Dias desses, decidi começar a escovar os dentes com a mão esquerda. Sem perceber - ou apenas inconscientemente sabendo o que estava fazendo - mexi num desses hábitos tão enraizados que você normalmente pratica enquanto faz outras coisas. Ou você não escova o dente e penteia o cabelo? Escova os dentes e calça os sapatos? E veste a calça. E paga conta no celular. E... Nunca é só escovar os dentes. Basta trocar de mão, porém, e tudo muda. A mão parece sem precisão, como uma faca que quer ficar cega. Parece indestra ou adestra - o oposto de destra, que não é "canhoto". Bamba, estranha, bêbada, fluida, líquida.
É necessário colocar todo o foco nessa outrora simples ação para que ela saia razoavelmente bem. Para que as escovadas acertem os caninos, esfreguem os incisivos, espanem aquele vizinho do ciso que mastiga até a mais dura casca da cenoura crua. É necessário reaprender o básico, o início, como se tivesse revisitando a infância, mas somente pelo lado motor, já que o psico já está muito acostumado com a vida adulta e interromper esse processo é complicado. Mas é preciso.
Tem que desconectar a cabeça do mundo lá fora e pensar só nas idas e vindas, vindas e idas, da escova com suas cerdas macias sobre os fixos dentes. E como a boca espuma mais quando você só presta a atenção nela. E tenho que cuspir a toda hora. E fecha a água. E o desperdício de água. E os problemas relacionados a... E a cabeça já voou para longe. Puxa de volta, mira nos dentes, prende o fecho de luz em direção à boca, amarra a concentração aí, e somente aí.
Mais recentemente, outra experiência parecida também se apresentou para mim, dessa vez de maneira completamente alheia à minha exótica vontade. Uma dor lancinante nas costas me levou a um fisioterapeuta e acupunturista que vaticinou: você pisa errado. Isso, eu ando de maneira errada. Eu, que nem sabia que existia um jeito "certo" de caminhar, fiquei me entreolhando no meio do caminho sem saber como "consertar" o "erro".
Segundo ele, o "correto" é colocar primeiro o peito do pé no chão, de maneira delicada, sem deixá-lo simplesmente cair, sem abandonar a perna como se ela devesse desabar. Em seguida, fazer uma flexão com o centro do pé e empurrar o solo com o calcanhar. É exatamente o oposto - em tudo - do que eu fazia. Meu pé caía como uma tora de madeira no chão que fazia as janelas do apartamento tremer, bem sobre o calcanhar, para depois movimentar para "frente" e empurrar o corpo com o pé. Aparentemente é assim que a grande maioria das pessoas faz - com maior ou menor violência no contato corpo humano-chão. Ou você caminha diferente?
Pois bem. Lá fui eu reparar em cada um dos passos que dou. Atentar para que o pé toque delicadamente o solo com a parte da frente, evitar parecer que estou com algum tipo de paralisia ou imitando o Michael Jackson em seu "Moonwalk", fazer o movimento calmamente de torção para a parte traseira do pé até que eu empurre o corpo em direção à frente. Primeiro resultado: um trajeto que normalmente eu percorria em dez minutos se transformou em uma vagarosa caminhada de 20. Quase um flâneur. Segundo resultado: foi uma diminuição instantânea da velocidade e um embate interno com a ansiedade de ter que resolver tudo o mais rapidamente possível e para ontem. Terceiro: a dor nas costas diminuiu consideravelmente.
Aparentemente, quando pisamos com o calcanhar primeiro, os músculos dorsais são exigidos quase que sozinhos para manter o corpo ereto, em luta com a grave gravidade. Logo ficam sobrecarregados. Ao pisar com o peito-do-pé, além de dividirmos melhor o peso, fazemos com que nosso abdômen trabalhe nesse movimento. Já vislumbro um tanquinho no verão 2017.
Ao mudar completamente uma ação que fazemos em ato reflexo interrompemos o processo involuntário. Criamos um movimento de desautomatização, que nos torna mais atentos ao nosso redor.
Uma crítica a essa interrupção de ações quase instintivas poderia ser: num mundo cada vez mais duro e frio, temos que parar de pensar e agir mais impulsivamente. Penso que acontece o oposto, porém. Sempre estaremos focando nossa mente em direção a algum ponto. Ao reparar nas coisas mais comezinhas, talvez estejamos prestando atenção no nosso próprio corpo, nas suas camadas, no nosso entorno mais próximo. Em vez de pensar em pagar as contas do celular, descobrir todos os dentes da boca. Em vez de correr para chegar cedo no ponto de ônibus, descobrir toda a rede de conexões musculares, que sustenta nosso corpo. Em vez de olhar para o mundo inteiro, do lado de fora, olhar para o mundo inteiro, do lado de dentro.
Isso me lembra um famoso koan - essas pequenas narrativas do budismo zen:
É necessário colocar todo o foco nessa outrora simples ação para que ela saia razoavelmente bem. Para que as escovadas acertem os caninos, esfreguem os incisivos, espanem aquele vizinho do ciso que mastiga até a mais dura casca da cenoura crua. É necessário reaprender o básico, o início, como se tivesse revisitando a infância, mas somente pelo lado motor, já que o psico já está muito acostumado com a vida adulta e interromper esse processo é complicado. Mas é preciso.
Tem que desconectar a cabeça do mundo lá fora e pensar só nas idas e vindas, vindas e idas, da escova com suas cerdas macias sobre os fixos dentes. E como a boca espuma mais quando você só presta a atenção nela. E tenho que cuspir a toda hora. E fecha a água. E o desperdício de água. E os problemas relacionados a... E a cabeça já voou para longe. Puxa de volta, mira nos dentes, prende o fecho de luz em direção à boca, amarra a concentração aí, e somente aí.
Mais recentemente, outra experiência parecida também se apresentou para mim, dessa vez de maneira completamente alheia à minha exótica vontade. Uma dor lancinante nas costas me levou a um fisioterapeuta e acupunturista que vaticinou: você pisa errado. Isso, eu ando de maneira errada. Eu, que nem sabia que existia um jeito "certo" de caminhar, fiquei me entreolhando no meio do caminho sem saber como "consertar" o "erro".
Segundo ele, o "correto" é colocar primeiro o peito do pé no chão, de maneira delicada, sem deixá-lo simplesmente cair, sem abandonar a perna como se ela devesse desabar. Em seguida, fazer uma flexão com o centro do pé e empurrar o solo com o calcanhar. É exatamente o oposto - em tudo - do que eu fazia. Meu pé caía como uma tora de madeira no chão que fazia as janelas do apartamento tremer, bem sobre o calcanhar, para depois movimentar para "frente" e empurrar o corpo com o pé. Aparentemente é assim que a grande maioria das pessoas faz - com maior ou menor violência no contato corpo humano-chão. Ou você caminha diferente?
Pois bem. Lá fui eu reparar em cada um dos passos que dou. Atentar para que o pé toque delicadamente o solo com a parte da frente, evitar parecer que estou com algum tipo de paralisia ou imitando o Michael Jackson em seu "Moonwalk", fazer o movimento calmamente de torção para a parte traseira do pé até que eu empurre o corpo em direção à frente. Primeiro resultado: um trajeto que normalmente eu percorria em dez minutos se transformou em uma vagarosa caminhada de 20. Quase um flâneur. Segundo resultado: foi uma diminuição instantânea da velocidade e um embate interno com a ansiedade de ter que resolver tudo o mais rapidamente possível e para ontem. Terceiro: a dor nas costas diminuiu consideravelmente.
Aparentemente, quando pisamos com o calcanhar primeiro, os músculos dorsais são exigidos quase que sozinhos para manter o corpo ereto, em luta com a grave gravidade. Logo ficam sobrecarregados. Ao pisar com o peito-do-pé, além de dividirmos melhor o peso, fazemos com que nosso abdômen trabalhe nesse movimento. Já vislumbro um tanquinho no verão 2017.
Ao mudar completamente uma ação que fazemos em ato reflexo interrompemos o processo involuntário. Criamos um movimento de desautomatização, que nos torna mais atentos ao nosso redor.
Uma crítica a essa interrupção de ações quase instintivas poderia ser: num mundo cada vez mais duro e frio, temos que parar de pensar e agir mais impulsivamente. Penso que acontece o oposto, porém. Sempre estaremos focando nossa mente em direção a algum ponto. Ao reparar nas coisas mais comezinhas, talvez estejamos prestando atenção no nosso próprio corpo, nas suas camadas, no nosso entorno mais próximo. Em vez de pensar em pagar as contas do celular, descobrir todos os dentes da boca. Em vez de correr para chegar cedo no ponto de ônibus, descobrir toda a rede de conexões musculares, que sustenta nosso corpo. Em vez de olhar para o mundo inteiro, do lado de fora, olhar para o mundo inteiro, do lado de dentro.
Isso me lembra um famoso koan - essas pequenas narrativas do budismo zen:
Antes de entendermos o Zen, as montanhas são montanhas e os rios são rios; Ao nos esforçarmos para entender o Zen, as montanhas deixam de ser montanhas e os rios deixam de ser rios; Quando finalmente entendemos o Zen, as montanhas voltam a ser montanhas e os rios voltam a ser rios.É com esse pensamento em mente que eu viajo para passar dois meses na China, em Beijing. Sabendo que o Rio deixará de ser Rio.