segunda-feira, 13 de setembro de 2021

Nietzsche entre o sensualismo e o platonismo

Começa a despontar em cinco, seis cérebros, talvez, a ideia de que também a física é apenas uma interpretação e disposição do mundo! (nisso nos acompanhando, permitam lembrar!) e não uma explicação do mundo: porém, na medida em que se apoia na crença nos sentidos, ela passa, e deverá passar durante muito tempo, por algo mais, isto é, por explicação. Ela tem olhos e dedos a seu favor, tem a evidência ocular e a tangibilidade: sobre uma época de gosto fundamentalmente plebeu isto exerce um efeito fascinante, persuasivo, convincente — afinal, segue instintivamente o cânon de verdade do sensualismo eternamente popular. O que é claro, o que “esclarece”? Primeiro, aquilo que pode ser visto e tocado — todo problema tem que ser levado até esse ponto. Inversamente, na oposição à evidência dos sentidos estava o encanto do modo platônico de pensar, que era um modo nobre de pensar — entre homens, talvez, que desfrutavam de sentidos até mais fortes e imperiosos do que os de nossos contemporâneos, mas que sabiam ver um triunfo mais elevado em permanecer mestres desses sentidos: e isto mediante pálidas, cinzentas, frias redes de conceitos, que jogavam sobre o variegado torvelinho dos sentidos — a turba dos sentidos, como disse Platão. Nessa interpretação e superação do mundo à maneira de Platão havia uma espécie de gozo distinto daquele que nos oferecem os físicos de hoje, ou os darwinistas e antiteleólogos entre os que trabalham na fisiologia, com seu princípio da “força mínima” e da estupidez máxima, “Onde o homem nada encontra para ver e pegar, nada tem para fazer” — este é sem dúvida um imperativo diferente do platônico, mas para uma raça dura e laboriosa de futuros mecânicos e construtores de pontes, que não terá senão trabalho grosseiro a executar, pode bem ser o imperativo justo. 

NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. Tradução Paulo Cesar de Souza. Companhia das Letras, São Paulo: 1992. Cap. 1 §14.

domingo, 5 de setembro de 2021

"Memórias do subsolo", trecho

 — Mas não é uma vergonha, não é uma humilhação?! — talvez me digais, balançando com desdém a cabeça. — Está ansiando pela vida, mas resolve os problemas da existência com um emaranhado lógico. E como são importunas, como são insolentes as suas saídas, e, ao mesmo tempo, como o senhor tem medo! Afirma absurdos e se satisfaz com eles; diz insolências, mas sempre se assusta com elas e pede desculpas. Assegura não temer nada e, ao mesmo tempo, busca o nosso aplauso. Garante estar rangendo os dentes e, simultaneamente, graceja, para nos fazer rir. Sabe que os seus gracejos não têm espírito, mas, ao que parece, está muito satisfeito com a sua qualidade literária. É possível que tenha sofrido realmente; todavia, não respeita um pouco sequer o seu próprio sofrimento. No senhor há verdade, mas não há pureza; por motivo da mais mesquinha vaidade, traz a sua verdade à mostra, conduzindo-a para a ignomínia, para a feira... Realmente, quer dizer algo, no entanto, por temor, oculta a sua palavra derradeira, porque não tem suficiente decisão para dizê-la, mas apenas uma assustada impertinência. Vangloria-se da sua consciência, mas, na realidade, apenas vacila, pois, embora o seu cérebro funcione, o seu coração está obscurecido pela perversão, e, sem um coração puro, não pode haver consciência plena, correta. E que capacidade de importunar, que insistência, como careteia! Mentira, mentira, mentira!

Memórias do subsolo, cap. XI, Dostoievski.