quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Monólogo final de "O ovo da serpente" (de I. Bergman)

Em um ou dois dias,
talvez amanhã de manhã,

o exército da Alemanha do Sul
começará uma revolta,

comandados por um demente
chamado Adolf Hitler.

Será um fiasco descomunal.

Herr Hitler carece de capacidade
intelectual e de técnica.

e não sabe as
forças tremendas

com as que se enfrentará.

Será arrasado como
um grande fiasco

no dia em que desatar
esta tormenta.

Observe esta imagem.

Observe toda esta gente.

São incapazes
de uma revolução.

Estão muito humilhados,

muito temerosos,
muito oprimidos.

Mas em dez anos...

Para então...

os de 10 anos terão 20,

os de 15 anos terão 25.

Eles terão herdado
o ódio de seus pais,

mas com a adição de seu
idealismo e impaciência.

Alguém se adiantará e colocará
seus sentimentos sem palavras.

Alguém prometerá um futuro.

Alguém fará suas exigências.

Alguém falará
de grandeza e sacrificio.

Os jovens e inexperientes
brindarão seu valor e sua fé

aos cansados e indecisos.

E então haverá
uma revolução,

e nosso mundo se fundirá
em sangue e fogo.

Em dez anos, não mais,

eles criarão uma sociedade
sem igual na historia mundial.

A antiga sociedade se baseava
em ideias muito românticas

sobre a bondade do homem.

Muito complicado, já que as ideias
não concordam com a realidade.

A nova sociedade
se baseará em um juízo real

dos potenciais
e limitações do homem.

O homem é uma deformidade,
uma perversão da natureza.

Então nossos
experimentos tomam lugar.

Lidamos com a forma básica
e logo a moldamos.

Liberamos as forças produtivas
e controlamos as destrutivas

Exterminamos o inferior
e aumentamos o útil.

segunda-feira, 1 de outubro de 2018

'anódino' (Ficção): capítulo 0

0

Eu matei um menino hoje. Matei um menino, matei... Era um menino pequeno... Não esqueço o som do corpo, daquele corpo pequeno – quantos anos ele tinha? – batendo contra a frente do ônibus. Plac, pum, toc. O som, o som, o barulho... Nossa... o barulho foi assustador. Um esporro. Foi rápido, a cena foi rápida, quase instantânea. Menino na frente do ônibus, corpo no chão, ônibus por cima. Mas o barulho, eu me lembro do barulho. Não me esqueço. Eu me lembro, sim, eu me lembro. Eu arremessei aquele menino, aquele menino que vivia aqui na rua, aqui perto de casa... Eu nunca tinha visto esse menino na vida. Nunca. Era um fantasma, um espectro, que devia passar por dentro de mim, e que de repente apareceu, na hora mais imprópria, da pior maneira possível, e eu o arremessei. O arremessei na frente de um ônibus e o ônibus, plac, pum, toc. Um esporro. Fui eu o responsável, fui eu, só eu, ninguém além de mim. Sozinho, só eu. Só eu quem o matou, que o matei. Agi sem pensar, impulsivamente e as cenas agora se repetem, uma e outra e outra e logo outra, um trecho em looping, até eu perceber o óbvio. Quem mata alguém é assassino. Eu sou um assassino. Assassino. Tudo aconteceu ali, perto do túnel, ao lado do cemitério, embaixo de uma favela, na zona dos esquecidos, onde ninguém sabe nada e jamais alguém vê coisa com coisa. Ele era um personagem desse filme mudo e sem imagens. Um dos protagonistas, junto com todas as outras pessoas. O ônibus não parou, o motorista nem percebeu. Um esporro. Depois vai ver que atropelou alguma coisa e dar de ombros. Ossos do ofício. Ossos quebrados.

Esmigalhados. O corpo do menino estendido na rua, no chão, na sarjeta. Os carros passando por cima dele, zum, zum, zum – nenhum parou. Aos poucos, o menino foi diluindo, se transformando em asfalto, sumindo novamente dos olhos de quem passa por ali. Voltou a ser fantasma, espectro, transparente. Ninguém parou. Ninguém se arriscaria nessa vizinhança, na minha vizinhança. O garoto que nunca existiu voltou para onde não deveria ter saído. Eu fui embora, correndo, logo após jogar o menino. Estava com medo. Estava apavorado. E se me pegassem? E se me vissem? Não acompanhei o garoto sumir, desaparecer, se desmilinguir. Não escutei os motoristas reclamarem sobre o buraco novo, o paralelepípedo fora do lugar, o quebra-mola de ossos e carne e órgãos e sangue, sangue que se esparrama pelo asfalto e se enegrece. Não assisti ao espetáculo deprimente da sua desgraça. Em casa, fechei a porta atrás de mim e pude respirar. Sentia o meu peito arfando, subindo e descendo, subindo e descendo, como se tivesse fugido. Eu tinha fugido. Eu estava morto de medo. A chuva começava lá fora e eu continuava a olhar a parede branca que servia de tela para o mesmo filme, o mesmo filme que passava na minha cabeça. Plac, pum, tom. Pela primeira vez consegui parar. Respirei fundo uma, duas vezes e foi então que aconteceu. Como um estalo que não se escuta, como um pisca que não se vê, como uma dor que não se sente. De repente, como quem recebe uma notícia aleatória, mas contagiante como uma revelação fantástica. Sem perceber ou esperar, senti um prazer narcotizante aproveitar toda a minha capilaridade e subir pelas minhas extremidades, pés, batatas, coxas, sexo, barriga, peito, cabeça. Minha vista se enubleceu e o corpo ficou mole. A chuva caía lá fora na forma de um temporal, escutava os pingos grossos limpando a carga que trazia sobre os meus ombros, e percebi que, em poucos instantes, eu não tinha peso algum. Pelo contrário. Estava leve, totalmente liberto. E senti algo que foi difícil, a princípio, admitir. Gostei. Estava, naquele momento, sentindo um prazer inenarrável, experimentando uma sensação divina, única, empolgante, eterna. Após o medo, senti o meu corpo se encher de alguma substância química e tinha que admitir: foi bom, foi ótimo. Foi ótimo o que eu fiz. Estava me sentindo pleno. Sem perceber, um sorriso brotou no meu rosto, no meio da minha cara, dessa cara que eu tenho, a única, que não posso esconder. Parado, de frente para a parede, tive a certeza de que queria fazer isso de novo, que queria sentir isso novamente. Pela primeira vez, depois de muito tempo, estava feliz.

'anódino' (Ficção): Nota introdutória

Nota à guisa de introdução e para fornecer algum contexto histórico:

Em 2006, quando Sérgio Cabral Filho foi eleito governador do Rio de Janeiro, eu trabalhava em uma redação de um grande portal jornalístico de internet. Uma das propostas do então queridinho dos principais grupos de comunicação do estado era promover uma limpeza étnica nas favelas e periferias da capital, seguindo sua promessa de engrossar o tom das respostas contra os grupos organizados fora da lei. Ele, junto com o seu primeiro-tenente, José Mariano Beltrame, queria “recuperar os territórios” (termos usados com frequência) das mãos dos traficantes (essa alcunha genérica que se usa exageradamente como sinônimo de criminoso), para montar Unidades de Polícia Pacificadoras (sic), e proteger a maravilhosa cidade para os eventos que ocorreriam aqui (do Pan, em 2007, passando pela Copa do Mundo, em 2014, até as Olimpíadas, em 2016).

Uma das táticas da polícia sob o comando de Cabral (mas sem ser invenção dele) foi fazer incursões cotidianas em favelas de diferentes tamanhos. O resultado era um dia a dia de mortes no varejo e, frequentemente, nada menos que chacinas patrocinadas por quem deveria evitá-las: o Estado. Todos os dias, eu, como um dos primeiros filtros do site, recebia informações do assassinato de dois, três homens – sempre suspeitos, sempre armados, invariavelmente pretos – em uma operação policial. Eu tinha que decidir se essas mortes de homens de pele escura, pobres e favelados, em confronto com agentes da (in)segurança, eram passíveis de virar notícia, e entrar numa montanha de informação bastante caótica; ou não: deveríamos ignorar sua história e nem mesmo relegá-los a se tornar letras virtuais num ambiente igualmente imaterial. Opções, ambas, excepcionalmente destrutivas, para mim.

Era um exercício diário de morte, de um outro tipo de morte, que me matava aos poucos, com a desculpa de que me fornecia as possibilidades para poder sobreviver. Até que não mais.

Esse livro, escrito entre os anos de 2007 e 2008, foi a tentativa de imaginar – de um modo que, à época, pensava ser caricatural – as possíveis implicações, ou últimas consequências, da euforia coletiva em relação às decisões da política institucional, euforia que se mostrava profundamente insensível com a situação daqueles sobre quem tal política brutalmente incidia. A história descreve a gênese de uma moral perversa, psicopata, fascista até, que está sempre à espreita, principalmente quando optamos por soluções aparentemente fáceis e, por isso, inexoravelmente violentas.