quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

Variações de sarrafos (ficção)

Batemos tambores, eles panela
Rincón Sapiência

 

Tema

As canelas esbranquiçadas combinam com a roupa, mas contrastam com o corpo retinto. Ele é mais forte que eu, por isso passo cuidadosamente por trás, sem que me note. Pego rapidamente o sarrafo no chão e dou bem na nuca, igual meu pai me ensinou. Ele nem percebe de onde vem, cai só para levantar mais poeira. Em seguida, grito para o seu Severino: Leva para o hospital e resolve tudo. Sem perder mais tempo, vou para o carro e saio fora.

1ª variação

Minha garganta trava e começo a chorar assim que saio com o carro. Meu pai não pode desconfiar disso. Eu tenho que saber me impor.

Rodo de carro até a gasolina quase acabar. Fico umas noites sem dormir direito. Ele podia ter morrido! Tentando ser discreto, pergunto ao seu Severino: e o Josenildo lá? Ele me responde: tá na mesma, patrão.

Chego a ir ao hospital, mas não subo. Sorte que a madeira quebrou. Parece que ele ficou capengando, mas depois vai melhorar, tenho certeza. É forte pra burro, o bicho.

Na obra, ele ficava me olhando de um jeito. O corpo com suor peguento, sempre sem camisa. Achava meio estranho ficar sempre assim, sem camisa. Os outros não faziam aquilo. Eram peões, mas eram limpos. Josenildo, não. Eu só queria parar com aquilo, com aquele jeito d’ele me olhar. Eu não sou disso. Eu não sou disso! Não pode! Com quem ele pensa que tá lidando? Eu precisava fazer alguma coisa para mostrar quem é que manda, para saber me impor. Meu pai repetia: você que é o patrão, o resto é peão. Não podia deixar passar em branco.

Fiquei dias planejando tudo em detalhes: o que eu faria, por onde passaria, o que diria. Imaginei como iria andar, o tipo de olhar, o tom da minha voz. Eu que mando nessa porra!

Na sexta, houve a conjunção de fatores favoráveis. Cheguei até a sorrir. No momento em que ele deu mole, parti para cima.

 

2ª variação

Nunca tinha feito isso. Nada disso. Eu não queria, mas me deu uma coisa que eu não soube controlar. Josenildo sempre foi meio bicho do mato. Quando eu ia para o vestiário, ele se escondia. Eu ia conversar com todo mundo, pô. Pegava com frequência Nildo ainda sem camisa. Corpo de um brilho apagado do pó da obra, suor colado, peguento, cara de cansaço, se arrumando pra ir embora. Os músculos empurrando a pele, como se quisessem se expandir para fora do corpo. O abdômen trincado. Perguntei o que ele fazia para ficar assim. Assim como? Assim, sarado. Ele respondeu que bastava carregar dois sacos de cimento na cabeça, todo dia. Rimos, ou pelo menos eu ri. Falei para ele que eu iria começar a malhar assim também. Foi a vez d’ele rir.

Ele não era envergonhado, mas comigo, não sei. Um dia ele pediu para eu parar, e eu perguntei parar o quê? – eu não tinha feito nada. Ele falou que estava com medo de perder o emprego. Tinha a mãe para ajudar. Eu disse que nunca iria mandar ele embora.

Começou a ficar sempre junto dos outros. Eu ficava olhando de longe, não tinha nada a ver, estava só olhando. Olhar não tira pedaço. Ele evitava ir ao banheiro, sei lá por quê. Devia achar que alguém iria agarrar ele. É cada uma...

Perdi a cabeça quando o seu Severino veio falar comigo:

Patrão, o pessoal tá comentando.
Comentando o que, Severino?
Você e o Josenildo...
Como assim, Severino?
Dizendo que você tá cheio de intimidade com ele...
Severino, me respeita, me respeita que eu sou teu patrão e posso te mandar embora agora!
Que isso, patrão, que isso. Eu nunca acreditei nessa fofocaiada. Conheço o senhor desde pequenininho, quando seu pai te trazia pras obras. Eu trabalho pro seu pai há mais de 20 anos, nunca ia desconfiar de nada...

Nessa hora eu olhei para fora e Josenildo tava mijando atrás da brita. Não pensei duas vezes. Tinha que acabar com essa história. Onde já se viu?

 

3ª variação

Quem esse crioulo pensa que é? Bem que meu pai falou: nunca confia em preto. Se meu pai não fosse amigo do juiz, eu tava ferrado. Imagina, ser preso por conta de um crioulo desse? E ele ainda viveu sem sequela nenhuma, parece. Nunca mais vi na minha vida. Deve estar morto. Não duvido nada ter virado bandido. Já não era flor que se cheira. Ou tá cheio de filho, fodido. Tem uma coisa que pobre gosta é de ter filho. Por mim, esterilizava tudo. Sem nem pedir. Nascia, já cortava tudo fora. Ia acabar com a violência rapidinho.

Esse aí chegava sempre bêbado na obra. Não queria nada com a hora do Brasil. Eu tentei ajudar. Severino, aquele cabeça-chata, veio pedir por ele da última vez: ele não vai mais faltar, tem que ajudar mais gente. O pai sumiu, a mãe é velha. Eu pensei, mas não falei: a mesma história de sempre... Sou bom, mas sou ainda mais é justo. Se eu não mostro quem manda, to ferrado. Ninguém ia me obedecer na obra. Aí eu lembrava do que meu pai dizia: tem que deixar claro para todo mundo que você que é o patrão e o resto é peão. Eu já tava escutando uns risinhos pela obra. Meu pai também dizia: se não dá para ganhar na igualdade, vai na covardia.

Para piorar, começou a usar branco na sexta. Só faltava essa. Esse crioulo ainda ia costurar meu nome na boca do sapo. Um dia, encontrei uma garrafa de cana na frente da obra. Não sabia se era despacho ou se ele que tinha entornado.

No dia, estavam fazendo um pagode na esquina, no meio da rua, comprando cerveja no cara que vendia churrasquinho. Ele veio na obra só para mijar. Foi para trás das britas, tirou a rola, dois palmos de jeba, e ficou rodando na minha direção. Aí o sangue me subiu.

 

4ª variação

Quando comecei a trabalhar na obra, não sabia como fazer para eles me respeitarem como eu sou, não por ter o pai que tenho. Não queria usar do argumento de autoridade, sempre achei que esse era o último degrau. Se tivesse que ser na base da violência, eu já tinha perdido o argumento. Nunca nem falava alto. Para mim, não precisava. Agora, também não dava qualquer abertura, nenhuma possibilidade. Os outros todos me respeitavam. E não é porque meu pai era quem era. Eu tratava todo mundo de igual para igual, mas quando precisava chegar junto, eu sempre chegava. Funcionava com todo mundo, menos com esse Josenildo.

Ele sempre ficava me olhando como se eu fosse um pedaço de carne. Quando eu reparava, ele estava com um risinho no canto da boca. Se eu estivesse por perto, soltava uma piadinha de duplo sentido. Todas as vezes que passava por mim, fazia questão de esbarrar em mim. Podia ter um espação, não tinha necessidade, mas lá vinha ele e triscava em mim, mesmo que de leve. Uma vez, senti um troço, um vento nas costas, quando virei, vi que ele tava pertinho, como que respirando, aqui ó, a um palmo do meu cabelo.

Eu estava muito desconfiada, mas é complicado acusar alguém assim. Não dava para conversar com seu Severino, que meio que me adotou. Ele sempre poderia dizer que eu tava vendo coisas. Que Josenildo era assim mesmo. Mas comecei a ficar com medo. Se ele tentasse alguma coisa comigo? O pior é que eu não podia falar nem com meu pai. Ele me disse que se eu quisesse tomar conta de obra, tinha que ser que nem homem. O único conselho que ele me deu foi: na briga, vai na covardia. Pega desprevenido.

O sol está forte esquentando a cabeça debaixo do capacete, o suor colando meu macacão no corpo. Sempre ia com uma roupa muito larga, para não marcar nada, mas hoje não adiantou muito. Ele chega atrás da brita e vai mijar. Tem um banheiro químico – não há qualquer necessidade disso. A única explicação é que a brita fica bem em frente à minha janela. Depois que acabou fica rodando a rola, olhando na minha direção, com aquele sorrisinho repugnante que eu já conheço, embaixo de um bigodinho fino dos mais canastras. Aquilo me dá uma raiva que eu nunca tive na vida. Um horror, um nojo. Sinto minha pressão cair. Me lembro do meu pai: pega desprevenido. Vai na covardia. Eu não precisava chegar de mãos vazias. Tentei levantar uma marreta, mas não consegui. Olhei para fora e, bem lado do Josenildo, vi um sarrafo.

 

Versão deslocada da 4ª variação

Todos os dias ele vem na minha baia. Me olha sempre de cima da divisória, com um olhar como se ele fosse irresistível. Eu sou estagiária, estou com pouco tempo de empresa, ele é um executivo júnior, com a conta da Antarctica. Dá palestra na Feira Nacional de Retailers e tem 32 mil seguidores no LinkedIn. Apareceu na matéria da Negócios do mês passado como jovem negro promissor da publicidade. Um ótimo case.

Fui uma vez só com um decote maior – para nunca mais. Eu tento responder sempre quando ele puxa conversa, não quero parecer antipática, mas tenho muito medo de ser mal interpretada. Fico me dizendo que não é possível, que ele não está fazendo isso que ele parece estar fazendo. Quando eu vou pegar café ou água, é um aperto. Ele sempre brota e dá uma desculpa para pegar no meu cabelo ou se aproximar para adivinhar qual fragrância eu estou usando. Cortei o cabelo curto e parei de usar qualquer perfume! Aí, ele elogia o novo corte – e eu me sinto sem conseguir escapar, rindo nervosamente, com medo. Agora evito ir pegar café. Peço sempre para alguém – e me apelidam de preguiçosa. Eu, que sempre faço hora extra.

Rola almoço coletivo da firma e ele insiste em sentar exatamente no meu lado, com a perna colada na minha – e eu, sentando quase de lado, para evitar o contato. Um dia minha chefe me pergunta por que eu estava toda torta. Tive que inventar uma desculpa qualquer: to com uma dor na coluna incrível. Tão nova, diz o membro da outra equipe, um gordo, que também é peguento. Já ele, ele fala: quer que eu faça uma massagem? E sorri, aquele sorrisinho no canto de boca que me embrulha o estômago.

Na festa de fim de ano, eu colo na minha chefe. Onde ela vai, eu vou atrás. Sempre fui expansiva, mas me sinto profundamente acossada. Em certo momento, minha chefe pede para buscar uma taça de prosecco para nós duas, eu faço cara de que não quero – ela fala que eu tenho que deixar a vergonha de lado. Constrangida e contrariada, vou. Ele me intercepta no meio do salão e, sem que eu consiga me defender, me reboca para um canto escuro. A primeira coisa que ele faz é tentar me beijar, eu viro o rosto na hora, a segunda, é colocar a minha mão no pau dele.

Consigo me desvencilhar e volto correndo, sem a bebida. Estou com um medo gritante que deveria dar para enxergar na minha cara – minha chefe percebe e me puxa para um lado. Quando estamos razoavelmente sozinhas, desabo. Minha chefe escuta tudo e diz que nunca percebeu nada, mas que não se espanta. Ele está claramente se achando demais.

No dia seguinte, a ressaca é agravada por um entra e sai da sala de reunião. Primeiro a minha chefe chama o chefe dele. Depois de muito tempo, eu vejo o meu assediador entrar. Passa mais uma meia hora e ele sai. O meu telefone toca e eu tremo.

Estou apavorada, mas lembro do meu pai: eu tenho que tratar o mundo de igual para igual. Ninguém é melhor ou pior que eu. Engulo o choro que quase engasga na garganta, e vou para a sala. Minha chefe e o chefe dele estão um ao lado do outro, como advogados de defesa e acusação. Ela me pede para contar a história toda, e eu tento fazer com a maior precisão e concisão possível. O chefe dele, um ex-surfista que finge que o tempo não passou, me pergunta se eu nunca dei qualquer abertura, uma resposta dúbia qualquer, demonstrei qualquer simpatia a mais. Eu nego, quase ofendida, mas na verdade fico com algumas dúvidas lá no fundo. Ele se recosta no espaldar e bufa baixinho.

Ele é demitido. Sai da empresa gritando que estava sendo discriminado. Só porque sou preto, porque não me comporto como submisso, porque faço sucesso... Berra, até para quem não quisesse ouvir. E eu revisito algumas cenas para saber se eu tinha dado alguma abertura para ele. Nunca imaginei que ele seria demitido. Também me surpreende a reação dele, tão violenta. Mas me assusta mais o fato de ele ser negro. Estava sendo racista? Eu me pergunto com medo de encontrar uma resposta que confirme a minha suspeita.

 

5ª variação

Josenildo fica lá, no fundo da obra, conversando baixinho com os outros peões. Quando eu chego perto, o papo some aos poucos e as pessoas voltam a trabalhar, como se nada tivesse acontecido. Desconfiado, eu interpelo o peão: “O que vocês tanto conversam?” “É papo de preto”, ele me responde, sem querer se alongar. Arregalo os olhos – não esperava esse tipo de consciência ali. Tento dar mais corda: “Como assim, Josenildo?” “A gente tem que se organizar, doutor, nenhum branco vai cuidar da gente, não”. Fico automaticamente empolgado. Quando eu contar para o pessoal do coletivo, ninguém vai acreditar. Seu Severino chega próximo e tenta interpelar: “Deixa de frescura, Josenildo, vocês têm que trabalhar, isso sim, aproveitar a oportunidade que o patrão tá dando”. “Por isso que os pretos são melhores que os brancos de todas as cores”, Josenildo responde de primeira, olhos fixos e aquele bigodinho que parece saído da década de 1940. “Também acho” – me meto onde não era chamado, empolgado.

“Não acho certo”, vem depois me dizer Severino, “todo mundo aqui é igual. Não tem esse negócio de branco ou preto, todo mundo é trabalhador, todo mundo é peão”. Ele me olha, um pouco constrangido, e completa: “Menos o patrão”. Dá uma pausa, e continua: “Quem não quiser trabalhar, que deixe o posto para quem quer, tá cheio de gente lá fora querendo um espaço”. “Deixa eles, seu Severino”, contesto, “deixa eles”.

Aos poucos, tento me aproximar do Josenildo. Ele é uma figura com clara ascendência sobre os demais peões. Há dois mais velhos, um alto, silencioso e muito bom na elétrica, outro com a cabeça branquinha, cara de sábio e troncudo, que ainda consegue carregar dois sacos de 50. Josenildo conversa com eles, depois fala com os outros. “Bora trabalhar aí”, grita de longe seu Severino. Josenildo olha para Severino e em seguida para mim, como ignorando o capataz, e eu sorrio de volta, tentando mostrar solidariedade, como nós éramos iguais. Quero de alguma forma ajudá-lo, estar próximo dele, aprender com ele. Não sei. Fico empolgado só por saber que ele estaria ali, na obra, e eu teria a chance de encontrá-lo.

“Não tá certo, isso não tá certo, patrãozinho”, me fala, um dia, na minha salinha, seu Severino. “O senhor tem um coração muito bom, não pode dar espaço para esses aí. Eles vão acabar tomando conta de tudo”. Eu tenho que me impor, penso na hora, não posso perder a autoridade sobre os peões: “Muito obrigado, Severino, mas ainda não preciso dos seus conselhos”. Quando ele sai pisando pesado, reflito que talvez eu tenha sido duro demais. Mas não tem como voltar atrás. Me desculpar certamente é bem pior.

Quando meu pai vai visitar a obra, flagro ele conversando com o Severino na sala. “Que bom que você chegou”, ele me diz, apontando a cadeira, enquanto Severino sai. Assim que ficamos sozinhos, não perde tempo: “Você não pode tratar os pretos assim”, diz. “Mas, pai”, tento, “você tá parecendo um...”, e ele espalma a mão à frente, me congelando. Em seguida, continua: “Seu avô construiu essa empresa sendo justo com quem quisesse trabalhar. Severino te viu criança, está aqui há 20 anos, carregou muito saco de cimento na cabeça, mas agora tá trabalhando no ar-condicionado. Não pode dar liberdade demais para os peões, meu filho, se não eles não vão te respeitar”.

Aquilo me deixa com um nó nas entranhas. Meu pai era um coronel de literatura clichê sobre o século XIX. Como ele pode ser tão preconceituoso? As pessoas não precisam ser tratadas como máquinas que reproduzem movimentos e obedecem mudamente a ordens: elas têm suas próprias vontades. Elas são livres. Josenildo poderia organizar o grupo para uma relação melhor entre os trabalhadores e a empresa. Ele deve ter mais ou menos a minha idade e já tem tanta certeza, força, independência...

“E ainda tem o problema do prazo” – continua meu pai, eu arregalo os olhos. “Quanto mais a casa demorar a ser construída, mais diárias temos que pagar, e menos dividendos sobra para a gente. Já estamos, agora, atrasados. Com essa morosidade, vamos acabar tendo que trabalhar para pagar os custos dessas liberdades todas”.

Meu pai vai embora, não sem antes dar uma volta pela obra e falar com Josenildo, que o escuta quieto, com o semblante duro, mas sem desviar o olhar. Quando ele passa por mim, perguntei o que ele conversou com Josenildo e ele diz que não precisa me dar satisfação. Vou a Josenildo e o questiono. “Nada”, ele me responde, “só perguntou se estava satisfeito com o trabalho”. Não sei se ele está falando a verdade. Fico vendido, como um príncipe de uma monarquia abandonada.

Pouco mais de uma semana depois, numa quinta-feira, o peão de cabeça branca se envolve num acidente: deixa um balde cheio de brita cair de uma altura de uns cinco metros. Não pega em ninguém, mas o balde de plástico se espatifa e as pedras se espalham por até quase minha sala. Severino chega perto para dar uma dura. Josenildo também se aproxima e começa a defender o mais velho. Severino engrossa o tom, Josenildo responde à altura. “Vou chamar o patrão!”, grita Severino tão alto a ponto de eu, que estou do outro lado da obra correndo para lá, escutar. “Esse aí não manda em ninguém”, diz alguém. “Estou falando do pai, não do filho”, complementa Severino, saindo, na hora que eu chego. “O que foi?” Tento perguntar, Severino passa por mim: “Nada, patrãozinho, nada, não precisa se preocupar”. Eu pergunto o que aconteceu e ninguém me responde nada. Estou transparente. As pessoas não me enxergam. Eu olho para o Josenildo na busca por auxílio: “Aconteceu que os brancos sempre se ajudam para ferrar os pretos”. Eu fico rodando de um lado para o outro, perdido. Tento aumentar o tom, mas fico com medo de chorar ali, na frente de todo mundo. Aos poucos as pessoas começam a me explicar. Quando acabam, eu volto para a sala à espera do meu pai.

Ele não demora – e diz de cara que eu não preciso me meter, ele lidaria com o problema. Chega perto do Josenildo e eu vejo o peão sair de perto, pegar suas coisas e ir embora. Tento ainda interpelar o meu pai, mas ele espalma a mão e eu não sei o que fazer então.

O clima da obra fica nublado. Ninguém quer trabalhar depois da demissão de Josenildo. Severino insiste, grita, diz que quem não trabalhar não vai ganhar nada. Eu fico na sala, engolindo o choro que me corrompe para sair, cozinhando o meu estômago no próprio ácido.

No dia seguinte, chego cedo e encontro uma garrafa de cachaça pela metade junto a velas acesas e um prato de barro cheio de farofa. Entro na obra arrepiado. Todos os peões estão lá, mas parados, vestidos à paisana. Severino vem falar comigo: “Já falei com o seu pai. Eles não querem trabalhar sem o Josenildo”. Chego perto deles: “Vocês estão malucos!?” Eles nunca tinham me visto gritar assim. Estou descontrolado, desesperado. “Vão trabalhar!” Empurro cada um deles, um por um, mas eles me ignoram, como se eu fosse feito de vazios. “Vai trabalhar, vai trabalhar!”. Saio de perto e vou para sala, rugir como um leão impotente.

Meu pai entra sem bater à porta: “Vou resolver tudo”, ele me fala, e eu tenho vontade de dar um murro na cara dele. Nessa hora, vejo Josenildo entrar, todo vestido de branco, bermuda e camisa nova. Parece meio cambaleante. Deve estar bêbado. Mexe no chão, sobe uma poeira, como se trabalhando ou fazendo macumba, ou sei lá.

Se eu não tenho mais o que fazer ali, decido pegar o carro e ir embora. Bato a porta com violência. Dou uma última olhada em Josenildo e mudo de ideia. As canelas esbranquiçadas combinam com a roupa, mas contrastam com o corpo retinto. Ele é mais forte que eu, por isso passo cuidadosamente por trás, sem que me note. Pego rapidamente o sarrafo no chão e dou bem na nuca, igual meu pai me ensinou. Ele nem percebe de onde vem, cai só para levantar mais poeira. Em seguida, grito para o seu Severino: Leva para o hospital e resolve tudo. Sem perder mais tempo, vou para o carro e saio fora.

 

Variação histórica do tema

As canelas sujas com barro branco chamavam atenção naquele corpo preto e forte. Passei do lado dele com cuidado, para ele não me notar. Abaixei rapidamente para pegar no chão um pedaço de madeira grande e fui dar na nuca, por trás, igual meu pai tinha me ensinado. Ele percebeu de onde veio: gingou para o lado, o pau passou no vazio, e no balanço deu um rabo de arraia na minha cara. Caí no chão úmido. Ele aproveitou a deixa e saiu correndo mato adentro. O capitão ainda tentou ir atrás, mas logo outro preto deu uma rasteira, e ele também se estabacou. Os escravos todos aproveitaram para fugir, enquanto meu pai chegava de cavalo, dando tiro no vazio.

 

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