segunda-feira, 1 de outubro de 2018

'anódino' (Ficção): capítulo 0

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Eu matei um menino hoje. Matei um menino, matei... Era um menino pequeno... Não esqueço o som do corpo, daquele corpo pequeno – quantos anos ele tinha? – batendo contra a frente do ônibus. Plac, pum, toc. O som, o som, o barulho... Nossa... o barulho foi assustador. Um esporro. Foi rápido, a cena foi rápida, quase instantânea. Menino na frente do ônibus, corpo no chão, ônibus por cima. Mas o barulho, eu me lembro do barulho. Não me esqueço. Eu me lembro, sim, eu me lembro. Eu arremessei aquele menino, aquele menino que vivia aqui na rua, aqui perto de casa... Eu nunca tinha visto esse menino na vida. Nunca. Era um fantasma, um espectro, que devia passar por dentro de mim, e que de repente apareceu, na hora mais imprópria, da pior maneira possível, e eu o arremessei. O arremessei na frente de um ônibus e o ônibus, plac, pum, toc. Um esporro. Fui eu o responsável, fui eu, só eu, ninguém além de mim. Sozinho, só eu. Só eu quem o matou, que o matei. Agi sem pensar, impulsivamente e as cenas agora se repetem, uma e outra e outra e logo outra, um trecho em looping, até eu perceber o óbvio. Quem mata alguém é assassino. Eu sou um assassino. Assassino. Tudo aconteceu ali, perto do túnel, ao lado do cemitério, embaixo de uma favela, na zona dos esquecidos, onde ninguém sabe nada e jamais alguém vê coisa com coisa. Ele era um personagem desse filme mudo e sem imagens. Um dos protagonistas, junto com todas as outras pessoas. O ônibus não parou, o motorista nem percebeu. Um esporro. Depois vai ver que atropelou alguma coisa e dar de ombros. Ossos do ofício. Ossos quebrados.

Esmigalhados. O corpo do menino estendido na rua, no chão, na sarjeta. Os carros passando por cima dele, zum, zum, zum – nenhum parou. Aos poucos, o menino foi diluindo, se transformando em asfalto, sumindo novamente dos olhos de quem passa por ali. Voltou a ser fantasma, espectro, transparente. Ninguém parou. Ninguém se arriscaria nessa vizinhança, na minha vizinhança. O garoto que nunca existiu voltou para onde não deveria ter saído. Eu fui embora, correndo, logo após jogar o menino. Estava com medo. Estava apavorado. E se me pegassem? E se me vissem? Não acompanhei o garoto sumir, desaparecer, se desmilinguir. Não escutei os motoristas reclamarem sobre o buraco novo, o paralelepípedo fora do lugar, o quebra-mola de ossos e carne e órgãos e sangue, sangue que se esparrama pelo asfalto e se enegrece. Não assisti ao espetáculo deprimente da sua desgraça. Em casa, fechei a porta atrás de mim e pude respirar. Sentia o meu peito arfando, subindo e descendo, subindo e descendo, como se tivesse fugido. Eu tinha fugido. Eu estava morto de medo. A chuva começava lá fora e eu continuava a olhar a parede branca que servia de tela para o mesmo filme, o mesmo filme que passava na minha cabeça. Plac, pum, tom. Pela primeira vez consegui parar. Respirei fundo uma, duas vezes e foi então que aconteceu. Como um estalo que não se escuta, como um pisca que não se vê, como uma dor que não se sente. De repente, como quem recebe uma notícia aleatória, mas contagiante como uma revelação fantástica. Sem perceber ou esperar, senti um prazer narcotizante aproveitar toda a minha capilaridade e subir pelas minhas extremidades, pés, batatas, coxas, sexo, barriga, peito, cabeça. Minha vista se enubleceu e o corpo ficou mole. A chuva caía lá fora na forma de um temporal, escutava os pingos grossos limpando a carga que trazia sobre os meus ombros, e percebi que, em poucos instantes, eu não tinha peso algum. Pelo contrário. Estava leve, totalmente liberto. E senti algo que foi difícil, a princípio, admitir. Gostei. Estava, naquele momento, sentindo um prazer inenarrável, experimentando uma sensação divina, única, empolgante, eterna. Após o medo, senti o meu corpo se encher de alguma substância química e tinha que admitir: foi bom, foi ótimo. Foi ótimo o que eu fiz. Estava me sentindo pleno. Sem perceber, um sorriso brotou no meu rosto, no meio da minha cara, dessa cara que eu tenho, a única, que não posso esconder. Parado, de frente para a parede, tive a certeza de que queria fazer isso de novo, que queria sentir isso novamente. Pela primeira vez, depois de muito tempo, estava feliz.

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