segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

A esperança

A esperança. — Pandora trouxe o vaso que continha os males e o abriu. Era o presente dos deuses aos homens, exteriormente um presente belo e sedutor, denominado "vaso da felicidade". E todos os males, seres vivos alados, escaparam voando: desde então vagueiam e prejudicam os homens dia e noite. Um único mal ainda não saíra do recipiente; então, seguindo a vontade de Zeus, Pandora repôs a tampa, e ele permaneceu dentro. O homem tem agora para sempre o vaso da felicidade, e pensa maravilhas do tesouro que nele possui; este se acha à sua disposição: ele o abre quando quer; pois não sabe que Pandora lhe trouxe o recipiente dos males, e para ele o mal que restou é o maior dos bens — é a esperança. — Zeus quis que os homens, por mais torturados que fossem pelos outros males, não rejeitassem a vida, mas continuassem a se deixar torturar. Para isso lhes deu a esperança: ela é na verdade o pior dos males, pois prolonga o suplício dos homens.

Nietzsche, em Humano, demasiado humano§71.

terça-feira, 7 de dezembro de 2021

Vida x liberdade

Tornar-se mais indiferente à labuta, dureza, privação, até mesmo à vida. Estar disposto a sacrificar seres humanos à sua causa, não excluindo a si mesmo. Liberdade significa que os instintos viris, que se deleitam na guerra e na vitória, predominam sobre outros instintos, os da “felicidade”, por exemplo. 

Falas como a do ministro da Saúde [‘Melhor perder a vida do que perder a liberdade’] lembram muito passagens como essa aí de cima do Nietzsche. Se há um componente do liberalismo escravocrata, como bem salientou o Marcos Queiroz aqui, há uma tentativa de resgatar também uma honra, um elemento metafísico superior, de virilidade, de não poder ser impedido, de reencontrar o animal adormecido. Se na época do Nietzsche isso fazia algum sentido - ele estava combatendo uma tradição literalmente milenar de adormecimento dos instintos - agora, quase 200 anos depois de nos termos liberado dessas amarras, parece apenas patético.  

quarta-feira, 24 de novembro de 2021

A dificuldade em pagar as contas

Manter-me nesses últimos anos – isso foi talvez o mais difícil que o meu destino até agora me exigiu. Depois de um tal brado, como foi meu Zaratustra, desde o mais íntimo da alma, não ouvir nenhuma voz de resposta, nada, nada, sempre a solidão sem voz de mil faces – isso é sobremaneira terrível, nisso pode sucumbir ‘até o mais forte’! Ah, eu não sou o mais forte! Meu ânimo está, desde então, ferido; admiro que ainda vivo. Mas não há dúvida de que eu vivo: quem sabe o que ainda tenho que vivenciar!

Carta de Nietzsche a F. Overbeck, de 17 de junho de 1887. KSB 8, n. 863, p. 93s. 

Te entendo, Nietzsche. Te entendo.

quarta-feira, 17 de novembro de 2021

'Prometeu', de Goethe

 Encobre o teu céu, ó Zeus,

Com vapores de nuvens,

E, qual menino que decepa

A flor dos cardos,

Exercita-te em carvalhos e cristas de montes;

Mas a minha Terra

Terás que deixar,

E a minha cabana, que não construíste,

E o meu lar,

Cujo braseiro

Me invejas.

Nada mais pobre conheço

Sob o sol do que vós, ó Deuses!

Mesquinhamente nutris

De tributos de sacrifícios

E hálitos de preces

A vossa majestade;

E morreríeis de fome, não fossem

Crianças e mendigos

Loucos cheios de esperança.

Quando era menino e não sabia

Pra onde havia de virar-me,

Voltava os olhos desgarrados

Para o sol, como se lá houvesse

Ouvido pra o meu queixume,

Coração como o meu

Que se compadecesse da minha angústia.

Quem me ajudou

Contra a insolência dos Titãs?

Quem me livrou da morte,

Da escravidão?

Pois não foste tu mesmo que tudo conseguiste

Ó sagrado e ardente coração?

E jovem e bom – enganado

Ardias àquele que lá em cima dormia

Agradecido pela salvação?

Eu venerar-te? E por quê?

Suavizaste tu alguma vez as dores

Do oprimido?

Enxugaste alguma vez as lágrimas

Do angustiado?

Pois não me forjaram Homem

O Tempo todo-poderoso

E o Destino eterno,

Meus senhores e teus?

Pensavas tu talvez

Que eu havia de odiar a Vida

E fugir para os desertos,

Porque nem todos

Os sonhos em flor frutificaram?

Pois aqui estou! Formo homens

À minha imagem,

Uma estirpe que a mim se assemelhe:

Para sofrer, para chorar,

Para gozar e se alegrar,

E pra não te respeitar,

Como eu!

quinta-feira, 11 de novembro de 2021

Toward a theory of schizophrenia, Bateson et all

Given this inability to judge accurately what a person really means and an excessive concern with what is really meant, an individual might defend himself by choosing one or more of several alternatives. He might, for example, assume that behind every statement is a concealed meaning which is detrimental to his welfare. He would then be excessively concerned with hidden meanings and determined to demonstrate that he could not be deceived --as he had been all his life. If he chooses this alternative, he will be continually searching for meanings behind what people say and behind chance occurrences in the environment, and he will be characteristically suspicious and defiant.

Entendo. 


quarta-feira, 13 de outubro de 2021

A autonomia e a empatia

A autonomia e a empatia não se materializaram a partir do ar rarefeito do século xviii: elas tinham raízes profundas. Durante o longo período de vários séculos, os indivíduos tinham começado a se afastar das teias da comunidade, tornando-se agentes cada vez mais independentes tanto legal como psicologicamente. Um maior respeito pela integridade corporal e linhas de demarcação mais claras entre os corpos individuais haviam sido produzidos pelo limiar cada vez mais elevado da vergonha a respeito das funções corporais e pelo senso crescente de decoro corporal. Com o tempo, as pessoas começaram a dormir sozinhas ou apenas com um cônjuge na cama. Usavam utensílios para comer e começaram a considerar repulsivo um comportamento antes tão aceitável, como jogar comida no chão ou limpar excreções corporais nas roupas. A constante evolução de noções de interioridade e profundidade da psique, desde a alma cristã à consciência protestante e às noções de sensibilidade do século xviii, preenchia a individualidade com um novo conteúdo. Todos esses processos ocorreram durante um longo período.

HUNT, Lynn. A invenção dos direitos humanos. Companhia das letras, São Paulo: 2009. p. 28

 

segunda-feira, 13 de setembro de 2021

Nietzsche entre o sensualismo e o platonismo

Começa a despontar em cinco, seis cérebros, talvez, a ideia de que também a física é apenas uma interpretação e disposição do mundo! (nisso nos acompanhando, permitam lembrar!) e não uma explicação do mundo: porém, na medida em que se apoia na crença nos sentidos, ela passa, e deverá passar durante muito tempo, por algo mais, isto é, por explicação. Ela tem olhos e dedos a seu favor, tem a evidência ocular e a tangibilidade: sobre uma época de gosto fundamentalmente plebeu isto exerce um efeito fascinante, persuasivo, convincente — afinal, segue instintivamente o cânon de verdade do sensualismo eternamente popular. O que é claro, o que “esclarece”? Primeiro, aquilo que pode ser visto e tocado — todo problema tem que ser levado até esse ponto. Inversamente, na oposição à evidência dos sentidos estava o encanto do modo platônico de pensar, que era um modo nobre de pensar — entre homens, talvez, que desfrutavam de sentidos até mais fortes e imperiosos do que os de nossos contemporâneos, mas que sabiam ver um triunfo mais elevado em permanecer mestres desses sentidos: e isto mediante pálidas, cinzentas, frias redes de conceitos, que jogavam sobre o variegado torvelinho dos sentidos — a turba dos sentidos, como disse Platão. Nessa interpretação e superação do mundo à maneira de Platão havia uma espécie de gozo distinto daquele que nos oferecem os físicos de hoje, ou os darwinistas e antiteleólogos entre os que trabalham na fisiologia, com seu princípio da “força mínima” e da estupidez máxima, “Onde o homem nada encontra para ver e pegar, nada tem para fazer” — este é sem dúvida um imperativo diferente do platônico, mas para uma raça dura e laboriosa de futuros mecânicos e construtores de pontes, que não terá senão trabalho grosseiro a executar, pode bem ser o imperativo justo. 

NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. Tradução Paulo Cesar de Souza. Companhia das Letras, São Paulo: 1992. Cap. 1 §14.

domingo, 5 de setembro de 2021

"Memórias do subsolo", trecho

 — Mas não é uma vergonha, não é uma humilhação?! — talvez me digais, balançando com desdém a cabeça. — Está ansiando pela vida, mas resolve os problemas da existência com um emaranhado lógico. E como são importunas, como são insolentes as suas saídas, e, ao mesmo tempo, como o senhor tem medo! Afirma absurdos e se satisfaz com eles; diz insolências, mas sempre se assusta com elas e pede desculpas. Assegura não temer nada e, ao mesmo tempo, busca o nosso aplauso. Garante estar rangendo os dentes e, simultaneamente, graceja, para nos fazer rir. Sabe que os seus gracejos não têm espírito, mas, ao que parece, está muito satisfeito com a sua qualidade literária. É possível que tenha sofrido realmente; todavia, não respeita um pouco sequer o seu próprio sofrimento. No senhor há verdade, mas não há pureza; por motivo da mais mesquinha vaidade, traz a sua verdade à mostra, conduzindo-a para a ignomínia, para a feira... Realmente, quer dizer algo, no entanto, por temor, oculta a sua palavra derradeira, porque não tem suficiente decisão para dizê-la, mas apenas uma assustada impertinência. Vangloria-se da sua consciência, mas, na realidade, apenas vacila, pois, embora o seu cérebro funcione, o seu coração está obscurecido pela perversão, e, sem um coração puro, não pode haver consciência plena, correta. E que capacidade de importunar, que insistência, como careteia! Mentira, mentira, mentira!

Memórias do subsolo, cap. XI, Dostoievski. 

segunda-feira, 12 de julho de 2021

Nietzsche, O maior dos pesos

341. O maior dos pesos. — E se um dia, ou uma noite, um demônio lhe aparecesse furtivamente em sua mais desolada solidão e dissesse: “Esta vida, como você a está vivendo e já viveu, você terá de viver mais uma vez e por incontáveis vezes; e nada haverá de novo nela, mas cada dor e cada prazer e cada suspiro e pensamento, e tudo o que é inefavelmente grande e pequeno em sua vida, terão de lhe suceder novamente, tudo na mesma sequência e ordem — e assim também essa aranha e esse luar entre as árvores, e também esse instante e eu mesmo. A perene ampulheta do existir será sempre virada novamente — e você com ela, partícula de poeira!”. — Você não se prostraria e rangeria os dentes e amaldiçoaria o demônio que assim falou? Ou você já experimentou um instante imenso, no qual lhe responderia: “Você é um deus e jamais ouvi coisa tão divina!”. Se esse pensamento tomasse conta de você, tal como você é, ele o transformaria e o esmagaria talvez; a questão em tudo e em cada coisa, “Você quer isso mais uma vez e por incontáveis vezes?”, pesaria sobre os seus atos como o maior dos pesos! Ou o quanto você teria de estar bem consigo mesmo e com a vida, para não desejar nada além dessa última, eterna confirmação e chancela? 

Nietzsche, A gaia ciência, 341.

[frase não publicada: "Desde a vida, e a partir de ti mesmo, ser bom, tornar-se bom, ou poder tornar-se bom, este peso, não vivenciá-lo como o peso [Last] mais supremo, mas como supremo prazer [Lust]."]

quarta-feira, 2 de junho de 2021

Arte de outros povos

Nos povos que seguiram outras tradições que não a ocidental, mesmo que geograficamente no ocidente do globo, isto é, nas civilizações que se estabeleceram fora do eixo EUA-Europa, as motivações para que eles produzam objetos que têm um grau estético são ainda mais nebulosas ou difíceis de generalizar.

É curioso – para não dizer etnocêntrico, aquele que julga um determinado povo ou tradição como superior às outras – ver como em vários livros de história da arte, o começo da conversa é na Grécia antiga. A linha do tempo passa por Roma, pela Idade Média na Europa, Renascimento, e aí o negócio começa a ficar cada vez mais complexo até chegar na multitude de possibilidades do Modernismo na virada do século XIX para o XX.

Às vezes outros povos (chineses, indianos, toda a cultura do islã, a Pérsia, só para ficar em poucos e famosos casos) e outras temporalidades (pré-História, por exemplo) são mencionados e ganham um capítulo cada. O mesmo que a participação da Alemanha e da Holanda no início do século XVI – isto é, totalmente desproporcional.

Há ainda casos em que livros inteiros são dedicados a essas outras tradições não-ocidentais. Ainda assim o tipo de abordagem parece ser exótico ao objeto estudado, encarando o tipo de produção desses povos como “primitiva” ou “infantil” – como se o “evoluído” ou “adulto” fosse aquele feito na Europa e nos EUA.

Mesmo a antropologia, com o seu esforço de entender as outras culturas como apenas diferentes da sua própria, teve dificuldade de estudar sem desmerecer essas outras culturas.

(“Les Demoiselles d'Avignon”, de Pablo Picasso. Fonte:
https://en.wikipedia.org/wiki/Les_Demoiselles_d%27Avignon )

Foi apenas com o Modernismo, e seus antecessores diretos, em que o alargamento do que era considerado arte foi forçado, que outros povos começaram a ser vistos não como atrasados ou menores, mas apenas com temporalidades diferentes. Ajudou a isso o fator de, entre outros exemplos, Van Gogh ter em certa fase se inspirado nas pinturas japonesas, de Gauguin ter ido para o Taiti e ter mudado completamente sua produção e, principalmente, já no século XX, de Picasso ter reproduzido máscaras africanas na sua obra seminal Les demoiselles d'Avignon (1907).

A partir dessas traduções de outras tradições para a “linguagem” ocidental, as trajetórias dos outros povos começaram a ser estudadas como particulares, independentes do ramo ocidental da História. O problema, porém, da definição da arte continuava em aberto. Aliás, como continua até hoje.

quinta-feira, 6 de maio de 2021

“Ulisses”, capítulo 1, trecho

 (...) Somos um povo generoso mas devemos também ser justos. — Tenho medo dessas grandes palavras — disse Stephen — que nos fazem tão infelizes.

(...)

— Os caminhos do Criador não são os nossos — disse o senhor Deasy. — Toda a História se move em direção a um grande alvo, a manifestação de Deus. Stephen ejectou o polegar em direção da janela, dizendo:

— Deus é isso. Hurra! Eia! Hurrhurra! — O quê? — perguntou o senhor Deasy. — Um grito na rua — respondeu Stephen, dando de ombros.


(Tradução Antônio Houaiss)

sexta-feira, 12 de março de 2021

'Enfermaria no. 6', excerto

 - Diógenes era parvo - rosnou Ivan Dmitrich, mal humorado. - Porque me fala de Diógenes e da compreensão humana? - explodiu subitamente, pondo-se de pé. - Eu amo a vida, amo-a apaixonadamente! Sofro de mania da perseguição, um medo permanente que me tortura, mas há momentos em que me domina a sede de viver, e então receio enlouquecer. Tenho uma ânsia de viver espantosa, espantosa!

Enfermaria no. 6, de Tchekhov.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

Variações de sarrafos (ficção)

Batemos tambores, eles panela
Rincón Sapiência

 

Tema

As canelas esbranquiçadas combinam com a roupa, mas contrastam com o corpo retinto. Ele é mais forte que eu, por isso passo cuidadosamente por trás, sem que me note. Pego rapidamente o sarrafo no chão e dou bem na nuca, igual meu pai me ensinou. Ele nem percebe de onde vem, cai só para levantar mais poeira. Em seguida, grito para o seu Severino: Leva para o hospital e resolve tudo. Sem perder mais tempo, vou para o carro e saio fora.

1ª variação

Minha garganta trava e começo a chorar assim que saio com o carro. Meu pai não pode desconfiar disso. Eu tenho que saber me impor.

Rodo de carro até a gasolina quase acabar. Fico umas noites sem dormir direito. Ele podia ter morrido! Tentando ser discreto, pergunto ao seu Severino: e o Josenildo lá? Ele me responde: tá na mesma, patrão.

Chego a ir ao hospital, mas não subo. Sorte que a madeira quebrou. Parece que ele ficou capengando, mas depois vai melhorar, tenho certeza. É forte pra burro, o bicho.

Na obra, ele ficava me olhando de um jeito. O corpo com suor peguento, sempre sem camisa. Achava meio estranho ficar sempre assim, sem camisa. Os outros não faziam aquilo. Eram peões, mas eram limpos. Josenildo, não. Eu só queria parar com aquilo, com aquele jeito d’ele me olhar. Eu não sou disso. Eu não sou disso! Não pode! Com quem ele pensa que tá lidando? Eu precisava fazer alguma coisa para mostrar quem é que manda, para saber me impor. Meu pai repetia: você que é o patrão, o resto é peão. Não podia deixar passar em branco.

Fiquei dias planejando tudo em detalhes: o que eu faria, por onde passaria, o que diria. Imaginei como iria andar, o tipo de olhar, o tom da minha voz. Eu que mando nessa porra!

Na sexta, houve a conjunção de fatores favoráveis. Cheguei até a sorrir. No momento em que ele deu mole, parti para cima.

 

2ª variação

Nunca tinha feito isso. Nada disso. Eu não queria, mas me deu uma coisa que eu não soube controlar. Josenildo sempre foi meio bicho do mato. Quando eu ia para o vestiário, ele se escondia. Eu ia conversar com todo mundo, pô. Pegava com frequência Nildo ainda sem camisa. Corpo de um brilho apagado do pó da obra, suor colado, peguento, cara de cansaço, se arrumando pra ir embora. Os músculos empurrando a pele, como se quisessem se expandir para fora do corpo. O abdômen trincado. Perguntei o que ele fazia para ficar assim. Assim como? Assim, sarado. Ele respondeu que bastava carregar dois sacos de cimento na cabeça, todo dia. Rimos, ou pelo menos eu ri. Falei para ele que eu iria começar a malhar assim também. Foi a vez d’ele rir.

Ele não era envergonhado, mas comigo, não sei. Um dia ele pediu para eu parar, e eu perguntei parar o quê? – eu não tinha feito nada. Ele falou que estava com medo de perder o emprego. Tinha a mãe para ajudar. Eu disse que nunca iria mandar ele embora.

Começou a ficar sempre junto dos outros. Eu ficava olhando de longe, não tinha nada a ver, estava só olhando. Olhar não tira pedaço. Ele evitava ir ao banheiro, sei lá por quê. Devia achar que alguém iria agarrar ele. É cada uma...

Perdi a cabeça quando o seu Severino veio falar comigo:

Patrão, o pessoal tá comentando.
Comentando o que, Severino?
Você e o Josenildo...
Como assim, Severino?
Dizendo que você tá cheio de intimidade com ele...
Severino, me respeita, me respeita que eu sou teu patrão e posso te mandar embora agora!
Que isso, patrão, que isso. Eu nunca acreditei nessa fofocaiada. Conheço o senhor desde pequenininho, quando seu pai te trazia pras obras. Eu trabalho pro seu pai há mais de 20 anos, nunca ia desconfiar de nada...

Nessa hora eu olhei para fora e Josenildo tava mijando atrás da brita. Não pensei duas vezes. Tinha que acabar com essa história. Onde já se viu?

 

3ª variação

Quem esse crioulo pensa que é? Bem que meu pai falou: nunca confia em preto. Se meu pai não fosse amigo do juiz, eu tava ferrado. Imagina, ser preso por conta de um crioulo desse? E ele ainda viveu sem sequela nenhuma, parece. Nunca mais vi na minha vida. Deve estar morto. Não duvido nada ter virado bandido. Já não era flor que se cheira. Ou tá cheio de filho, fodido. Tem uma coisa que pobre gosta é de ter filho. Por mim, esterilizava tudo. Sem nem pedir. Nascia, já cortava tudo fora. Ia acabar com a violência rapidinho.

Esse aí chegava sempre bêbado na obra. Não queria nada com a hora do Brasil. Eu tentei ajudar. Severino, aquele cabeça-chata, veio pedir por ele da última vez: ele não vai mais faltar, tem que ajudar mais gente. O pai sumiu, a mãe é velha. Eu pensei, mas não falei: a mesma história de sempre... Sou bom, mas sou ainda mais é justo. Se eu não mostro quem manda, to ferrado. Ninguém ia me obedecer na obra. Aí eu lembrava do que meu pai dizia: tem que deixar claro para todo mundo que você que é o patrão e o resto é peão. Eu já tava escutando uns risinhos pela obra. Meu pai também dizia: se não dá para ganhar na igualdade, vai na covardia.

Para piorar, começou a usar branco na sexta. Só faltava essa. Esse crioulo ainda ia costurar meu nome na boca do sapo. Um dia, encontrei uma garrafa de cana na frente da obra. Não sabia se era despacho ou se ele que tinha entornado.

No dia, estavam fazendo um pagode na esquina, no meio da rua, comprando cerveja no cara que vendia churrasquinho. Ele veio na obra só para mijar. Foi para trás das britas, tirou a rola, dois palmos de jeba, e ficou rodando na minha direção. Aí o sangue me subiu.

 

4ª variação

Quando comecei a trabalhar na obra, não sabia como fazer para eles me respeitarem como eu sou, não por ter o pai que tenho. Não queria usar do argumento de autoridade, sempre achei que esse era o último degrau. Se tivesse que ser na base da violência, eu já tinha perdido o argumento. Nunca nem falava alto. Para mim, não precisava. Agora, também não dava qualquer abertura, nenhuma possibilidade. Os outros todos me respeitavam. E não é porque meu pai era quem era. Eu tratava todo mundo de igual para igual, mas quando precisava chegar junto, eu sempre chegava. Funcionava com todo mundo, menos com esse Josenildo.

Ele sempre ficava me olhando como se eu fosse um pedaço de carne. Quando eu reparava, ele estava com um risinho no canto da boca. Se eu estivesse por perto, soltava uma piadinha de duplo sentido. Todas as vezes que passava por mim, fazia questão de esbarrar em mim. Podia ter um espação, não tinha necessidade, mas lá vinha ele e triscava em mim, mesmo que de leve. Uma vez, senti um troço, um vento nas costas, quando virei, vi que ele tava pertinho, como que respirando, aqui ó, a um palmo do meu cabelo.

Eu estava muito desconfiada, mas é complicado acusar alguém assim. Não dava para conversar com seu Severino, que meio que me adotou. Ele sempre poderia dizer que eu tava vendo coisas. Que Josenildo era assim mesmo. Mas comecei a ficar com medo. Se ele tentasse alguma coisa comigo? O pior é que eu não podia falar nem com meu pai. Ele me disse que se eu quisesse tomar conta de obra, tinha que ser que nem homem. O único conselho que ele me deu foi: na briga, vai na covardia. Pega desprevenido.

O sol está forte esquentando a cabeça debaixo do capacete, o suor colando meu macacão no corpo. Sempre ia com uma roupa muito larga, para não marcar nada, mas hoje não adiantou muito. Ele chega atrás da brita e vai mijar. Tem um banheiro químico – não há qualquer necessidade disso. A única explicação é que a brita fica bem em frente à minha janela. Depois que acabou fica rodando a rola, olhando na minha direção, com aquele sorrisinho repugnante que eu já conheço, embaixo de um bigodinho fino dos mais canastras. Aquilo me dá uma raiva que eu nunca tive na vida. Um horror, um nojo. Sinto minha pressão cair. Me lembro do meu pai: pega desprevenido. Vai na covardia. Eu não precisava chegar de mãos vazias. Tentei levantar uma marreta, mas não consegui. Olhei para fora e, bem lado do Josenildo, vi um sarrafo.

 

Versão deslocada da 4ª variação

Todos os dias ele vem na minha baia. Me olha sempre de cima da divisória, com um olhar como se ele fosse irresistível. Eu sou estagiária, estou com pouco tempo de empresa, ele é um executivo júnior, com a conta da Antarctica. Dá palestra na Feira Nacional de Retailers e tem 32 mil seguidores no LinkedIn. Apareceu na matéria da Negócios do mês passado como jovem negro promissor da publicidade. Um ótimo case.

Fui uma vez só com um decote maior – para nunca mais. Eu tento responder sempre quando ele puxa conversa, não quero parecer antipática, mas tenho muito medo de ser mal interpretada. Fico me dizendo que não é possível, que ele não está fazendo isso que ele parece estar fazendo. Quando eu vou pegar café ou água, é um aperto. Ele sempre brota e dá uma desculpa para pegar no meu cabelo ou se aproximar para adivinhar qual fragrância eu estou usando. Cortei o cabelo curto e parei de usar qualquer perfume! Aí, ele elogia o novo corte – e eu me sinto sem conseguir escapar, rindo nervosamente, com medo. Agora evito ir pegar café. Peço sempre para alguém – e me apelidam de preguiçosa. Eu, que sempre faço hora extra.

Rola almoço coletivo da firma e ele insiste em sentar exatamente no meu lado, com a perna colada na minha – e eu, sentando quase de lado, para evitar o contato. Um dia minha chefe me pergunta por que eu estava toda torta. Tive que inventar uma desculpa qualquer: to com uma dor na coluna incrível. Tão nova, diz o membro da outra equipe, um gordo, que também é peguento. Já ele, ele fala: quer que eu faça uma massagem? E sorri, aquele sorrisinho no canto de boca que me embrulha o estômago.

Na festa de fim de ano, eu colo na minha chefe. Onde ela vai, eu vou atrás. Sempre fui expansiva, mas me sinto profundamente acossada. Em certo momento, minha chefe pede para buscar uma taça de prosecco para nós duas, eu faço cara de que não quero – ela fala que eu tenho que deixar a vergonha de lado. Constrangida e contrariada, vou. Ele me intercepta no meio do salão e, sem que eu consiga me defender, me reboca para um canto escuro. A primeira coisa que ele faz é tentar me beijar, eu viro o rosto na hora, a segunda, é colocar a minha mão no pau dele.

Consigo me desvencilhar e volto correndo, sem a bebida. Estou com um medo gritante que deveria dar para enxergar na minha cara – minha chefe percebe e me puxa para um lado. Quando estamos razoavelmente sozinhas, desabo. Minha chefe escuta tudo e diz que nunca percebeu nada, mas que não se espanta. Ele está claramente se achando demais.

No dia seguinte, a ressaca é agravada por um entra e sai da sala de reunião. Primeiro a minha chefe chama o chefe dele. Depois de muito tempo, eu vejo o meu assediador entrar. Passa mais uma meia hora e ele sai. O meu telefone toca e eu tremo.

Estou apavorada, mas lembro do meu pai: eu tenho que tratar o mundo de igual para igual. Ninguém é melhor ou pior que eu. Engulo o choro que quase engasga na garganta, e vou para a sala. Minha chefe e o chefe dele estão um ao lado do outro, como advogados de defesa e acusação. Ela me pede para contar a história toda, e eu tento fazer com a maior precisão e concisão possível. O chefe dele, um ex-surfista que finge que o tempo não passou, me pergunta se eu nunca dei qualquer abertura, uma resposta dúbia qualquer, demonstrei qualquer simpatia a mais. Eu nego, quase ofendida, mas na verdade fico com algumas dúvidas lá no fundo. Ele se recosta no espaldar e bufa baixinho.

Ele é demitido. Sai da empresa gritando que estava sendo discriminado. Só porque sou preto, porque não me comporto como submisso, porque faço sucesso... Berra, até para quem não quisesse ouvir. E eu revisito algumas cenas para saber se eu tinha dado alguma abertura para ele. Nunca imaginei que ele seria demitido. Também me surpreende a reação dele, tão violenta. Mas me assusta mais o fato de ele ser negro. Estava sendo racista? Eu me pergunto com medo de encontrar uma resposta que confirme a minha suspeita.

 

5ª variação

Josenildo fica lá, no fundo da obra, conversando baixinho com os outros peões. Quando eu chego perto, o papo some aos poucos e as pessoas voltam a trabalhar, como se nada tivesse acontecido. Desconfiado, eu interpelo o peão: “O que vocês tanto conversam?” “É papo de preto”, ele me responde, sem querer se alongar. Arregalo os olhos – não esperava esse tipo de consciência ali. Tento dar mais corda: “Como assim, Josenildo?” “A gente tem que se organizar, doutor, nenhum branco vai cuidar da gente, não”. Fico automaticamente empolgado. Quando eu contar para o pessoal do coletivo, ninguém vai acreditar. Seu Severino chega próximo e tenta interpelar: “Deixa de frescura, Josenildo, vocês têm que trabalhar, isso sim, aproveitar a oportunidade que o patrão tá dando”. “Por isso que os pretos são melhores que os brancos de todas as cores”, Josenildo responde de primeira, olhos fixos e aquele bigodinho que parece saído da década de 1940. “Também acho” – me meto onde não era chamado, empolgado.

“Não acho certo”, vem depois me dizer Severino, “todo mundo aqui é igual. Não tem esse negócio de branco ou preto, todo mundo é trabalhador, todo mundo é peão”. Ele me olha, um pouco constrangido, e completa: “Menos o patrão”. Dá uma pausa, e continua: “Quem não quiser trabalhar, que deixe o posto para quem quer, tá cheio de gente lá fora querendo um espaço”. “Deixa eles, seu Severino”, contesto, “deixa eles”.

Aos poucos, tento me aproximar do Josenildo. Ele é uma figura com clara ascendência sobre os demais peões. Há dois mais velhos, um alto, silencioso e muito bom na elétrica, outro com a cabeça branquinha, cara de sábio e troncudo, que ainda consegue carregar dois sacos de 50. Josenildo conversa com eles, depois fala com os outros. “Bora trabalhar aí”, grita de longe seu Severino. Josenildo olha para Severino e em seguida para mim, como ignorando o capataz, e eu sorrio de volta, tentando mostrar solidariedade, como nós éramos iguais. Quero de alguma forma ajudá-lo, estar próximo dele, aprender com ele. Não sei. Fico empolgado só por saber que ele estaria ali, na obra, e eu teria a chance de encontrá-lo.

“Não tá certo, isso não tá certo, patrãozinho”, me fala, um dia, na minha salinha, seu Severino. “O senhor tem um coração muito bom, não pode dar espaço para esses aí. Eles vão acabar tomando conta de tudo”. Eu tenho que me impor, penso na hora, não posso perder a autoridade sobre os peões: “Muito obrigado, Severino, mas ainda não preciso dos seus conselhos”. Quando ele sai pisando pesado, reflito que talvez eu tenha sido duro demais. Mas não tem como voltar atrás. Me desculpar certamente é bem pior.

Quando meu pai vai visitar a obra, flagro ele conversando com o Severino na sala. “Que bom que você chegou”, ele me diz, apontando a cadeira, enquanto Severino sai. Assim que ficamos sozinhos, não perde tempo: “Você não pode tratar os pretos assim”, diz. “Mas, pai”, tento, “você tá parecendo um...”, e ele espalma a mão à frente, me congelando. Em seguida, continua: “Seu avô construiu essa empresa sendo justo com quem quisesse trabalhar. Severino te viu criança, está aqui há 20 anos, carregou muito saco de cimento na cabeça, mas agora tá trabalhando no ar-condicionado. Não pode dar liberdade demais para os peões, meu filho, se não eles não vão te respeitar”.

Aquilo me deixa com um nó nas entranhas. Meu pai era um coronel de literatura clichê sobre o século XIX. Como ele pode ser tão preconceituoso? As pessoas não precisam ser tratadas como máquinas que reproduzem movimentos e obedecem mudamente a ordens: elas têm suas próprias vontades. Elas são livres. Josenildo poderia organizar o grupo para uma relação melhor entre os trabalhadores e a empresa. Ele deve ter mais ou menos a minha idade e já tem tanta certeza, força, independência...

“E ainda tem o problema do prazo” – continua meu pai, eu arregalo os olhos. “Quanto mais a casa demorar a ser construída, mais diárias temos que pagar, e menos dividendos sobra para a gente. Já estamos, agora, atrasados. Com essa morosidade, vamos acabar tendo que trabalhar para pagar os custos dessas liberdades todas”.

Meu pai vai embora, não sem antes dar uma volta pela obra e falar com Josenildo, que o escuta quieto, com o semblante duro, mas sem desviar o olhar. Quando ele passa por mim, perguntei o que ele conversou com Josenildo e ele diz que não precisa me dar satisfação. Vou a Josenildo e o questiono. “Nada”, ele me responde, “só perguntou se estava satisfeito com o trabalho”. Não sei se ele está falando a verdade. Fico vendido, como um príncipe de uma monarquia abandonada.

Pouco mais de uma semana depois, numa quinta-feira, o peão de cabeça branca se envolve num acidente: deixa um balde cheio de brita cair de uma altura de uns cinco metros. Não pega em ninguém, mas o balde de plástico se espatifa e as pedras se espalham por até quase minha sala. Severino chega perto para dar uma dura. Josenildo também se aproxima e começa a defender o mais velho. Severino engrossa o tom, Josenildo responde à altura. “Vou chamar o patrão!”, grita Severino tão alto a ponto de eu, que estou do outro lado da obra correndo para lá, escutar. “Esse aí não manda em ninguém”, diz alguém. “Estou falando do pai, não do filho”, complementa Severino, saindo, na hora que eu chego. “O que foi?” Tento perguntar, Severino passa por mim: “Nada, patrãozinho, nada, não precisa se preocupar”. Eu pergunto o que aconteceu e ninguém me responde nada. Estou transparente. As pessoas não me enxergam. Eu olho para o Josenildo na busca por auxílio: “Aconteceu que os brancos sempre se ajudam para ferrar os pretos”. Eu fico rodando de um lado para o outro, perdido. Tento aumentar o tom, mas fico com medo de chorar ali, na frente de todo mundo. Aos poucos as pessoas começam a me explicar. Quando acabam, eu volto para a sala à espera do meu pai.

Ele não demora – e diz de cara que eu não preciso me meter, ele lidaria com o problema. Chega perto do Josenildo e eu vejo o peão sair de perto, pegar suas coisas e ir embora. Tento ainda interpelar o meu pai, mas ele espalma a mão e eu não sei o que fazer então.

O clima da obra fica nublado. Ninguém quer trabalhar depois da demissão de Josenildo. Severino insiste, grita, diz que quem não trabalhar não vai ganhar nada. Eu fico na sala, engolindo o choro que me corrompe para sair, cozinhando o meu estômago no próprio ácido.

No dia seguinte, chego cedo e encontro uma garrafa de cachaça pela metade junto a velas acesas e um prato de barro cheio de farofa. Entro na obra arrepiado. Todos os peões estão lá, mas parados, vestidos à paisana. Severino vem falar comigo: “Já falei com o seu pai. Eles não querem trabalhar sem o Josenildo”. Chego perto deles: “Vocês estão malucos!?” Eles nunca tinham me visto gritar assim. Estou descontrolado, desesperado. “Vão trabalhar!” Empurro cada um deles, um por um, mas eles me ignoram, como se eu fosse feito de vazios. “Vai trabalhar, vai trabalhar!”. Saio de perto e vou para sala, rugir como um leão impotente.

Meu pai entra sem bater à porta: “Vou resolver tudo”, ele me fala, e eu tenho vontade de dar um murro na cara dele. Nessa hora, vejo Josenildo entrar, todo vestido de branco, bermuda e camisa nova. Parece meio cambaleante. Deve estar bêbado. Mexe no chão, sobe uma poeira, como se trabalhando ou fazendo macumba, ou sei lá.

Se eu não tenho mais o que fazer ali, decido pegar o carro e ir embora. Bato a porta com violência. Dou uma última olhada em Josenildo e mudo de ideia. As canelas esbranquiçadas combinam com a roupa, mas contrastam com o corpo retinto. Ele é mais forte que eu, por isso passo cuidadosamente por trás, sem que me note. Pego rapidamente o sarrafo no chão e dou bem na nuca, igual meu pai me ensinou. Ele nem percebe de onde vem, cai só para levantar mais poeira. Em seguida, grito para o seu Severino: Leva para o hospital e resolve tudo. Sem perder mais tempo, vou para o carro e saio fora.

 

Variação histórica do tema

As canelas sujas com barro branco chamavam atenção naquele corpo preto e forte. Passei do lado dele com cuidado, para ele não me notar. Abaixei rapidamente para pegar no chão um pedaço de madeira grande e fui dar na nuca, por trás, igual meu pai tinha me ensinado. Ele percebeu de onde veio: gingou para o lado, o pau passou no vazio, e no balanço deu um rabo de arraia na minha cara. Caí no chão úmido. Ele aproveitou a deixa e saiu correndo mato adentro. O capitão ainda tentou ir atrás, mas logo outro preto deu uma rasteira, e ele também se estabacou. Os escravos todos aproveitaram para fugir, enquanto meu pai chegava de cavalo, dando tiro no vazio.

 

sábado, 23 de janeiro de 2021

A prisão de um amigo

Eu nunca fui um jornalista-jornalista, desses que têm curiosidade instantânea com os assuntos, portam no bolso uma coleção de duas ou três perguntas para qualquer entrevistado, sabem num lance de olhos onde está a notícia. Sou lento demais, pacato demais, introvertido demais. Mas já andei com jornalistas que possuíam todas essas qualidades e mais algumas mais. Um deles é o Andrei, Andrei Aliaksandrau, seu nome todo, mas nunca consegui lembrar desse sobrenome dele, assim, facilmente. Pudera.

Ele é da Belarus, e quando eu lhe contei o que "bela" quer dizer em português, ele ficou muito feliz: é um sujeito absolutamente apaixonado pelo próprio país. Ou pelo menos por uma noção do próprio país que não condiz com a realidade atual.

Desde o fim da União Soviética, a Belarus [antigamente era chamada de Bielorrússia] tem o mesmo governante: Alexander Lukashenko. O sujeito é reeleito, indefinidamente, em pleitos que dão inveja ao país vizinho, a Rússia. Na verdade, não dão inveja. Segundo consta, Lukashenko é uma marionete do governo Putin e de toda a máfia que ele representa. Os interesses russos são a prioridade para o presidente bielorrusso. 

Nesses 30 anos que se passaram desde a queda da URSS, os fracos e incipientes sinais de democracia da Belarus foram se desgastando a ponto de, na última eleição, já não parecer que precisavam disfarçar mais nada. Os dissidentes do regime de Lukashenko foram presos a mancheia. Andrei rodou dia 12 de janeiro, junto com a companheira dele, Irina Zlobina.

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Eu o conheci em Londres, quando minha ex-mulher estava fazendo o mestrado dela. Os dois eram da mesma turma. Ele era o mais velho do grupo, mais velho, inclusive, que a gente, que já destoava de todos os demais dali, todos mal completados os 20 anos, como é natural nas turmas dos mestrados na Europa. Seu jeito de organizar as coisas, sua cabeça de liderança, e até mesmo o fato de ser o mais sênior da galera, lhe rendeu um apelido curioso: mr. president. Bem colocado.

Nunca vi ninguém beber tanto quanto ele. Numa oportunidade tentamos fazer um pub crawling por 30 pubs - e ele foi o único a beber um pint em cada. Ao fim estava wasted, como dizem por lá.

Era também fascinado por futebol. E, por uma dessas coincidências do mundo, houve um Brasil x Belarus nas Olimpíadas de Londres, em 2012, em Manchester. Fomos junto com o grupo dele, cheio de bielorrussos. Eu notei, de cara, um detalhe, que não era pequeno. Ele, e todos os amigos, estavam com uma bandeira branca com uma cruz vermelha, diferente daquela que eu considerava como a "verdadeira", predominantemente verde e vermelha. 

Ele me disse que a bandeira rubro-esverdeada era mais uma das imposições de Lukashenko; por isso eles usavam a anterior, que tinha sido apagada na tomada de poder pelo ditador. Era, aliás, assim que ele chamava Lukashenko. Insistia sempre: era a última ditadura da Europa. Os fatos, infelizmente, sustentam a afirmação dele.

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Quando voltei para o Brasil, fim de 2012, ele me perguntou se eu não queria cobrir alguns temas para a ONG em que ele trabalhava, a Index for censorship. Claro que eu aceitei: fiz dois ou três textos para lá, inclusive um sobre junho de 2013, se eu não me engano [já faz tanto tempo...]. Andrei tinha a liberdade de expressão como um dos seus temas fundamentais. Havia crescido ainda dentro de uma ditadura [os pais tinham trabalhado para a KGB como farmacêuticos, e ainda guardavam a carteirinha para comprovar] e sabia o quanto era difícil ter voz própria em lugares onde a democracia não é respeitada. Não adiantou muito.

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Um amigo dele mandou mensagem ontem avisando da prisão do Andrei e fiquei pensando seriamente nisso. Me pegou muito errado, num momento que quase tudo entra atravessado. Na época em que convivemos, o Brasil era o Cristo Redentor subindo aos céus da revista Economist. Éramos a próxima sede das Olimpíadas. Estávamos confiantes e tínhamos futuro. Brasil e Belarus pareciam tão distantes e diferentes...

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O amigo contou que quando a Rússia invadiu a Crimeia, Andrei largou o emprego em Londres e foi fazer um documentário sobre a guerra, in loco. Depois, recebeu uma proposta de assumir a única agência de notícias bielorrussa independente, após o fundador ter desaparecido em circunstâncias misteriosas. Era onde ele estava trabalhando atualmente.

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Há muito tempo nós não nos falávamos. Coisas da vida. Mas sempre que apareciam imagens da Belarus, geralmente manifestantes sendo presos, agredidos, encurralados, em paisagens frias, com neve no chão, prédios quadrados e cinzas, horizontes vazios, gritos de desespero, eu olhava para ver se não era Andrei sendo levado. Era um país tão distante que se transformou em próximo por conta do Andrei, por conta das circunstâncias da vida.

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Apesar de todas as tentativas do atual ocupante da presidência brasileira, ainda não somos uma ditadura, no sentido mais formal do termo. Perdemos muitas garantias democráticas, percebemos as nossas instituições republicanas derretendo dia a dia, e vemos muita gente imaginando que é melhor uma cleptocracia, desde que eles possam continuar a lucrar, que viver em um governo que tente, pela primeira vez na história, pensar em governar pensando no outro polo da sociedade. 

Muitas vezes eu não entendia todo o ódio que Andrei sentia pelo ditador que manda na Belarus. Achava que ele falava demais sobre política, que havia outras coisas para prestar atenção no mundo. Não percebia como importante a sua preocupação com a democracia - talvez por me enganar que vivia em uma plena. Agora, infelizmente, eu entendo. 

Qualquer escorregão nosso, na nossa atual situação, e vamos ter outros amigos presos. Agora, com o Cristo Redentor de fundo.


Andrei, vestido com as cores da bandeira que ele defende, e eu, 
antes do jogo em 2012