segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Os cabelos de Madureira

Recentemente circulou pelas redes sociais um mapa feito a partir dos dados do IBGE mostrando a concentração da população que se identificou no censo passado como branca, negra ou parda. No Rio, essa separação é uma divisão claramente geográfica - nas áreas de praia, a.k.a. zona sul, fica a população branca; quanto mais nos afastamos, mais negro fica o povo. Essa divisão - a mesma da escala econômica-social, "coincidentemente" - não precisava de um mapa para ser ilustrada: basta sair de uma das duas zonas exclusivas para saber que há uma divisão forte na cidade. E não apenas na cor da pele, mas no modo de ser, no senso estético, de comunidade, no comportamento, e, principalmente, na afirmação da própria identidade.

Fui à feira das Yábas ontem. Uma feira em Madureira com música e barraquinhas de comidas de um passado que parece se apagar - mocotó, feijoada, tripa, costela de porco... bobó de camarão era o prato light - feitas por senhoras ligadas às escolas de samba da região, que me lembrou, pela sua disposição, jamais pelo calor do asfalto da Estada do Portela, as feiras de comida de Londres. A primeira impressão, porém, foi outra, muito parecida com a da vez que visitei o baile charme debaixo do viaduto Negrão de Lima [lá também]: que cabelos incríveis são esses? Não pode ser apenas o resultado do crescimento do Beleza Natural - aliás, pode ser o inverso: a causa do crescimento dessa franquia de salão de beleza. Muitas e muitas mulheres negras usando cabelos que desafiam a gravidade, a expectativa, o preconceito.

Os cabelos são uma metonímia, uma figura de linguagem potente, que fisga os olhares de quem gosta de pescar usando o horizonte como isca. Nessa cidade cada vez mais estilhaçada, ir à Madureira, sendo morador de Botafogo, mesmo que natural de Nova Iguaçu, é se sentir um pouco turista. É pagar um pouco mais caro pelo pastel, se impressionar pela forma como os corpos despadronizados são expostos, diminuir a velocidade para acompanhar o vendedor de cerveja, descobrir ou redescobrir os laços comunitários essenciais para se viver com o outro que são, muitas vezes, esquecidos do outro lado do morro.

Parece que os moradores de Madureira e arredores - principalmente, mas não somente - tentam reinventar suas identidades sem tentar prestar tanta atenção para a periferia deles [periferia é sempre ponto-de-vista, como disse o Simas]. Isso quer dizer: eles não tentam emular nem o personagem malandro da Lapa, nem o tranquilo-relax-bossa-nova de Ipanema, nem o rato-de-praia de Copacabana, três das encarnações da carioquice que é vendida nos discursos televisivos e de políticos inescrupulosos como peças empoeirada de museu abandonado. Enquanto quem tenta imitar essas figuras de um passado idealizado - seja esse sujeito um carioca ou não, pouco importa - parece sempre forçando a barra, atuando em 100% do tempo para se parecer com as figuras dessa mitologia engessada com chapéu pseudo-panamá, brinde da cervejaria do homem mais rico do Brasil, o pessoal de Madureira e adjacências parece mais verdadeiro na sua necessidade de se reinventar para ser o mesmo.

Os cabelos são parte indispensável disso. Em vez de alisá-los, para ficar tais quais as patricinhas da Zona Sul, as meninas e mulheres de Madureira respeitam mais as vontades primárias das suas madeixas e as deixam simplesmente ser. Assim, afirmam para si mesmas que não precisam seguir um padrão "importado" para saber quem elas são.  Elas vão descobrindo, tais quais as raízes capilares, de dentro para fora. Ao buscar nesse "dentro" suas próprias identidades - num dentro, que não exclui nunca o fora, apenas o coloca em uma perspectiva diferente, talvez periférica -, elas acabam visitando suas histórias, seu passado, família, comunidade, seu entorno, elas mesmas, sob outros ângulos. Descobrem quem são olhando para si mesmas, não do espelho, mas de outros olhos. Parecem mais seguras, com atitude para usar batons com cores menos óbvias, maquiagens mais carregadas, para andar com travestis, meninos gays, a tia de óculos escuros laranja fosforescente, a avó com calça legging transparente. Parecem autênticas. Tentam construir um futuro, sabendo que para serem verdadeiras consigo mesmas, não se pode ignorar a própria - nunca do outro - história.

Voltar para a zona sul depois de ir a Madureira é complicado. Tudo parece meio fake, poser.

ps. Botafogo é um bairro que está reinventando sua identidade. Até os 1990, renegado como parte da zona sul, foi destino de vários estudantes, por sua posição extremamente privilegiada na geografia carioca - ter uma estação de metrô desde então é para bem poucos. A partir de então, sofre os efeitos de uma gentrificação estranha, talvez bem brasileira. A famosa "rua nova", que foi lançada há uns anos como sentido Voluntários-São Clemente da Nelson Mandela, que já foi o epicentro do burburinho do bairro, virou o point do playboy que paga caro pela grande-novidade-desta-semana sem nem se lembrar do que aconteceu na semana passada. Enquanto isso, o quarteirão final da Voluntários continua, ainda, se reinventando, com bares que tentam combater a frescura, com a simples vontade de molhar a garganta com alguma cerveja decente. É o bairro mais "moderno" da cidade, se "moderno" aqui é entendido como mais "antenado" com as tendências de outros bairros de outros lugares do mundo. Talvez cosmopolita seja outro bom adjetivo para ele. Vamos ver no que isso vai dar.