Quando o escritor chileno Benjamin Labatut, durante sua apresentação na Flip que acabou de acabar, fez um comentário esnobando a literatura, a primeira reação de todas as pessoas foi revirar os olhos. Parecia apenas um personagem criado para se mostrar superior a essas banalidades mundanas que fazem com que pessoas se desloquem para uma cidade para assistir aos seus escritores e escritoras favoritas, enquanto ele enxergaria mais longe. O problema era mais o tom, a (im)postura, o ar blasé -- não necessariamente o que ele falou. De alguma forma estranha, ele tocou numa ferida que continua a borbulhar em quem -- suspeito -- se propõe a escrever com algum grau de profissionalismo.
Recentemente, quando me perguntaram o que seria essencial para mim, o que eu usaria de todas as minhas forças para salvar, eu não titubeei: a água. Depois, imaginei que era uma resposta "correta", e não algo que eu que eu me importava mesmo. Não que eu ache a água desimportante - verdadeiramente é o que há de mais importante, sem dúvida - mas por algumas razões que a própria razão etc., a água, esse ser tão abstrato, tão amplo, tão gigantesco, não me motiva a me mexer. Pensei de novo e falei: comida. Gostaria que todo mundo tivesse comida boa e saudável em casa. É uma área em que eu já faço algumas (pouquíssimas) ações, o que já demonstra como me parece mais "importante", nesse aspecto. Curiosamente, eu não pensei em nenhum momento em literatura.
Mesmo que, certamente, literatura seja aquilo que mais me move, hoje, e há mais de 20 anos. É o meu trabalho, apesar de nunca ter ganhado um centavo até hoje com [segundo o contrato, o primeiro pagamento de direitos autorais de Maquinação sai só ano que vem...]. É daquilo que eu quero viver para, e de. Por que, então, não passou pela minha cabeça falar que eu queria salvar a literatura?
Fiquei pensando sobre isso e cheguei a conclusão de que há uma certa vergonha em defende algo que é tão pouco importante para o mundo. Aqui eu não estou fazendo o gesto do Labatut de cuspir no prato que eu como - mesmo porque eu não como desse prato. Minha intenção é mostrar que, mesmo que ainda haja uma cultura que valorize a leitura e a literatura, outras muitas formas de transmissão de cultura, de informação, de entretenimento até, já ultrapassaram em muito a importância geral dos livros, físicos, mais tradicionais. Mesmo que Bradbury tenha escrito Fahrenheit 451 há menos de 50 anos [foi publicado em 1953], mesmo que as vendagens de grandes autores em países ricos se mantenham em padrões elevados, o posto de destaque na sociedade do livro foi suplantado, já há um tempinho.
Defender o livro impresso parece ser anacrônico, num tempo em que algoritmos decidem a qual tipo de conteúdo de menos de um minuto você vai assistir, em sequências que dão descargas elétricas e soltam serotonina em quantidades viciantes no corpo. O tempo do livro passou. A paciência para o livro esgotou.
Claro que eu fiz uma confusão de propósito entre livro e literatura: não são a mesma coisa. Enquanto o primeiro é um objeto físico, o segundo pode ser visto como uma forma mais ampla de narrativa, e aí sim poderíamos imaginar que não há qualquer chance de esse tipo de comunicação acabar. Aliás, ao contrário: parece que todas as outras formas de comunicação bebem, atualmente, da mesma água da literatura. O popular termo storytelling está aí que não me deixa mentir.
O problema é que aquele tipo de literatura que necessita de imersão, de um mergulho, de estar atento durante muito tempo para receber uma recompensa só de vez em quando -- bem diferente do jogo de cassino que todas as redes sociais se transformaram -- essa parece também fadada a acabar, ou virar um nicho. Por um lado, isso é uma tremenda vantagem: corta-se o supérfluo dos textos, a enrolação, a encheção de linguiça, que é o que todo escritor fazia quando precisava assinar mais um folhetim para pagar as contas do mês.
Agora é necessário ter tramas mais bem arquitetadas e surpreendentes desde o início do jogo. O cinema, com o seu tempo fechado, raramente passando das duas horas, virou umas das principais influências -- e não o inverso [e isso não é, nem próximo disso, uma crítica]. Na primeira meia hora de projeção, já devemos ter noção do argumento do livro.
Há ainda livros que experimentam com os limites do livro, que aproveitam a liberdade maior que o papel dá para criar tramas em cima, há uma série de exceções que mostram que o meu argumento pode soar mais como um medo conservador da transformação. Não é de todo errado. Mas o ponto não é exatamente esse, ao menos não tinha isso em mente.
Se o livro acabar, da forma como nós o conhecemos, eu com certeza ficarei arrasado. É improvável que eu veja esse movimento ainda em vida. De qualquer forma, a contação de histórias, que acompanha a humanidade desde que duas pessoas dotadas de linguagem se sentaram em volta de uma fogueira, essa vai continuar. É sempre bom lembrar Borges quando ele dizia que não via futuro para o romance, já para o cuento, esse termo em espanhol que abarca desde a narrativa ficcional curta até algo mais próximo da anedota, ele dizia que era eterno.
Talvez o desejo, esse termo tão utilizado e tão pouco entendido nos dias de hoje, seja, em vez de simplesmente seguir toda e qualquer intuição que nos atravessa, insistir nas pistas que insistem em permanecer, mesmo contra todas as expectativas, against all odds, como dizem os anglófilos. Lutar para alguma coisa permanecer, mesmo que ela seja desimportante, do ponto de vista da necessidade. Porque não é mesmo uma necessidade. É algo de outra natureza.