Finalmente, suspeito, entendi o carnaval. Entender não quer dizer que eu o compreendi - compreender parece compressão, parece que eu o envolvi, eu o decodifiquei, eu o abarquei com os meus braços completamente. Entender aqui quer dizer que eu meu dissolvi nele, fiz parte dele, sem um juízo anterior, sem uma expectativa de... entendimento. Quer dizer que eu fui levado pelas suas águas, nada domesticadas, nunca domadas. Fui tomado pelo assombro, pelo cansaço, pelas purpurinas, pelos confetes, pelo êxtase, pelo lado de lá, o outro lado. Na tão e tão cantada quarta-feira de cinzas, eu acordei com uma vontade de colocar para fora, de falar mais sobre, de conversar, de dividir o que houve, de contar que, ei, eu fui batizado.
Demorou para eu ter noção do que o carnaval é - é verdade. Há várias justificativas para essa distância e alguns motivos pelos quais essa espécie de epifania ter aparecido apenas agora. Todos mais ou menos pessoais, a grande maioria de uma chatice só - vou privá-los disso.
Também ouvi falar muito sobre "ocupação dos espaços públicos", essa expressão tão repetida que, para mim, perdeu um pouco de sua real importância. Ninguém, ou quase ninguém, responde direito por que é tão importante "ocupar espaço público" sem recorrer a um deus-ex-machina: porque é bom, porque eu gosto, porque porque porque. Deixo os meus dois ou três porques: porque a rua é do povo. Porque estamos cada vez mais presos em casa-escritório-lugar-de-lazer. Porque a praça é o lugar do encontro, e só o encontro produz a faísca necessária para se fazer o fogo. Porque o fogo acelera as mudanças. Porque mudanças são indispensáveis, sempre, para se aclimatar ao que é novo - e o novo sempre vem.
Há também o argumento de que o carnaval já foi apropriado pelo istabiliximen: as escolas são produtos vendidos em agências de viagem para turistas branquelos que compram suas fantasias, diretamente de suas casas geladas de subúrbio, num pacote que dá direito ainda a uma visita a um terreiro de macumba. Os blocos perdem sua espontaneidade, sua autenticidade, no momento em que aceitam ser domados pelas regras do poder público-privado. Há ainda a discussão (tola) entre escola de samba x blocos: quem representaria melhor o carnaval? Onde fica a essência desse período tão característico do calendário carioca? O istabiliximen, que não se questiona nunca, fica feliz e lucra com os dois lados igualmente.
Nada disso, para mim, importou. O carnaval se mostrou exatamente o oposto. Em uma palavra: o carnaval se mostrou indomável. Aquilo que não pode ser compreendido, apropriado, englobado. O carnaval é um ótimo exemplo daquilo que meus amigos deleuzianos chamam de "linha de fuga". Está sempre se reinventando para que não possa ser completamente deglutido. Só há uma única forma de se entender o que é o carnaval: sendo carnaval. A carne, o coração, a pele... tudo tem que ser de carnaval.
O meu momento eureka foi na ida do G.R.E.S. Ratos e Urubus, larguem minha fantasia ao Museu do Amanhã, na reformada e gentrificada Praça Mauá, que tanto frequentei em priscas eras quando precisava pegar o ônibus para Nova Iguaçu. Ao chegar perto daquela construção nababesca, o bloco, em sua homenagem helio-oiticiquiana da tosquice, começou a cantar improvisadamente - (“o minguado sempre foi/nosso prato principal/viva a precarização/ deste supercarnaval”) - o samba-enredo da União da Ilha de 1978, "O amanhã".
Nos aproximávamos e a multidão bradava: "O que será o amanhã? / Como vai ser o meu destino?" Dávamos mais passos, derrubávamos as grades de proteção: "Já desfolhei o malmequer / Primeiro amor de um menino". Assustávamos os seguranças que ficavam atônitos: "E vai chegando o amanhecer / Leio a mensagem zodiacal". Mulheres corriam sem camisa, se sentindo livres, desimpedidas. "E o realejo diz / Que eu serei feliz". E explodíamos, juntos, em uníssono, enquanto invadíamos o espelho d'água: "Como será o amanhã / responda quem puder / O que irá me acontecer / O meu destino será como Deus quiser".
Era o ápice da trajetória, da procissão que teve encontro entre Zé-Pilintras e um São Francisco laico em frente a uma igreja de mais de 300 anos. Que andou sobre as obras de um bondinho pós-moderno que escava as ruas cariocas para encontrar enterrado os trilhos dos antigos bonde, sepultado sob o peso de uma máfia organizada. Um trajeto que incluiu as ruelas do Saara, que muita gente ali visita normalmente antes do carnaval para comprar seus adereços, suas plumas e seus paetês. Que atravessou a Uruguaiana, que deitou na Rio Branco, que pulou corda na Presidente Vargas.
Demorou para eu ter noção do que o carnaval é - é verdade. Há várias justificativas para essa distância e alguns motivos pelos quais essa espécie de epifania ter aparecido apenas agora. Todos mais ou menos pessoais, a grande maioria de uma chatice só - vou privá-los disso.
Também ouvi falar muito sobre "ocupação dos espaços públicos", essa expressão tão repetida que, para mim, perdeu um pouco de sua real importância. Ninguém, ou quase ninguém, responde direito por que é tão importante "ocupar espaço público" sem recorrer a um deus-ex-machina: porque é bom, porque eu gosto, porque porque porque. Deixo os meus dois ou três porques: porque a rua é do povo. Porque estamos cada vez mais presos em casa-escritório-lugar-de-lazer. Porque a praça é o lugar do encontro, e só o encontro produz a faísca necessária para se fazer o fogo. Porque o fogo acelera as mudanças. Porque mudanças são indispensáveis, sempre, para se aclimatar ao que é novo - e o novo sempre vem.
Há também o argumento de que o carnaval já foi apropriado pelo istabiliximen: as escolas são produtos vendidos em agências de viagem para turistas branquelos que compram suas fantasias, diretamente de suas casas geladas de subúrbio, num pacote que dá direito ainda a uma visita a um terreiro de macumba. Os blocos perdem sua espontaneidade, sua autenticidade, no momento em que aceitam ser domados pelas regras do poder público-privado. Há ainda a discussão (tola) entre escola de samba x blocos: quem representaria melhor o carnaval? Onde fica a essência desse período tão característico do calendário carioca? O istabiliximen, que não se questiona nunca, fica feliz e lucra com os dois lados igualmente.
Nada disso, para mim, importou. O carnaval se mostrou exatamente o oposto. Em uma palavra: o carnaval se mostrou indomável. Aquilo que não pode ser compreendido, apropriado, englobado. O carnaval é um ótimo exemplo daquilo que meus amigos deleuzianos chamam de "linha de fuga". Está sempre se reinventando para que não possa ser completamente deglutido. Só há uma única forma de se entender o que é o carnaval: sendo carnaval. A carne, o coração, a pele... tudo tem que ser de carnaval.
O meu momento eureka foi na ida do G.R.E.S. Ratos e Urubus, larguem minha fantasia ao Museu do Amanhã, na reformada e gentrificada Praça Mauá, que tanto frequentei em priscas eras quando precisava pegar o ônibus para Nova Iguaçu. Ao chegar perto daquela construção nababesca, o bloco, em sua homenagem helio-oiticiquiana da tosquice, começou a cantar improvisadamente - (“o minguado sempre foi/nosso prato principal/viva a precarização/ deste supercarnaval”) - o samba-enredo da União da Ilha de 1978, "O amanhã".
Nos aproximávamos e a multidão bradava: "O que será o amanhã? / Como vai ser o meu destino?" Dávamos mais passos, derrubávamos as grades de proteção: "Já desfolhei o malmequer / Primeiro amor de um menino". Assustávamos os seguranças que ficavam atônitos: "E vai chegando o amanhecer / Leio a mensagem zodiacal". Mulheres corriam sem camisa, se sentindo livres, desimpedidas. "E o realejo diz / Que eu serei feliz". E explodíamos, juntos, em uníssono, enquanto invadíamos o espelho d'água: "Como será o amanhã / responda quem puder / O que irá me acontecer / O meu destino será como Deus quiser".
Era o ápice da trajetória, da procissão que teve encontro entre Zé-Pilintras e um São Francisco laico em frente a uma igreja de mais de 300 anos. Que andou sobre as obras de um bondinho pós-moderno que escava as ruas cariocas para encontrar enterrado os trilhos dos antigos bonde, sepultado sob o peso de uma máfia organizada. Um trajeto que incluiu as ruelas do Saara, que muita gente ali visita normalmente antes do carnaval para comprar seus adereços, suas plumas e seus paetês. Que atravessou a Uruguaiana, que deitou na Rio Branco, que pulou corda na Presidente Vargas.
Era uma massa colorida, brilhosa, briosa, cheia de fantasias reais, que chegava como um enxame sonoro de purpurina, a um prédio esquisito como um inseto que pousa no meio do prato de sal branco refinado. Era uma massa que cantava que o futuro só a deus - esse sujeito que gosta, sim, de brincar com dados - pertence. Que não podemos colonizar o amanhã, que não devemos ancorar nossas esperanças em monumentos fixos. Era um momento de afirmar que o que vem lá à frente é tão certo quanto as promessas de políticos. O destino, esse só pode ser lido pela cigana do samba da Ilha.
Na quarta-feira de cinzas, ainda espantado como devem ter ficado os pensadores originais de todas as filosofias, quis dizer para todo mundo que o carnaval é um movimento político, social, sexual, religioso, sim. Não, talvez, para mudar imediatamente o estado de coisas. O museu do amanhã abriu na manhã do dia seguinte, intacto. A prefeitura continuou a moldar a cidade para gringo ver. Mas é um movimento político, sim, para mostrar o outro lado, um outro lado do cotidiano, um caminho outro, menos duro, menos cimento armado em estruturas metálicas. Um caminho possível, sim, mais anárquico, potente, mais água, suor e lágrimas.
Desconsiderar a força deste carnaval é não enxergar que algo de novo, sempre, algo mutante, algo que se adapta, algo que é diferente do que sabíamos antes, está acontecendo no momento em que está acontecendo.
Na quarta-feira de cinzas, ainda espantado como devem ter ficado os pensadores originais de todas as filosofias, quis dizer para todo mundo que o carnaval é um movimento político, social, sexual, religioso, sim. Não, talvez, para mudar imediatamente o estado de coisas. O museu do amanhã abriu na manhã do dia seguinte, intacto. A prefeitura continuou a moldar a cidade para gringo ver. Mas é um movimento político, sim, para mostrar o outro lado, um outro lado do cotidiano, um caminho outro, menos duro, menos cimento armado em estruturas metálicas. Um caminho possível, sim, mais anárquico, potente, mais água, suor e lágrimas.
Desconsiderar a força deste carnaval é não enxergar que algo de novo, sempre, algo mutante, algo que se adapta, algo que é diferente do que sabíamos antes, está acontecendo no momento em que está acontecendo.