O céu estava aquele azul dos maravilhosos dias de inverno. Só o Rio é capaz disso. Proporcionar o melhor período do ano nos seus dias mais frios, ou melhor dizendo, nos menos quentes. Que me perdoem os que gostam do verão, o Rio no inverno é imbatível. Em seus melhores dias, como o sábado, a temperatura é agradabilíssima, de convidar qualquer ruivo a uma ida à praia, sem medo de morrer de insolação.
Por isso, resolvemos dar um passeio. Não à praia, porque a mais palatável fica a um ônibus de distância. Preferimos caminhar até o Aterro, onde a grama e as árvores frondosas sugerem uma leitura despretensiosa com metade do corpo na sombra e a outra no sol. Onde podemos controlar a temperatura como um carburador fazia com os carros antigos.
Caminhamos vagarosamente, observando as diferentes distâncias e molduras em que o Pão de Açúcar se apresenta: primeiro de lado, no início da Praia de Botafogo; depois, de frente, como continuação da baía; em seguida, imenso, na ponta da enseada, em que o fundo é apenas céu, assim como no Taj Mahal.
Chegamos à parte da grama e árvores e a questão se transformou em qual lugar deitar. Depois de uns entreveros, decidimos por uma árvore de onde poderíamos ver a praia do Flamengo e as pessoas caminhando para lá e para cá, além de uma pelada típica da área. Mas, à distância, vimos uma cena inusitada. Ou surpreendente, para nós.
Um cão, um poodle toy branco, com coleira azul, com uns dez centímetros de língua para fora, estava sozinho, visivelmente cansado. Começamos a observá-lo sem saber muito bem o que fazíamos. Nos aproximamos com cuidado, com medo de ele ser um desses animais neuróticos de madames nervosas.
Sabíamos que o cachorro tinha dono, pelo menos a coleira denunciava isso. Imaginamos que poderia ser qualquer pessoa no raio da nossa visão. Havia um garoto sentado, sozinho, perto da praia. É dele, pensamos. Mas não era. Pensamos, em seguida, que o cachorro tinha se perdido. Aproveitado a folga que o seu dono tinha lhe dado, de liberar a correia para correr e, quando deu por si, estava sozinho. Mas ele não parecia um cachorro com qualquer energia. Se locomovia com extrema dificuldade, meio corcunda - se é que um cachorro pode ser corcunda. Ao chegarmos bem perto, ele andou, aos saltos, vagaroso, para uma outra árvore.
Decidimos comprar uma água para ele. Como não tínhamos uma travessa, usamos um copo de plástico. A princípio, ele evitou aceitar a nossa água, mas, quando nos afastamos, ele a “matou” em poucos segundos.
Achamos curioso. Ele não se movia. Não fazia nada. Ficava parado, quieto, cansado. Era um cão velho, dava para ver. Voltamos para a nossa árvore para deixá-lo à vontade. Ele decidiu caminhar, do seu jeito quase se arrastando, para o lado do futebol. Ficamos a observar o pequenino cão que deveria ter pouco mais de 30 centímetros, ou uma daquelas réguas de colégio.
Tropegamente, ele tropeçava em cada passo. Até que, para descer um degrau quase imperceptível de pequeno, ele caiu. Caiu e não se levantou. Ficamos assustados. Corremos para ver o que era e vimos que ele não conseguia se movimentar. Em seguida, finalmente apareceu um homem se dizendo o dono do cachorro.
Com pouco cuidado, o dono carregou o bicho para perto da gente, da nossa árvore e nos explicou que o cachorro era um velho, de 16 anos, que costumava acompanhá-lo nas suas caminhadas pelo Aterro. Agora, ele mal conseguia ficar em pé. O dono voltou a lavar o seu carro enquanto o cãozinho permaneceu debaixo da mesma sombra que a gente.
Nos aproximamos para dar mais água para o cachorro que, sem pestanejar, aceitou novamente. Um animalzinho daquele tamanho acabou com 500 ml de água em menos de meia hora. Limpamos um pouco o seu pêlo, fizemos carinho. E tivemos a sensação de que este era o seu último dia.
Um sentimento de sublimidade me envolveu. O absurdo da morte estava à minha frente. Era o momento final de um ser vivo. Algo que andava, tinha certa liberdade, tomava algumas decisões, que era complexo, enfim. Era o seu último dia sobre a terra, junto com os vivos, do jeito que o conhecemos e do jeito que é possível ser. Quando publicarmos isso, esse texto, quando alguém o ler, ele não deve mais existir. Estará extinto, finito.
O cachorro, com dignidade, permanecia em pé. Não queria sentar, talvez porque não teria forças para se levantar novamente caso o quisesse, ou, ainda pior, não conseguia descer sem simplesmente cair e tinha medo da queda. Não importa. Permanecia em pé, já sem sentir os cheiros que tanto devem ter mexido a sua vida, sem poder escutar direito, completamente cego, apenas esperando o fim. O que podemos fazer nesses momentos além de esperar o fim?
Durante todo o tempo em que estivemos juntos, ele não latiu nenhuma vez. Talvez não tivesse mais forças, talvez não tivesse mais vontade, sabendo que o seu tempo era pouco e não podia mais gastar a energia que lhe sobrava.
De certa forma me senti um privilegiado por presenciar um momento dessa natureza. Uma vez vi uma senhora, em torno dos 70 anos, morrendo. Ela morreu ao me ver, ao me olhar, como se eu fosse uma espécie de representação da Morte, aquela senhora que chega a todos, dias mais ou dias menos. Mas, se nessa ocasião eu cumpria uma função ativa, com o cachorro, era apenas um observador, uma testemunha do momento final, dos instantes definitivos.
Logo depois, o dono o carregou – novamente pela correia – e se despediu da gente, agradecendo por termos tomado conta do seu cachorro. Não precisava agradecer. Foi um orgulho conhecer o seu cãozinho.