quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Futurologia

Podemos brincar (ainda é autorizado) com os cenários que se desenham, a partir dessa última pesquisa Ibope, e imaginar o futuro, após o segundo turno:
cenários 1 e 2 são meio sem graça, mas, infelizmente, os mais prováveis:
no 1, Haddad vence, isolado, com dificuldades de fazer alianças. tomamos um golpe, clássico, raiz, para ninguém reclamar. (e a gente aguenta, verga e aguenta, que a nossa história foi escrita por um negro pobre e sabido com a pena da melancolia, sim, mas com a tinta da galhofa.)
no 2, Bolsonaro (anagrama de Solnorabo) vence e isso já é o golpe; se não rolar diretamente, eles já prometeram o autogolpe, porque não vão dar chance para outro dar golpe, já que golpe está na moda desde... E aí, é aquilo: alguns anos sem votar, mais violência, principalmente para os mais pobres, perseguição a todo mundo que é de esquerda, que é gay, negro, mulher. E se você for tudo isso ao mesmo tempo, amigx... sal grosso. E estoque comida. Enfim, aquele pacote completo. Mas, bem, não deve sair barato - ninguém vai querer perder direitos conquistados.
Já a partir do 3, a coisa fica mais divertida (já o coiso nunca fica):

no 3, Haddad recebe apoio de Alckmin, do PSDB, da Globo, da direita menos antidemocrática. Claro, ele precisa perder alguns anéis, para manter, pelo menos, nove dedos. Isso quer dizer: política econômica de austeridade, vender algumas estatais, cobrar algumas mensalidades de universidades, apertar o torniquete nos gastos. Desagrada o andar de baixo, para tentar agradar o andar de cima. Acho que podemos chamar essa versão de Dilma 3.0, a volta dos que não foram - mas deveriam ter ido.

no 4, Haddad recebe apoio de PSDB, da Globo etc. etc., mas não combina programas, tipo Mário Covas abraçando Marta Suplicy (quando ela era ainda de esquerda) contra o mal maior, naquela época encarnado em Paulo Maluf. (Aliás, o então vice de Covas se chamava Geraldo. Coincidência?) Aí eu acordei e lembrei que isso aconteceu em 2000, antes de toda a confusão do século XXI.
no 5, Alckmin, PSDB, Globo e toda a direita vai ainda mais para o dark side of the force, apoiando o Darth Vader da vez, e aí é uma hecatombe, nível fim do "Império contra ataca". A vantagem: é o fim do PSDB e a Globo se despedaça, no médio prazo. A desvantagem: vamos sentir saudades do PSDB e da Globo.
no 6, Boulos ganha e faz a revolução, com distribuição de renda, justiça e igualdade; com uma política de valorização dos diversos mundos que compõem o Brasil, pensando tanto nas cidades, como nas florestas ou no campo; taxando os ricos e aliviando os pobres, e libertando a classe média de todos os estigmas; incentivando produções culturais regionais, e os artistas independentes; dando ainda mais autonomia para as universidades, e recursos para as escolas de todos o país; priorizando os pequenos agricultores, os pequenos empresários, as pequenas iniciativas, esquecendo esse blablablá de país grande, pensando pequeno, no menor; criando convergências entre os diferentes; acabando com os preconceitos entranhados nas almas por quase 500 anos num literal passe de mágica. É... Parece verídico esse billete.

no 7, Bolsonero se elege e aí percebemos que era tudo golpe, no golpe: ele, na verdade, foi bancado por George Soros, é um agente infiltrado do Fórum de São Paulo, dá um golpe, outro golpe, só para não perder o costume, e aprofunda o nosso processo de venezuelização, aumentando o número de ministros no STF, colocando o Frota para ser ministro e ferrar [cof, cof] a cultura, o Paulo Guedes diz que vai continuar a política de Temer, que é em direção ao Estado Mínimo, mas o Estado Mínimo da anarquia e... Tá bom, tá bom. Vou parar.
ps. algum outro cenário em vista por aí?

segunda-feira, 17 de setembro de 2018

Bolsonaro é fascista

Talvez esse texto-desabafo não sirva para mais da metade da minha timeline, mas como ainda há aquela minoria barulhenta que apoia o candidato fascistóide e não admite que ele seja fascista, pensei em ligar os pontos.

Claro que isso não garante absolutamente nada - nem que eles vão ler. O tipo de diálogo [se é que podemos chamar as brigas de facebook assim] que eu tenho visto recentemente é geralmente igual: de um lado, quem apoia o absurdo Bolsonero vociferando palavras de ordem e xingamentos, sem se importar com o que lhes é dito; do outro, eleitores dos mais diferentes espectros políticos pacientemente [e perdendo a paciência] tentando mostrar o óbvio: o quanto o ex-capitão é antidemocrático, tem apenas propostas contra o povo mais marginalizado e periférico, e só quer aumentar a violência num país já flagelado - além de ser um corrupto que recebe dinheiro da JBS em campanha e desvia verba de gabinete em benefício próprio.

Mas esse texto também é um desabafo, e serve para lembrar os partidários da democracia que, apesar de barulhentos, os apoiadores do Bolsonaro são comparativamente poucos e, claro, têm todo o direito de expor suas posições e, inclusive, votar nele. O texto não quer convencer ninguém a mudar de posição: apenas dar mais elementos para não dizer que foram enganados.

Se querem votar num candidato elitista (sim, Bolsonaro é elitista), que persegue a população mais pobre e carente, que disse em entrevista para o JN quer entrar com uma metralhadora .50 em favelas, sem se importar com a imensa maioria de moradores que vive lá por falta de opção, que quer aumentar ainda mais o número de homicídios num país que já é o campeão mundial nesse assunto, que entende ainda menos de economia, de gestão, de administração pública e terceiriza todas as suas decisões para economistas que querem repetir e aprofundar o plano do atual presidente Temer, ou para militares que querem manter seus privilégios, tudo bem. É direito de todo mundo fazer o que quiser com o voto.

Também não quero dizer que todas as pessoas que votam no Bolsonaro são fascistas todo o tempo [sim, algumas pessoas são]. Muita gente apenas está assustada com o caos institucional que o país mergulhou nos últimos anos, com a espiral de violência que parece grassar nos centros urbanos em todo o país, na esculhambação em geral da política, e querem apenas um nome que parece ser a exata antítese desse movimento. Ou seja, estão acreditando, esperançosos, numa solução rápida, instantânea, mágica. Mas não: já está bem claro, com as constantes declarações de sua incompetência, que Bolsonaro vai apenas afundar, ainda mais, o país. E uma das razões é simples: Bolsonaro é fascista.

O fascismo é um movimento político de extrema-direita nascido de início e meio do século XX, prioritariamente na Europa, que prezava pelo nacionalismo profundo, a militarização acima de outras formas de socialização e a perseguição a grupos periféricos e marginalizados [como judeus, gays, comunistas...]. Um grupo que se acreditava "superior", "puro", "limpo", "melhor" que os demais componentes das sociedades. Um tipo de comportamento que só valoriza o reflexo no espelho, e qualquer tipo diferente é rechaçado com violência - e até a morte, em escalas industriais, como foi o caso do Shoá (mais conhecido como Holocausto judeu). Duas das suas vertentes mais conhecidas dessa ideologia de extrema-direita foram o fascismo propriamente dito de Mussolini, na Itália, e o nazismo alemão, de Hitler.

Há diversos estudos de gente que passou a vida se debruçando sobre o assunto. Mas, pela praticidade, vamos pegar uma lista de características formulada pelo pensador, escritor, professor Umberto Eco. Ele citou, em um texto chamado Ur-fascismo ou o fascismo persistente, para a New York Review of Books, em 1995, 14 características que identificariam práticas fascistas. Mesmo que qualquer definição mais esquemática assim seja falha, porque não abarca todas as possibilidades de um ente ser na sua totalidade, é um ótimo passo de entrada na questão: as aproximações são bastante precisas. A elas:

1 - culto da tradição.
Bolsonaro e seus asseclas inventam um passado em que o Brasil era mais organizado na ditadura - e se apegam a ele. Não importa que os fatos contradigam e mostrem que a ditadura foi um dos períodos mais corruptos e violentos em que vivemos.

2 - rechaço do modernismo.
Uma consequência óbvia do ponto 1, Bolsonaro e seus asseclas pensam que as modificações que o mundo sofreu nos últimos anos só pioraram as coisas. São contra as novas formas de relacionamentos sociais-afetivos, os novos enlaces amorosos, os novos casais e casamentos. Enfim, são contra gays, lésbicas e qualquer maneira de se relacionar "diferente" (esse caso aqui é um prato cheio para psicanalistas).

3 - culto da ação pela ação.
Na batida metafísica entre ação e pensamento, o primeiro binômio despenca para um dos lados: não pensam, agem. Não conversam, gritam. Não debatem, lacram. Não escrevem, publicam memes.

4 - rechaço do pensamento crítico.
O circuito de raciocínio é curtíssimo e uma prova disso é a maneira como os seus apoiadores se comunicam apenas por slogans, gritando repetidamente palavras de ordem a favor do seu líder e contra quaisquer dos seus oponentes.

5 - medo ao diferente.
Qualquer outra forma de se comportar, de pensar, de ser é uma ameaça. O mundo deve ser um reflexo do que eu sou [do que penso e imagino que sou] e qualquer passo além disso é já um problema, que deve ser combatido.

6 - apelo às classes médias frustradas.
Os fascismos, apesar de atingir componentes de todas as classes e tipos de pessoas, são fenômenos prioritariamente de classes médias frustradas com a perda de privilégios [que são chamados de direitos] com a ascensão de outros grupos. No caso de Bolsonaro e cia., o que é a reclamação em direção aos grupos que defendem a população negra, como exemplo entre outros, como uma espécie de vitimismo exagerado?

7 - nacionalismo e xenofobia.
"Brasil acima de tudo...", diz o slogan de Bolsonaro. E o que dizer da reação contra os venezuelanos no norte do país? E contra os "estrangeiros" do nosso próprio país, aqueles que não participam do processo de consumo, como os pobres moradores de favelas?

8 - Inveja e medo do "inimigo".
É uma fixação extrema a luta contra o "comunismo", o "PT" e o perigo vermelho no país - sem considerar que o governo PT teve como diretor do Banco Central o banqueiro e candidato do [P]MDB, Henrique Meirelles.

9 - Princípio de guerra permanente.
As constantes declarações contra pobres e a defesa de um aumento do poder de fogo pelas forças de segurança são uma demonstração que Bolsonaro e cia. não querem acabar com a violência urbana, mas aumentar a violência. Ele quer mais tiroteios, as balas perdidas, os homicídios, não diminuí-los.

10 - Elitismo e desprezo pelos fracos
Bolsonaro já disse que teve quatro filhos mas na quinta vez "fraquejou" e veio uma mulher. E diz que direitos humanos - ou seja, os direitos que todos os humanos têm, ou deveriam ter, acesso - é "mimimi", esse neologismo para uma reclamação exagerada e sem fundamento.

11 - Heroísmo.
Para os apoiadores, Bolsonaro seria um "mito", um "messias", aquele que vai solucionar os problemas nacionais com o estalar dos dedos.

12 - Transferência da vontade de poder a questões sexuais.
O machismo, o ódio às mulheres é uma das maneiras de Bolsonaro e seus apoiadores praticarem o ódio e a violência cotidianamente.

13 - Populismo qualitativo.
O povo, para Bolsonaro, é visto como uma instituição monolítica: todos os brasileiros são [ou deveriam ser] iguais. Não importam as diferenças, de pensamento, de comportamento, de gostos e preferências. As arestas que ficarem de fora da fôrma serão cortadas, sem qualquer tipo de pena, que isso é mimimi.

14 - Novilíngua.
Você escreve um texto contra Bolsonaro e o seguidor dele grita de volta "mito". Você tenta perguntar por que o ex-militar é um mito e o fiel responde: "é melhor já ir se acostumando". Falta interpretação de texto, por preguiça ou cinismo - ou os dois.

Por fim, Umberto Eco [no texto que pode ser lido na íntegra em português aqui], explica que
Devemos ficar atentos para que o sentido dessas palavras [“liberdade”, “ditadura”] não seja esquecido de novo. O Ur-Fascismo ainda está ao nosso redor, às vezes em trajes civis. Seria muito confortável para nós se alguém surgisse na boca de cena do mundo para dizer: “Quero reabrir Auschwitz, quero que os camisas-negras desfilem outra vez pelas praças italianas!”. Ai de mim, a vida não é fácil assim! O Ur-Fascismo pode voltar sob as vestes mais inocentes. Nosso dever é desmascará-lo e apontar o indicador para cada uma de suas novas formas — a cada dia, em cada lugar do mundo.
Chegou a nossa vez de abrir os nossos olhos.

quinta-feira, 13 de setembro de 2018

Churchill, o fascismo e as alianças

Com a presença constante de um fascistóide nas nossas análises de conjuntura - essa expressão da moda - de botequim (eu diria que mais parecem com mesas redonda de futebol, tipo "falha de cobertura") e com a sugestão de voto nele num eventual segundo turno por parte de uma galera que se diz "anti-PT", como principal vetor de de vontade política, me lembrei de uma história boba, nada demais, sobre um dos ícones da direita, senão de todos os tempos, pelo menos do século XX: Winston Churchill.

Ninguém, em sã consciência, diria que Churchill era de esquerda (hoje em dia, em tempos de "nazismo é de esquerda", temos que fazer essa ressalva). Membro do partido conservador inglês, militar, a favor de guerras, colonialista, monarquista, nacionalista, violento anti-comunista e anti-socialista, anti, enfim, esquerdista, defensor da Inglaterra acima de todas as outras nações, responsável pela morte de pelo menos 3 milhões de indianos em 1943, por conta do desvio de arroz para abastecer a nação europeia no meio da Segunda Guerra (entre outros atos controversos), Churchill facilmente poderia ser o ídolo de vários daqueles que querem acabar com a "confusão" que está "aí".

Churchill é, ainda, de uma direita vistosa, elegante, daqueles que dá até para apresentar para a mãe. Excepcional frasista, imenso orador, com um humor que é quase a síntese da verve inglesa, escritor de mão cheia, grande historiador, chegou a ser até laureado com Prêmio Nobel - de literatura (em 1953). Isso mesmo, de literatura, junto com vários do grandes escritores, filósofos e poetas do século XX, em vez de ganhar um prêmio na sua "categoria", como o Nobel da paz. Tudo o que FHC queria ter sido quando crescesse, mas não teve metade do talento.

Foi ele o ungido pelo Parlamento inglês, assim que Hitler invadiu a Polônia, para assumir o cargo de primeiro-ministro. Principalmente porque, mesmo já considerado um político ultrapassado, no início da década de 1930, ele queria desde o início das movimentações nazistas na Alemanha, decretar guerra contra os quase-vizinhos. Enquanto a ilha vivia o luto e o trauma pós-Primeira Guerra, que esticou um lençol de pacifismo sobre os ingleses, evitando qualquer pensamento mais belicoso, Churchill via em Hitler o pior que o Ocidente poderia produzir como líder.

A Alemanha invade a Polônia, o primeiro-ministro Neville Chamberlain, outro político do partido Conservador, que defendia uma neutralidade da ilha, se vê obrigado a sair (colaborou o fato, claro, de ele estar muito doente - morreu no mesmo ano; mas enfim), e Churchill, a única voz que nunca se calou, que era vista como aquele chato que repete sempre as mesmas ladainhas, se tornou, de uma hora para outra, o principal nome para assumir o governo inglês. O resto é História.

Há, contudo, um detalhe curioso nessas movimentações.

Em 1941, Hitler invade a a comunista, socialista, esquerdista União Soviética, de Josef Stalin - outro monstro do século XX. O que o conservador, tradicional, pela família, os bons costumes, e anti-esquerdista Churchill faz? Com a palavra, o próprio:
Ninguém foi um oponente mais consistente ao Comunismo nos últimos 25 anos. Eu não vou desdizer nenhuma palavra que eu falei sobre isso. Mas isso tudo desaparece ante o espetáculo que está agora se desdobrando. O passado, com os seus crimes, suas loucuras, suas tragédias, desaparecem... O perigo russo é portanto o nosso perigo, e o perigo dos Estados Unidos igualmente, assim como a causa de qualquer lutador russo por terra e casa é a causa de homens livres e povos livres em todo os quarteirões do globo.
Em inglês é ainda mais bonito:
No one has been a more consistent opponent of Communism for the last twenty-five years. I will unsay no word I have spoken about it. But all this fades away before the spectacle which is now unfolding. The past, with its crimes, its follies, its tragedies, flashes away.… The Russian danger is therefore our danger, and the danger of the United States, just as the cause of any Russian fighting for earth and house is the cause of free men and free peoples in every quarter of the globe.
No dia anterior à invasão, Churchill já tinha demonstrado a sua inclinação contra Hitler, não importa quem, em uma das suas frases mais famosas e repetidas: "If Hitler invaded Hell, I would make at least a favourable reference to the devil in the House of Commons" (Se Hitler invadir o inferno, eu faria ao menos uma declaração favorável ao diabo no Parlamento).

Há momentos em que mesmo o mais conservador entre os conservadores percebe que entre o "perigo vermelho" e o fascismo, não há dúvida sobre qual lado devemos tomar. Há momentos extremos em que ou se é nazista ou se é judeu - não há terceira alternativa.

sábado, 8 de setembro de 2018

O fenômeno Bolsonaro e a iconoclastia dos tempos

O fenômeno Bolsonaro é, no mínimo, bastante significativo do nosso momento histórico. Surfa numa onda explosivamente iconoclasta, que quer acabar com tudo o que está aí, sem considerar que o deputado federal em Brasília há sete legislaturas é parte integrante desse "tudo-que-está-aí" - parte envolvida do chifre ao rabo.

A vontade desses fiéis seguidores é tacar fogo, destruir os vestígios, acabar com todo um passado e torná-lo cinza. Um procedimento que, por si só, não seria um problema: a História é constituída como a soma de diversos vetores de forças que são influenciados a cada instante pelas vontades coletivas, e coletivamente individuais. Mas é um arranjo por demais arriscado. Anda-se sobre o fio fino, e é necessário equilíbrio.

A destruição de ícones já foi explorada de outras maneiras, agora e aqui, e em outros momentos e longitudes. Penso primeiramente em Nietzsche, o filósofo do martelo, e o seu crepúsculo dos ídolos, com a sugestão de acabar com a profunda influência do cristianismo no Ocidente. Ou mesmo no sistema filosófico-religioso do Vedas, em que Shiva, um dos deuses da trimúrti, a santíssima trindade hinduísta, era o responsável pela destruição. Ou no Exu, das tradições afrodescendentes, que abre os caminhos, ou mesmo na sua influência mais direta: a das igrejas neopentecostais que vendem propostas de "desamarrar" o caminho do seguidor.

O que todos esses formatos têm em comum é a tentativa de, após a destruição, buscar uma reconstrução - seja da sociedade, seja do indivíduo [essa ficção] - em outros moldes. É necessário que um mundo "morra", passemos pelo luto, e então outro possa renascer. Os bolsominions, não. Parecem só querer o caos, o nada, o vazio completo. Um niilismo passivo e triste, ancorado numa busca eufórica pela celebração do nada, da ausência completa.

Claro, confrontados com algum tipo de dúvida, eles sugerem abstratamente refundar uma nova história, baseada num passado inventado, tentando espelhar uma identidade [o maior erro do Estado] almejada, de um homem rústico, macho, duro - afável apenas com os seus próximos mais próximos. É um personagem forjado numa "maioria" como ideal - e, sabemos, maiorias não existem.

Essa trajetória sugerida é completamente inventada e sem qualquer apoio na realidade factual. Um delírio, em outras palavras. Prova disso é pensar que os principais pilares de sustentação do Bolsonaro são o combate à corrupção [mesmo que Bolsonaro desvie verba de gabinete para assessores fantasmas]; o fim da chamada impunidade, por um ideal de segurança [mesmo com um discurso frontalmente contra pobres e segmentos periféricos da sociedade em geral]; e, por fim, e talvez o mais representativo desse niilismo passivo: a lacração. Bolsonaro falaria "verdades", sem se importar com o interlocutor [mesmo que essas "verdades" não sejam, enfim, verdades - como quando invariavelmente repete boatos tais como o do "kit gay"].

Por isso que foi tão impressionante o "confronto" com Bonner - quanto maior se sente e se coloca o adversário, melhor fica o meme do dia seguinte. Por isso, também, imagino, que Ciro tomou o caminho do não-confronto. Não há como, jogando o mesmo jogo dele, derrubar um personagem vivendo descolado da realidade. Por isso, ainda, que a "lacrada" de Marina sobre Bolsonaro foi tão celebrada - era uma outra forma de atacá-lo. Contra ele, Ciro deve diminuir o tom, Marina aumentar.

A transformação exaltada de um deputado medíocre em um messias dentro de um contexto em que o principal alvo é o caos, torna o próprio político um alvo da sanha criada pela sua turba. Bem diferentemente das acusações contra Lula, por exemplo. Quando o ex-presidente fala em "nós x eles", ele não está incentivando a violência, mas mostrando o abismo social bizarro existente. Ele está tirando o véu de sobre as violências cotidianas que o andar de cima já estala e sempre estalou nas costas daqueles da base da pirâmide socioeconômica. Por isso, qualquer tipo de comparação com Lula, ou a tentativa de dizer que estamos no meio de um redemoinho social, é, na melhor das intenções, a junção de pontas de cabos diferentes.

Sem querer culpar a própria vítima do ataque pelo próprio ataque [a vítima tem, no mínimo, a razão de querer continuar viva], não é possível almejar acabar com os ícones e, ao mesmo tempo, se tornar um. Não é possível usar tão e somente a linguagem da violência e querer escapar dela. Não cabe dar de ombros para atentados anteriores contra candidatos, para mortes de colegas deputadas, ignorar tragédias, quase comemorar a destruição de passados indesejados (por ele), propor fuzilamentos e limpezas étnicas, e querer ainda assim passar incólume dos ódios gerados por esses ódios. O alvo é colocado de volta bem no meio da barriga.

Que os atos dessa semana nos sirvam para minorar nossos discursos.

ps. não podemos mesmo reclamar de tédio em nossas campanhas políticas.

quarta-feira, 5 de setembro de 2018

Sampa

São Paulo parece o retrato do fim do capitalismo.

hotel chique no centro

Rua Ipiranga, quase esquina com São João

quarto com banheira e os caralho

do lado tem um Mcdonald

do outro, um habib

ao lado do habib, aquelas cabines de vídeo pornô particulares

em seguida, uma lanchonete com um sanduíche de pernil excelente e suco de cupuaçu, cujo banheiro é frequentado por gente que cheira de tarde

um garçom é boliviano
os demais são paulistas filhos de nordestinos

dobrando a esquina, outros restaurantes populares

sendo um do Senegal

em frente, uma bandeira do Peru

o céu, cinza
a garoa frequente
o ambiente degradado

como se o capitalismo tivesse dado "certo" aqui

o capitalismo no seu último estágio - em que todos são zumbis, o céu é cinza, a chuva ácida, as comidas são bem servidas, e tem dinheiro para todo mundo

eu to numa relação tão em desarmonia com o Rio

que até isso, até esse encontro, está me fascinando