quarta-feira, 30 de julho de 2003

o texto é quase antigo... ficou envelhecido. mas vale para retornar a rotina...
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testemunho.

Acho que não é novidade para ninguém. Nesses últimos cinco anos, por mais que, de tempos em tempos, minha vida tenha se transformado em outra, e logo depois em mais uma, e após, outra completamente diferente das demais, há um fato que não se modificou. Eu ainda gosto da Paula.

Não é da mesma maneira como naquele tempo, obviamente. Esse período de separação e distância, física mesmo, fez com que o sentimento se transformasse em outra coisa, mais branda. Contudo, ainda tenho vontade de correr atrás dela, agarrá-la e beijá-la, dizer palavras bobas ao pé do seu ouvido e ir embora, tudo antes que ela perceba o que a atingiu. Mas alguma coisa agora me segura no chão. Talvez pelo medo de não ser correspondido, ou mal interpretado, ou com vergonha pelo ridículo da situação. O certo é que agora a admiro de longe, com um certo medo de sugerir algo que talvez a constranja com minhas insistentes olhadelas, por debaixo de todos os outros olhos.

Tento me analisar para chegar ao motivo que me faz ainda lembrar dela. O fator mais forte que enxergo é ela ter sido uma grande paixão adolescente. Quem é que consegue se aproximar normalmente e trocar palavras cordiais seguro que o coração não vai disparar diante daquela menina que era vidrado na época do colégio?

As razões – se é que há razão nesses casos – pelas quais me apaixonei por ela ainda são grandes motivos porque eu ainda carrego um pedaço dela dentro de mim. Paula era três anos mais velha que eu, numa época onde as meninas mais velhas mal olham para você. Era inteligente, discreta, culta, charmosa e, principalmente, linda. Linda, linda, linda, nunca é demais repetir.

Lembro de mim, bem pequeno, na portaria do meu prédio, esperando ela passar. Queria ver aquela menina magrinha, extremamente branca, loura de um louro amarelo claro, de olhos azuis, que quase corria de volta para casa depois do colégio. Parecia sempre assustada, ou atrasada correndo atrás de um coelho imaginário.

Nunca havíamos trocado uma palavra até uma festa da turma dela, já quando ela estava na faculdade. Eu sempre acompanhei sua vida, como capítulos de uma novela sem fim e acreditava que ela me ignorava. Hoje sei que ela sabia da minha existência, o que, para mim, já é um prêmio.

Morávamos numa cidade pequena – São José do Rio Vermelho – e era quase impossível não ter visto alguém das redondezas pelo menos uma vez na vida. Hoje, vim para o Rio e ela continua lá. Morando no mesmo prédio, que acompanhei seu crescimento, vivendo basicamente a mesma vida que tinha há cinco anos atrás.

Não quero ser mal compreendido. Não vivo em função dela, nem sou um amargurado que vive choramingando pelos cantos sempre com a mesma canção, como uma vitrola quebrada. É que ela se transformou para mim numa finalidade, quase inalcançável, bem próxima da utópica. Talvez por isso perfeita.

Nesse período de distância é claro que me envolvi com outras meninas. No entanto, a comparação entre as duas, a menina que me envolvesse e Paula, era inevitável. E como minha imaginação é mais fértil que a realidade, a menina sempre saía perdida e perdendo. Não consegui permanecer com nenhuma outra mulher por mais de três meses, e a grande culpada foi a lembrança que tenho da Paula, tenho certeza.

Podem dizer, e eu admito, que não consigo me ater ao presente. Vivo constantemente com a cabeça presa a fatos que se passaram e, talvez, não voltarão. Entretanto, voltar a realidade não é algo fácil de se conseguir. Ela me marcou tanto e de tal forma que muitas vezes me parece viva, ao meu lado, sentada na cama, me olhando, com aquele rosto, num misto de caridade com uma certa vergonha.

Pois sim, se algum dia ficamos juntos, e isso de fato ocorreu, ela ficou comigo, mas com vergonha de mim. É duro admitir isso, porém este é um fato incontestável. Quem viveu próximo a mim, à gente, sabe perfeitamente do que eu falo. Ficamos três meses juntos, sem admitir isso para ninguém. Apenas meus amigos mais íntimos e minha irmã sabiam. Em nenhum momento ela me pediu isso explicitamente. Contudo, a maneira como ela me tratava quando em público – distante, agindo baseada apenas nos princípios da amizade – me transmitiam a informação de como é que ela queria estar comigo, ou como ela queria que as pessoas pensassem que nós estávamos juntos.

Assim, eu agia como um mendigo, suplicando migalhas de afeto ou um beijo rápido, sem que ninguém nos visse. A situação se tornava ainda mais cômica, para não dizer trágica, porque todos os nossos amigos, familiares e pessoas próximas em geral, sabiam, ou suspeitavam com bastante certeza do que acontecia, e mesmo assim ela continuava a me tratar como a um qualquer na presença de outra pessoa.

Essa minha atitude, de pedinte, talvez seja o maior motivo pelo o que acontece até hoje comigo. Não sei explicar, e nem acho que seja algo facilmente assimilável. Mas, com essas renúncias, a que ela me proporcionava diariamente, ela dava um valor ainda maior ao que eu, sozinho, já valorizava absurdamente. Um simples e singelo beijo dela era um evento, um acontecimento, algo que transformaria meu humor, meu rumo, a minha vontade.

Não me perguntem o motivo dela me tratar dessa maneira. Esse nosso código de conduta era algo não verbal. Assinei esse contrato sem ler as cláusulas, apenas para poder ficar com ela. Pensava que, com o passar do tempo, iríamos nos aproximar cada vez mais, ao ponto dela admitir na frente de outras pessoas o seu real envolvimento comigo. Acreditava nisso e estava razoavelmente correto.

Razoável porque com o passar do tempo junto dela, ela realmente começou a se transformar numa namorada tradicional para mim. Já ia à casa dela jantar (mesmo que fosse algo suspeito, os pais dela nunca me perguntaram nada), saíamos juntos e sozinhos para lugares onde não iriam nos achar, encontrava com ela no final das suas aulas. O problema foi que, após os três meses que passamos juntos, onde eu percebia que ela tinha se envolvido comigo de maneira intensa, impulsiva, sem culpas, ressentimentos, ou qualquer sentimento negativo, ela saiu sozinha de noite uma vez e encontrou o ex-namorado. Passaram a noite inteira juntos e no final, ela me admitiu, ela deu um beijo nele.

Por mais que seja inacreditável, estava disposto a passar por cima disso, se o beijo fosse só um beijo. Porém as coisas não aconteceram dessa maneira prática. Ele foi o estopim para que Paula revisasse a maneira como ela estava levando a vida naquele momento. Isso queria dizer, basicamente, a nossa relação.

Por mais que as mulheres tenham lutado durante décadas contra a opressão, contra as desigualdades, contra toda forma de diferença, ainda está encruado na alma feminina a necessidade de segurança. E eu,
três anos mais novo que ela, ainda no segundo grau, apenas começando a vida, não tinha o que proporcionar para ela nessa área. Acredito que esse tenha sido o motivo único.

E, de todos os constrangimentos que ela me proporcionou, nenhum se comparou ao que eu passei logo após o fatídico dia que ela encontrou o ex-namorado. Isso aconteceu na quinta, no sábado era o aniversário dela, e no domingo haveria um churrasco para comemorarmos. Só com a família dela, e nossos amigos mais próximos. Logo aqueles que sabiam ou suspeitavam de que nós estávamos juntos. E logo para aqueles que ela tinha começado a me admitir.

Ela me pediu para ir, junto com ela, no mesmo carro. Sabia dentro de mim, com toda a minha certeza que não ataríamos novamente. A verdade é que eu estaria fora de todos os planos dela, a partir da segunda-feira. Eu me tornaria apenas um nome e uma coleção de lembranças, cada vez mais envelhecidas e propensas a esquecimentos. O aniversário dela funcionou para mim como uma espécie de homenagem póstuma. Perambulava pelo sítio corroído por dentro. Evitava falas e conversas com medo de desabar ali mesmo. Minha garganta queimava por dentro, minha cabeça latejou a tarde inteira, mas meu rosto fingia sólido, na tentativa de transparecer tranqüilidade, cotidiano.

Mais uma semana rolou e eu na expectativa amarga da conversa fatal. Na semana seguinte, o inevitável apareceu. Não adianta tentar explicar nada. Aquele dia, aqueles pequenos minutos de angústia parecem que ocorreram ontem. Um ontem que sempre se repete, a cada dia. Sempre parece que foi ontem, independente do dia, do ano em que estamos.

A partir daí, muita coisa aconteceu. Entrei para a faculdade, fui morar sozinho, saí de São José do Rio Vermelho e volto muito de vez em quando para encontrar uma parte da família e alguns amigos mais chegados. Ela voltou para o ex-namorado, o pivô, embora tenha ficado apenas mais alguns meses. Depois começou a namorar outro sujeito e logo depois outro e eu os detestando mesmo sem os conhecer.

Há uns seis meses atrás, no aniversário de um ano da filha do meu melhor amigo, voltei para a cidade para a festa. Não quero esmiuçar o que aconteceu porque acho de pouca validade, e de grande sofrimento para mim. Serei o mais rasteiro possível. Ela estava lá. Com o novo namorado dela. Em certo momento, nos encontramos, o que era de se esperar, e, o que foi surpreendente para mim, conversei por horas com o novo namorado dela. Nunca com ela. Tive medo de, de alguma forma, atrapalhá-la. Olhava para ela somente quando tinha certeza absoluta de que ninguém repararia, mesmo ela. Estava com medo, com vergonha, com sei lá o que. Estava tentando evitá-la, isso sim. Dessa forma fiquei papeando com o novo namorado dela. Ivan, o nome dele. Mais velho, rico, gente-boa. O que por si só me trouxe dois sentimentos completamente antagônicos. Se por um lado fiquei com uma puta inveja da situação confortável dele, por outro fiquei satisfeito por ela estar com alguém tão legal. Se no início queria xingá-lo de todos os palavrões que existem no mundo, e inventar mais uns vinte, no final, ríamos juntos de piadas que havíamos contado. Se no início desejava a morte dele de maneira lenta, gradual e dolorosa, depois da terceira cerveja juntos, já dávamos tapas nas costas um do outro.

Quando voltei para casa, ainda me pegava desejando Paula, como faço, sadiamente, todos os dias há cinco anos. No entanto, agora a idéia vinha acoplada de um sentimento de traição, algo como quebra de confiança. Imaginava que se houvesse meia oportunidade, era certo que eu aproveitaria, disso eu não tinha dúvida. Até que a tal chance se apresentou e eu não sei mais o que fazer.

Aliás, se há algum motivo para esse depoimento existir talvez seja esse. Dividir o peso das minhas costas. Compartilhar a verdade com mais alguém, mesmo que esse alguém seja apenas uma pseudo-imitação de papel em tempos tecnológicos. Aos fatos, pois.

Em uma nova visita a São José do Rio Vermelho, fui com amigos numa danceteria, a única da região. Ela é exatamente o oposto daquilo que considero diversão. Um lugar apertado, completamente cheio, com música eletrônica bate-estaca do início ao fim e pessoas sem o menor brilho de diferenciação umas das outras. Apenas um bando de corpos suados que se exibem para serem consumidos e depois jogados fora, ou trocados por corpos menos suados, e mais de acordo com o interesse do momento. Porém, como era a única boate do lugar, e um ex-vizinho meu, que cresceu junto comigo, estaria lá, fui agüentar o problema. Éramos um grupo de cinco, e nos divertíamos com qualquer coisa que acontecesse na nossa frente. Não nos juntávamos, os cinco, há tempos e qualquer situação era motivo para rirmos.

De tempos em tempos, dávamos uma volta para ver se havia algo diferente em algum lugar. A casa, apesar de lotada, é bem grande, tem três andares. Ficávamos basicamente no terceiro andar e tínhamos que buscar a cerveja no segundo andar, onde o bar era menos lotado. O que era outro motivo para dar as voltas. Descíamos a escada em fila, gargalhando de uma das histórias contadas e vi exatamente o que não podia imaginar. Ivan. Sozinho. Ele subia as escadas com um semblante sério e ficou ainda mais sem graça quando me viu. Percebi que ele não sabia o que dizer e apenas por essa reação, e por nenhuma outra, sabia o que acontecia. Parei a escada, interrompi todo o fluxo e fiquei no vão que liga os pavimentos. Ele veio atrás de mim. Cumprimentamo-nos e ele sorriu de maneira cordial, para disfarçar sua surpresa em me ver. Não fiz perguntas. Nenhuma delas. Apenas jogávamos as palavras ao léu, sem nenhum motivo, e em poucos segundos nos despedimos. Ele subiu as escadas e eu fiquei ali parado, observando ele caminhar para dentro do salão, com o meu pensamento a mil por hora.

Voltei para o meu grupo de amigos, mas, mesmo que tenha voltado a rir naquela noite, e eu ri várias vezes, a minha cabeça ficou presa àqueles pequenos instantes. Não tinha nenhuma certeza sobre ele, ou sobre os dois. Não sei ao certo o porquê dele estar ali. Contudo, a surpresa no olhar dele, o sorriso amarelado, sem-graça, o incômodo disfarçado, dava vazão a minha mais absoluta desconfiança: Paula não tinha idéia de que ele estava ali.

Quando desci as escadas, meus amigos ainda brincaram comigo, dizendo que agora bastava fazer uma ligação para ter o caminho de volta livre. Mal sabiam eles que esse pensamento já tinha passado na minha cabeça algumas vezes antes de me juntar a eles. A cada degrau que eu pisava, a idéia vinha e voltava, como se rodasse a minha cabeça me tentando.

É fato que isso é a coisa mais fácil de se fazer. No entanto, é a coisa certa? Esse tipo de denúncia, de dedo-durismo, de alcagüete pode ser levado em consideração? Será que ela acreditaria em mim? Até acredito que sim, mas também é provável que ela me detestasse por ser o portador da notícia. Eu poderia me transformar num carrasco para ela.

Guardei essa informação dentro de mim. Até agora. Jogo essas palavras no papel, como se fossem ficcionais, para que elas me redimam, para que funcione como um confessionário, uma análise, ou algo do gênero.

Quanto a Paula, diretamente, eu continuo na expectativa de que ela caía no meu colo, da maneira mais simples que há, sem que para isso eu faça qualquer tipo de esforço. Ainda creio que ela pode, um dia, quem sabe, acordar e perceber que a melhor coisa que ela pode fazer na vida dela é viver ao meu lado. Por mais que ainda não consiga dar a tal segurança que todas as mulheres querem e desejam, Paula poderia acreditar em mim quando digo que ainda gosto dela. E só isso seria suficiente.

sexta-feira, 25 de julho de 2003

A visita

O portão da casa dela estava fechado. Pensei duas vezes antes de ligar, pois não tinha nenhuma vontade especial de vê-la. Sabia que a noite seria extremamente enfadonha, com conversas sobre nada e dicas de como ter uma vida mais feliz. Assim, como se isso fosse questão de seguir regras.

Ela disse que desceria em alguns instantes e não estava mentindo. Logo escutei as patinhas, do basset preto que eu tinha visto apenas filhote, de encontro às escadas. Ela abriu o portão, dei apenas um beijo, no lado direito do seu rosto, e nos abraçamos. Acho que foi a primeira vez que nos beijamos no rosto. Não dei tempo para nos tornarmos amigos assim que terminamos. Apenas nos falamos por telefone ou e-mail. Uma vez a encontrei dentro de uma boate e logo em seguida fui embora. Não que eu sentisse nada por ela, acredito piamente que não, mas por não querer conversar com ela.

Dessa vez, o caso era um pouco mais pesado, o motivo era impossível de se evitar. Sua mãe havia falecido há três semanas e tinha prometido fazer uma visita para ela. Transferira esse encontro por todo o tempo que pude, dando desculpas quase diariamente, entretanto, sabia que esse dia chegaria. Resolvi encara-lo, então.

Sentei-se à mesa da sua cozinha, junto a todas suas compras para a casa. Brinquei que ela estava se transformando numa dona-de-casa de mão cheia e percebi que ela encarava o meu humor de maneira sadia. Perguntei cordialmente, com o intuito de não deixar o silêncio se apoderar do ambiente, sobre todos os familiares que havia conhecido. Ela disse, de maneira simples e direta, que todos iam bem. Tudo corria da maneira civilizada como aprendemos nas melhores cartilhas. Ela preparava o jantar e dizia que estava pronta para sair exatamente no momento que eu havia chegado. Como eu estava muito atrasado, ela pensou que não viria mais.

O telefone tocou. Ela atendeu e disse que já ia. Era sua avó, que morava na casa de baixo, passava mal e pedia ajuda. Ela desceu, como tinha visto inúmeras vezes sua mãe fazer, e eu fiquei na cozinha, esperando-a para começar a jantar.

O cachorro me distraiu por alguns minutos. Ele teimava em subir no meu colo, e eu não deixava. Depois, ele e eu nos cansamos. Sentado à mesa estava e fiquei. Olhei para o lado para procurar algo para fazer e observei a mesa com pasta de dente, xampu, papel toalha e outras coisas pequenas. Tentei ler todas as embalagens para passar o tempo, mas isso me levou apenas alguns segundos. Da cadeira onde estava, pude escutar a avó dela tossindo e com dificuldade para respirar. Tentei lembrar quando tinha ouvido algo parecido e não consegui. Toda a cena para mim já era um pouco constrangedora porque parecia que aquele não era o meu cenário, nem a minha deixa. Levantei-me e fui no quarto dela olhar na estante dos livros se tinha algo novo de bom. Tudo o que encontrei foram novas versões para os mesmos livros de espiritismo que ela tanto gosta, e eu detesto, com mensagens positivas e felizes sobre a vida. Procurei os livros que eu tinha dado a ela e, com algum esforço, os achei. Me senti um pouco orgulhoso. De certa forma, parecia que ela ainda não tinha me esquecido por completo. Fui no aparelho de som ver os cds e pude comprovar que ela não tinha mudado muito. Ela parece que parou no tempo e não tem nenhuma vontade, ou necessidade, de avançar. Talvez por viver sempre dentro do turbilhão de informação, onde a cada dia apareça uma coisa nova, que logo é descartada por outra coisa mais nova, o culpado seja eu, que não consigo parar para gostar muito de apenas uma coisa. Ou talvez a culpada seja ela por criar barreiras para gostar de outra coisa além do que está acostumada. Porém, a culpa pouco importa, somos diferentes e não conseguimos agüentar nossas diferença, essa é a verdade.

Fui para a televisão e a liguei. Já fazia vinte minutos que ela tinha descido e ficar sem fazer completamente nada estava me entediando ao extremo, exatamente como eu havia previsto. Mal eu sabia o que me esperava.

Escuto o telefone tocar e ignoro completamente. Acho um pouco cara-de-pau atende-lo, já que eu não sou mais nada dela nem deveria estar ali naquele momento. Na melhor das hipóteses, não adiantaria nada atender. Já aclimatado com a cadeira ao lado da cama dela, assistindo televisão, ouço sua voz vindo da janela do andar de baixo. Ela me gritava para descer num tom próximo ao desespero. Encaminhei-me para a porta e encontrei o cachorro com o rabo abanando já me esperando para descer. Ao abrir a porta, o bicho desceu como uma flecha, sem me dar nenhuma possibilidade de segura-lo. Desço as escadas observando e rindo com o cão se espatifar em cada degrau. Minha cabeça não pensava em mais nada, apenas naquele bicho preto na minha frente. Chego no andar de baixo, toco a campainha e nada. Escuto ela gritando para a avó respirar. Bato na porta com um pouco mais de violência e logo em seguida ela vem abrir. O cachorro corre para o quarto onde está a avó e ela vai atrás dele, “Tira ele daqui, tira ele daqui”. Subo vagarosamente com o cão entre as minhas mãos. Ainda não tinha noção do que realmente acontecia.

Ao voltar, encontro a porta aberta, “Respira, vózinha, respira, abre a boca, não, não fecha, fica com os olhos abertos, fica com os olhos abertos”, vou para o quarto medindo cada passo meu e chamo pelo nome dela, “Respira vózinha, respira vózinha, não pode ser, de novo não”, fico debaixo do batente, a avó com os olhos perdidos, a boca escancarada, o rosto torto, ela apoiava a avó tentando faze-la ficar acordada, “Olá”, digo com uma voz grave que normalmente não é minha, a avó tem um lapso de sanidade, os olhos ganham vida por um segundo ou menos e me observam, “Tudo bem?”, meio pergunto, meio afirmo, ela pára de repetir a ladainha, a avó perde o olhar logo em seguida. Ela deixa sua avó deitar na cama para tentar fazer melhor a ventilação e a massagem, mas a velhinha não se levanta mais. Ela dá um grito de negação, ao perceber que todo o seu esforço foi para um fim inevitável.

Estanquei onde estava. Não me sentia útil para mais nada. Logo em seguida, ou demorou um bocado de tempo, chegou uma tia dela e os médicos do pronto-socorro, todos atrasados. Eu fui para a sala e só consegui pensar naqueles centésimos que passaram logo depois da velhinha me ver. O que será que passou na cabeça dela naquele momento? O que será que ela pensou, se é que ela pensou, quando me viu na porta? Eu, que ela só tinha visto uma única vez, num almoço no natal, que bem provavelmente ela não se lembrava. Será que ela ainda estava sã, ou apenas aparentou? Se eu conseguisse saber o que ela pensava, se eu tivesse plena certeza do que ela pensava, de quem ela era naqueles instantes, naquele exato momento, será que eu não teria desvendado o exato significado da vida?

Demorei mais uns vinte minutos lá, e quando descobri que eu era um completo desnecessário – apesar de o suspeitar disso sempre – fui embora. Sei que a vida dela será completamente diferente. Não necessariamente ruim, nem boa. Sei que os dois choques dentro de um mês tornam qualquer existência mais complicada, no entanto, a coisa que mais penso até hoje, por mais que isso possa parecer insensibilidade, é naqueles instantes finais.

terça-feira, 1 de julho de 2003

para tirar o gosto de azedo da boca... por tempo determinado.

A pedido do editor...

Cinema. Pequenas imagens de trinta e cinco milímetros em seqüência. Mas podem ser de dezesseis milímetros, e até oito apenas. Vinte e quatro delas em apenas um segundo, ou, já fizeram isso em épocas passadas, apenas dezesseis. Projeta-se uma luz através da película. Projeta-se, junto, imagens numa tela enorme. Cresce toda a imagem que é pequena dentro da película. Na tela branca, dentro de uma sala escura, as imagens, todas as imagens que a película pequena contém, ficam grandes. Queima-se a película com luz e com luz projeta-se na tela branca. Começou mudo, começou apenas retratando cenas do cotidiano, começou de maneira mambembe. Descobriram que poderiam produzir obras ficcionais e logo o fizeram. Perceberam que é possível enganar o tempo e adivinharam uma grande arma desse treco. Assim, mostra-se apenas a imagem grande que na película pequena ficou legal. Alguém, algum dia, percebeu que nenhuma outra forma de representar historicamente, ou apenas criar realidades diferentes, era tão precisa quanto ele. Nem o teatro. Única formato que é em conjunto, onde é praticamente impossível criar sozinho. Praticamente, apenas. Criou-se como um fenômeno físico-químico, derivado da fotografia. Porém, hoje, como também ocorreu com a fotografia, e quase tudo o que nos rodeia, sofre – talvez haja alguma palavra melhor – influência direta dos meios digitais. Agora são bites e bits, para usar uma expressão na moda. Entretanto, é válido ressaltar, o conceito original ainda é o mesmo. Ou talvez não. Talvez todos os conceitos caíram, mas aí é outro tipo de conversa. Voltemos. Cinema. Arte de... Arte? Sétima naquela lista. Mais jovem que todas as outras. Claro, é a única que já nasceu com aparato tecnológico e órfã de uma indústria. Arte de projeção, dizia. Projeta-se naquela tela o que quiser. Cria-se um novo universo e quem o assiste enxerga exatamente o que foi projetado. Sim, interpretações são infinitas, mas você enxerga exatamente aquilo. Quem cria, só cria o que é projetado. O que queimou a película, ou foi gravado num arquivo digital, e que é projetado na película. Apenas um fenômeno óptico. Algo a ver com luz e imagens em movimento. Ou projeção, sabe como é, né?