Sem planejar, planejar muito, ele (eu?) entrou num cubículo. Ou num quarto. Dentro de um salão. Era apertado. Tinha espelhos. Um ao menos. Quebrado. Não, não estava. Era paralaxe. Olhou, olhei para frente. Me vi refletido, mas ao mesmo tempo vi... ele. Do outro lado, do lado de fora. Havia uma distância (mínima, imperceptível) entre nós (eu e ele, ele e eu). Eu estava dentro, através do espelho, e ele, aqui, real, carne, osso e derivas, era o meu reflexo.
Era uma sala de espelhos, isso, com vários espelhos. Diferentes “eus” nos inúmeros, mas não infinitos, vidros. “Eus” com formatos diversos: pequeno, magro, pêra, ampulheta, todos, qualquer. Sou todos, a cada momento, ao mesmo tempo, sou um. Somos somados. Se afastando, me aproximando. Especulação, tentativa, suposição, previsão, aposta com o futuro, mirada que nunca ou pode se concretizar, mas só depois, no porvir – esta utopia, esse não-lugar. A cada momento, não sou apreendido em nenhum eu. Passo de um a outro, num movimento constante, que raramente se estabiliza. Só momentos fotografia, flash, um instante.
O intervalo entre um e outro, entre eu e eu e eu, é (pode ser) grande, e não é possível medi-lo. Somos muitos, muito diferentes entre si – uma constelação. Posso ser quase antagônico a mim mesmo, dependendo do ângulo que se olha, e do recorte que se faz. Identidade é apenas estimativa, conjectura.
O pensamento, um pensamento qualquer nasce como lava que brota no fundo do mar e vai criando novos relevos incógnitos maleáveis enquanto não se solidificam. A solidez é a luz que ultrapassa as nuvens pesadas e não pode ser aprisionada na palma das mãos em concha: já começa a sua próxima translação. Como uma câmera que entra em foco no momento exato, para logo em seguida sair, numa velocidade constantemente variável. Piscou, perdeu.
As imagens contrastantes, complementares, não se anulam, ao contrário. Funcionam como polos antagônicos que criam uma estática, jamais parada. Campos magnéticos. Imãs aproximados. Energia em potência. Pode explodir (será?), a qualquer instante. Ao menor desequilíbrio, caminha, escorrega, segue a gravidade para o lado da comporta aberta. Desequilíbrio é movimento. O lado mais forte, pesado, se direciona para o lado mais fraco, leve, como escotilhas que vão se abrindo para equalizar turbilhões de água. Dualidades como pares mitológicos. A tendência é o equilíbrio entre os extremos, mas nunca se o alcança, porque não há linha reta, isolada, sem influência externa. Vivemos já dentro de uma multidão de outros eus que nos atropelam, esbarram, pedem desculpas pelo tropeção. Temos que encontrar os nossos, montar um grupo, cuidar deles, dos nossos. Esquecer o universal, pensar pequeno, do tamanho do meu abraço. Democracia é diferença.
Em outras oportunidades, as forças juntam vetores numa mesma direção, a imagem fica mais visível, clara, com os segundos planos se afastando, como numa aproximação de câmera, ao mesmo tempo em que a lente faz zoom out. Há momentos, ainda, em que as imagens esmaecidas, fracas, criam sombras umas sobre as outras, reforçando determinados perfis e sentidos, ou mesmo cacoetes, difíceis de sumirem.
É possível, nessa sala de espelhos, jogar com os reflexos, criar imagens fantásticas. São brincadeiras, invenções: eu (nós) sem os pés no chão, dançando, mesmo sem música – levitando. Vários braços balançando, dando tchaus consecutivos, uns para os outros, para todos, para ninguém, em forma de cobras amestradas para sambar numa velocidade miudinha. São formas impossíveis, só criadas a partir de artefatos inventados, ilusões de ótica, diversões diversas. Arte, ficção, essas coisas.
Não estou preso, não vejo qualquer âncora. Tenho receio de me perder de mim mesmo e não me encontrar, não mais – mas já alguma vez? Ir, indo, sabe?, e não saber como voltar. Me ver, aos frangalhos, arrependido, num canto, fim de mundo, por que fui? O reflexo estraçalhado, em vários pedaços perfurocortantes, e a jugular ali, tão perto. Mas: sem dramas piscianos. Exorcizamos, temporariamente definitivo. Esquisito, eu sei, mas é isso: seguir, seguir, e acreditar – isso é tão difícil – acreditar que o chão vai estar embaixo do pé antes de andar. Duração. Nunca por segurança, mas coragem, não é? É precisamente imprecisa. Ainda: quero.
Diálogos animados entre as variadas vertentes. Algumas vezes, saio da completa ignorância para o domínio razoável da matéria – material. Não por milagre, elaborando. Carregamos ferramentas que abrem cofres reforçados. Aprendemos a fabricar esse instrumental complexo com lascas de pedras, tocos de galhos encontrados de relance, passando por nós no meio da brisa poluída, maré mareada. Com sorte, somos apadrinhados pela elite da periferia, a realeza da ralé, e ganhamos afagos sobre o couro quente. Se mais excluídos, temos que catar em lixo, buscar os descartes e criar sozinhos nossa própria baixa cultura. Chafurdar em bazares chineses de todas as nacionalidades, qualidade duvidosa e preços convidativos. Desenvolvemos apenas com tutoriais, fóruns desprotegidos, internet discada e broken english.
Só há imagens, nada além da superfície. Sem alma, só dúvidas, que vão batendo bola, entre uma perna e outra, na direção do gol. Às vezes alguma coisa repentinamente fica, se torna chave, se encaixa no segredo, na fechadura, roda, destranca, alavanca, catalisa, abre, e se torna solo, segura, apoia, horizonte, responde, funciona, atua em vários cenários, até que, até que... Não mais. E começa tudo de novo. Rodando, rodando. Rolando. Paciência, maior sabedoria. Somos apenas a antena que capta e codifica. Podemos apenas ficar abertos para sermos atravessados pelos acontecimentos. Nos apresentar, produzir o desejo, na falta. Nos encaixamos desencaixados, sem forma, ou formalismos. Manipular fios desencapados, mesmo na contracorrente, por sobrevivência, para respirar e não sufocar. Tem que, deve ser assim. Parar por muito tempo necrosa. M’entedio facilmente.
Eu sou do contra – rio.
(E eu – olho no olho – vejo você. Um reflexo, uma reflexão. Você em frente a mim, ao meu lado, debaixo de mim, sobre, em volta, dentro, você. Você é outro, outra, outrem mas há áreas de conjunto interseção, entre nós, eu – eu, todos – e você e seus eus. Não sombreamos, nossas fibras se entrelaçam a cada dobra, bailam para se encaixar, animais marinhos das profundezas em ritmo de cópulas. Somos casal, somos indivíduos divisíveis. Meu corpo procura o seu quando as máquinas neuróticas estão desligadas – as máquinas que tentam encontrar o que eu sou – o que é “eu”. Máquinas paranóicas fascistas, em vez de máquinas esquizóides libertárias. Quando elas se esquecem de si, quando elas andam, nós caminhamos sozinhos, e eu esbarro em você, porque você está sempre onde quero devir.)
Era uma sala de espelhos, isso, com vários espelhos. Diferentes “eus” nos inúmeros, mas não infinitos, vidros. “Eus” com formatos diversos: pequeno, magro, pêra, ampulheta, todos, qualquer. Sou todos, a cada momento, ao mesmo tempo, sou um. Somos somados. Se afastando, me aproximando. Especulação, tentativa, suposição, previsão, aposta com o futuro, mirada que nunca ou pode se concretizar, mas só depois, no porvir – esta utopia, esse não-lugar. A cada momento, não sou apreendido em nenhum eu. Passo de um a outro, num movimento constante, que raramente se estabiliza. Só momentos fotografia, flash, um instante.
O intervalo entre um e outro, entre eu e eu e eu, é (pode ser) grande, e não é possível medi-lo. Somos muitos, muito diferentes entre si – uma constelação. Posso ser quase antagônico a mim mesmo, dependendo do ângulo que se olha, e do recorte que se faz. Identidade é apenas estimativa, conjectura.
O pensamento, um pensamento qualquer nasce como lava que brota no fundo do mar e vai criando novos relevos incógnitos maleáveis enquanto não se solidificam. A solidez é a luz que ultrapassa as nuvens pesadas e não pode ser aprisionada na palma das mãos em concha: já começa a sua próxima translação. Como uma câmera que entra em foco no momento exato, para logo em seguida sair, numa velocidade constantemente variável. Piscou, perdeu.
As imagens contrastantes, complementares, não se anulam, ao contrário. Funcionam como polos antagônicos que criam uma estática, jamais parada. Campos magnéticos. Imãs aproximados. Energia em potência. Pode explodir (será?), a qualquer instante. Ao menor desequilíbrio, caminha, escorrega, segue a gravidade para o lado da comporta aberta. Desequilíbrio é movimento. O lado mais forte, pesado, se direciona para o lado mais fraco, leve, como escotilhas que vão se abrindo para equalizar turbilhões de água. Dualidades como pares mitológicos. A tendência é o equilíbrio entre os extremos, mas nunca se o alcança, porque não há linha reta, isolada, sem influência externa. Vivemos já dentro de uma multidão de outros eus que nos atropelam, esbarram, pedem desculpas pelo tropeção. Temos que encontrar os nossos, montar um grupo, cuidar deles, dos nossos. Esquecer o universal, pensar pequeno, do tamanho do meu abraço. Democracia é diferença.
Em outras oportunidades, as forças juntam vetores numa mesma direção, a imagem fica mais visível, clara, com os segundos planos se afastando, como numa aproximação de câmera, ao mesmo tempo em que a lente faz zoom out. Há momentos, ainda, em que as imagens esmaecidas, fracas, criam sombras umas sobre as outras, reforçando determinados perfis e sentidos, ou mesmo cacoetes, difíceis de sumirem.
É possível, nessa sala de espelhos, jogar com os reflexos, criar imagens fantásticas. São brincadeiras, invenções: eu (nós) sem os pés no chão, dançando, mesmo sem música – levitando. Vários braços balançando, dando tchaus consecutivos, uns para os outros, para todos, para ninguém, em forma de cobras amestradas para sambar numa velocidade miudinha. São formas impossíveis, só criadas a partir de artefatos inventados, ilusões de ótica, diversões diversas. Arte, ficção, essas coisas.
Não estou preso, não vejo qualquer âncora. Tenho receio de me perder de mim mesmo e não me encontrar, não mais – mas já alguma vez? Ir, indo, sabe?, e não saber como voltar. Me ver, aos frangalhos, arrependido, num canto, fim de mundo, por que fui? O reflexo estraçalhado, em vários pedaços perfurocortantes, e a jugular ali, tão perto. Mas: sem dramas piscianos. Exorcizamos, temporariamente definitivo. Esquisito, eu sei, mas é isso: seguir, seguir, e acreditar – isso é tão difícil – acreditar que o chão vai estar embaixo do pé antes de andar. Duração. Nunca por segurança, mas coragem, não é? É precisamente imprecisa. Ainda: quero.
Diálogos animados entre as variadas vertentes. Algumas vezes, saio da completa ignorância para o domínio razoável da matéria – material. Não por milagre, elaborando. Carregamos ferramentas que abrem cofres reforçados. Aprendemos a fabricar esse instrumental complexo com lascas de pedras, tocos de galhos encontrados de relance, passando por nós no meio da brisa poluída, maré mareada. Com sorte, somos apadrinhados pela elite da periferia, a realeza da ralé, e ganhamos afagos sobre o couro quente. Se mais excluídos, temos que catar em lixo, buscar os descartes e criar sozinhos nossa própria baixa cultura. Chafurdar em bazares chineses de todas as nacionalidades, qualidade duvidosa e preços convidativos. Desenvolvemos apenas com tutoriais, fóruns desprotegidos, internet discada e broken english.
Só há imagens, nada além da superfície. Sem alma, só dúvidas, que vão batendo bola, entre uma perna e outra, na direção do gol. Às vezes alguma coisa repentinamente fica, se torna chave, se encaixa no segredo, na fechadura, roda, destranca, alavanca, catalisa, abre, e se torna solo, segura, apoia, horizonte, responde, funciona, atua em vários cenários, até que, até que... Não mais. E começa tudo de novo. Rodando, rodando. Rolando. Paciência, maior sabedoria. Somos apenas a antena que capta e codifica. Podemos apenas ficar abertos para sermos atravessados pelos acontecimentos. Nos apresentar, produzir o desejo, na falta. Nos encaixamos desencaixados, sem forma, ou formalismos. Manipular fios desencapados, mesmo na contracorrente, por sobrevivência, para respirar e não sufocar. Tem que, deve ser assim. Parar por muito tempo necrosa. M’entedio facilmente.
Eu sou do contra – rio.
(E eu – olho no olho – vejo você. Um reflexo, uma reflexão. Você em frente a mim, ao meu lado, debaixo de mim, sobre, em volta, dentro, você. Você é outro, outra, outrem mas há áreas de conjunto interseção, entre nós, eu – eu, todos – e você e seus eus. Não sombreamos, nossas fibras se entrelaçam a cada dobra, bailam para se encaixar, animais marinhos das profundezas em ritmo de cópulas. Somos casal, somos indivíduos divisíveis. Meu corpo procura o seu quando as máquinas neuróticas estão desligadas – as máquinas que tentam encontrar o que eu sou – o que é “eu”. Máquinas paranóicas fascistas, em vez de máquinas esquizóides libertárias. Quando elas se esquecem de si, quando elas andam, nós caminhamos sozinhos, e eu esbarro em você, porque você está sempre onde quero devir.)
Para Alyne