos os homens não se enxergam nesse espelho a todo o momento.
Provavelmente, todos os homens se enxergam nesse espelho em algum momento.
Alguns, quando não se enxergam, fecham os olhos e pensam que estão vendo alucinações. Buscam qualquer disfarce que encontram para tapar as próprias vergonhas. Vasculham na memória outros valores em desuso para colocar no lugar dos atuais, que acabaram de sumir. Esperam o tempo passar, e conferem de tempos em tempos a imagem até que ela volte a tremular - assim espera - formando novamente a tal imagem que ele já estava acostumado a fazer de si mesmo. Ou outra imagem correspondente aos seus maiores medos.
Essa imagem é um algoritmo que catalisa todas as ações do mundo, para quem quer acreditar nela, que funciona como uma resposta pronta, datada e parada no espaço, para diversos problemas que se apresentam ao longo do curso da própria vida e história. Como se comportar diante das questões, quais caminhos tomar nas encruzilhadas, o que fazer entre o "certo" e o "errado", o "certo" e o "duvidoso".
É tão sólida essa imagem auto-refletida que quase não há qualquer margem para manobra, para movimentação, para ajustes. É uma torre alta, firme, de mármore, mas que qualquer vento mais suave a faz tremelicar. É uma torre frágil, no sentido de poder ser derrubada a qualquer momento, por qualquer ato, mesmo que ligeiramente menos ortodoxo.
Não há quem estabeleça seus padrões, um culpado, é um consenso sem rosto, que muda de acordo com o tempo histórico e a localização geográfica. É estabelecido pela força, pela cobrança, pela competitividade, pela tentativa de se destacar, se tornar mais topo que os outros topos, nessa demografia sentimental triste.
Outros homens, quando não se enxergam no tal espelho, caem no próprio buraco que eles encontram ali, no vidro vazado e infinito. São sugados, como num vácuo, e ficam navegando a esmo, culpando o mundo ao seu redor por conta das mentiras que contaram para ele desde a infância, por conta do sofrimento de não ter qualquer identidade onde se apoiar mais firmemente, um em-si anterior que eles podiam acreditar que existiria como um fundamento, um solo, ao longo da sua vida inteira. Eles não têm mais resposta e, tal um garoto mimado, vivem pelos cantos, reclamando da má sorte que tiveram, como se eles fossem pobres-coitados que perderam a alma, vagando sem rumo, porque não há razão de ser, o mundo não faz sentido e blablablá.
Há aqueles que tomam um susto quando percebem que o reflexo no espelho sumiu, fugiu, ou mesmo nunca existiu, era uma alucinação coletiva, bancada por vozes uníssonas que repetem obviedades já cristalizadas, em um estado de coisas antigo, mofado, doente e triste. Uma espécie de máquina de moer gente, uma hereditariedade não-genética tóxica. Buscam o corrimão, a tradição, a história e quase caem do caminho - porque não há nada, não há qualquer parâmetro. Apagaram a linha do horizonte. Vale tudo - para todos os lados - mas não é uma vale-tudo, e nem tudo vale.
Depois do baque, de espernear, de se sentir abandonado por uma figura paterna no meio do deserto sem nem mesmo um sol para dizer onde é o Norte, alguns, alguns conseguem finalmente se tornar, de se deixar ser, se aceitar como - por um instante, numa fração de segundo, ou por mais tempo - mulher. Devir mulher, gay, trans, preta, animal, pedra. Se perceber não como uma rocha, mas como o que for a cada instante, criando os solos apenas nos exatos momentos em que o passo precisar de um chão.
A única possibilidade de sair dessa posição de carregador de peso do estado - do Estado -, de tirar o passado de sobre as costas, mesmo que momentaneamente, é aceitar o vazio como constituinte, o vazio como a nossa única certeza, e nos pensar a partir de então. Mas uma certeza capenga, que só existe aqui como um sinônimo incompleto e aproximado. Uma certeza instantânea, apenas para efeito de comparação, de comunicação.
Só o homem-branco-hétero-cis, esse sujeito oculto, inexistente, ficcional, tem, desde o início, um projeto já fechado, que ele é obrigado comprar com as portas fechadas e não pode mudar um centímetro. Mas esse projeto não existe - é uma ficção, uma ilusão, uma mentira como um espelho que só reflete a mesma imagem sempre, independentemente de quem a olhar.
Todas as (outras) figuras translúcidas da diferença precisam construir a própria vida, ao longo da própria vida - nada é garantido, nada é certeza, sempre há alguém te olhando de cima para baixo, te cobrando ser igual ao modelo. Elas devem descobrir quais são os próprios desejos, dentro dessa fumaça impalpável e disforme, ou das encruzilhadas de vetores tão diferentes entre si, que são as fontes dos desejos - e, se corajosas, segui-los.
Se com o século XX descobrimos o "vazio da existência" (eca), podemos nesse tempo que ainda nos resta, antes que o deserto avance totalmente, nos preencher com alegria. Não uma euforia efêmera, que passa com o virar das páginas do calendário, mas com uma alegria que não nos deixe dobrar debaixo de qualquer obrigação, qualquer formato já pré-estabelecido. Uma alegria que aceite as variações do tempo, que saiba que a tristeza é sua própria constituinte, que perceba que só há diferença, diferenças, nunca formatos fechados. Uma alegria que tenha verdadeira noção de como não há saída, de que sempre nos pegaremos procurando alguma imagem no espelho, nos momentos mais complicados, de que as lembranças de outras imagens antigas vão ressoar e acionar gatilhos já condicionados, e que podemos no máximo criar contra-gatilhos, e apenas vagarosamente reconfigurar nossos próprios sistemas internos. Uma alegria que saiba que qualquer prescrição de método - como esse texto mesmo - é fadado ao fracasso, exatamente porque não há qualquer modelo a se seguir. Uma alegria que aposte mais em exemplos, que conte as histórias entre as identidades [homem-inter-mulher, branco-pardo-mestiço, gay-bi-hétero etc.], mais que sobre as identidades. Uma alegria que não se queira verdade.
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