sábado, 23 de janeiro de 2021

A prisão de um amigo

Eu nunca fui um jornalista-jornalista, desses que têm curiosidade instantânea com os assuntos, portam no bolso uma coleção de duas ou três perguntas para qualquer entrevistado, sabem num lance de olhos onde está a notícia. Sou lento demais, pacato demais, introvertido demais. Mas já andei com jornalistas que possuíam todas essas qualidades e mais algumas mais. Um deles é o Andrei, Andrei Aliaksandrau, seu nome todo, mas nunca consegui lembrar desse sobrenome dele, assim, facilmente. Pudera.

Ele é da Belarus, e quando eu lhe contei o que "bela" quer dizer em português, ele ficou muito feliz: é um sujeito absolutamente apaixonado pelo próprio país. Ou pelo menos por uma noção do próprio país que não condiz com a realidade atual.

Desde o fim da União Soviética, a Belarus [antigamente era chamada de Bielorrússia] tem o mesmo governante: Alexander Lukashenko. O sujeito é reeleito, indefinidamente, em pleitos que dão inveja ao país vizinho, a Rússia. Na verdade, não dão inveja. Segundo consta, Lukashenko é uma marionete do governo Putin e de toda a máfia que ele representa. Os interesses russos são a prioridade para o presidente bielorrusso. 

Nesses 30 anos que se passaram desde a queda da URSS, os fracos e incipientes sinais de democracia da Belarus foram se desgastando a ponto de, na última eleição, já não parecer que precisavam disfarçar mais nada. Os dissidentes do regime de Lukashenko foram presos a mancheia. Andrei rodou dia 12 de janeiro, junto com a companheira dele, Irina Zlobina.

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Eu o conheci em Londres, quando minha ex-mulher estava fazendo o mestrado dela. Os dois eram da mesma turma. Ele era o mais velho do grupo, mais velho, inclusive, que a gente, que já destoava de todos os demais dali, todos mal completados os 20 anos, como é natural nas turmas dos mestrados na Europa. Seu jeito de organizar as coisas, sua cabeça de liderança, e até mesmo o fato de ser o mais sênior da galera, lhe rendeu um apelido curioso: mr. president. Bem colocado.

Nunca vi ninguém beber tanto quanto ele. Numa oportunidade tentamos fazer um pub crawling por 30 pubs - e ele foi o único a beber um pint em cada. Ao fim estava wasted, como dizem por lá.

Era também fascinado por futebol. E, por uma dessas coincidências do mundo, houve um Brasil x Belarus nas Olimpíadas de Londres, em 2012, em Manchester. Fomos junto com o grupo dele, cheio de bielorrussos. Eu notei, de cara, um detalhe, que não era pequeno. Ele, e todos os amigos, estavam com uma bandeira branca com uma cruz vermelha, diferente daquela que eu considerava como a "verdadeira", predominantemente verde e vermelha. 

Ele me disse que a bandeira rubro-esverdeada era mais uma das imposições de Lukashenko; por isso eles usavam a anterior, que tinha sido apagada na tomada de poder pelo ditador. Era, aliás, assim que ele chamava Lukashenko. Insistia sempre: era a última ditadura da Europa. Os fatos, infelizmente, sustentam a afirmação dele.

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Quando voltei para o Brasil, fim de 2012, ele me perguntou se eu não queria cobrir alguns temas para a ONG em que ele trabalhava, a Index for censorship. Claro que eu aceitei: fiz dois ou três textos para lá, inclusive um sobre junho de 2013, se eu não me engano [já faz tanto tempo...]. Andrei tinha a liberdade de expressão como um dos seus temas fundamentais. Havia crescido ainda dentro de uma ditadura [os pais tinham trabalhado para a KGB como farmacêuticos, e ainda guardavam a carteirinha para comprovar] e sabia o quanto era difícil ter voz própria em lugares onde a democracia não é respeitada. Não adiantou muito.

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Um amigo dele mandou mensagem ontem avisando da prisão do Andrei e fiquei pensando seriamente nisso. Me pegou muito errado, num momento que quase tudo entra atravessado. Na época em que convivemos, o Brasil era o Cristo Redentor subindo aos céus da revista Economist. Éramos a próxima sede das Olimpíadas. Estávamos confiantes e tínhamos futuro. Brasil e Belarus pareciam tão distantes e diferentes...

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O amigo contou que quando a Rússia invadiu a Crimeia, Andrei largou o emprego em Londres e foi fazer um documentário sobre a guerra, in loco. Depois, recebeu uma proposta de assumir a única agência de notícias bielorrussa independente, após o fundador ter desaparecido em circunstâncias misteriosas. Era onde ele estava trabalhando atualmente.

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Há muito tempo nós não nos falávamos. Coisas da vida. Mas sempre que apareciam imagens da Belarus, geralmente manifestantes sendo presos, agredidos, encurralados, em paisagens frias, com neve no chão, prédios quadrados e cinzas, horizontes vazios, gritos de desespero, eu olhava para ver se não era Andrei sendo levado. Era um país tão distante que se transformou em próximo por conta do Andrei, por conta das circunstâncias da vida.

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Apesar de todas as tentativas do atual ocupante da presidência brasileira, ainda não somos uma ditadura, no sentido mais formal do termo. Perdemos muitas garantias democráticas, percebemos as nossas instituições republicanas derretendo dia a dia, e vemos muita gente imaginando que é melhor uma cleptocracia, desde que eles possam continuar a lucrar, que viver em um governo que tente, pela primeira vez na história, pensar em governar pensando no outro polo da sociedade. 

Muitas vezes eu não entendia todo o ódio que Andrei sentia pelo ditador que manda na Belarus. Achava que ele falava demais sobre política, que havia outras coisas para prestar atenção no mundo. Não percebia como importante a sua preocupação com a democracia - talvez por me enganar que vivia em uma plena. Agora, infelizmente, eu entendo. 

Qualquer escorregão nosso, na nossa atual situação, e vamos ter outros amigos presos. Agora, com o Cristo Redentor de fundo.


Andrei, vestido com as cores da bandeira que ele defende, e eu, 
antes do jogo em 2012