segunda-feira, 21 de março de 2016

Monoteísmo e política

É muito impressionante para um sujeito que não consegue acreditar nem nas mais ínfimas possibilidades de crença, ver o grau de devoção de partidários contra e a favor do PT, e de toda a sua turma. É um grau de paixão, para ambos os lados, que só consigo entender por via de uma aproximação com a religião.

Como todo mundo sabe, no nosso mundo acidentalmente ocidental, até muito pouco tempo na escala histórica da humanidade, todas as decisões de cunho político-estatal [ou o mais próximo que se tinha disso] eram fortemente influenciadas pela ideia de que havia um deus único no céu, que sabia o que era [e era ele mesmo] a verdade e a luz.

Mesmo que não tenha havido nunca um monoteísmo puro, de raiz, já que, entre outros motivos, é muito complicado influenciar a maneira como as pessoas se relacionam com suas crenças e fés, havia sempre uma tentativa de deixar na mão de uma única "pessoa" [santo, deus, entidade, igreja, crença, fé, enfim] o curso dos nossos caminhos. Todavia, por mais que hoje em dia haja uma forte tentativa de se abandonar a secularização por parte de muitos pastores de caráter duvidoso, para dizer o mínimo, temos outras formas de decidir nossos caminhos que não se baseiam unicamente na ideia de um deus centralizador. [Não quer dizer que nós as sigamos.]

Quando Nietzsche colocou na boca do "homem desvairado", ou do "homem louco" [em alemão é "der tolle Mensch"], a frase que para sempre ficaria associado à sua produção intelectual, que "deus está morto", ele também avisou que viveríamos ainda sob a sombra de deus por muito tempo. Que apesar de ele ter morrido, seu espírito encarnaria em outros formatos. Que não bastaria ter matado deus: a busca por algo que resolva nossos problemas num passe de mágica - ou num milagre - continuaria.

Vez por outra vemos exatamente o que ele quis dizer quando percebemos um contingente imenso de pessoas colocando todas as suas esperanças - esse outro nome para fé - em determinada "pessoa" novamente [seja ela a política, a ciência, o escapismo, o cinismo], sem praticar uma das principais possibilidades abertas com a morte do deus monoteísta: a dúvida.

O que era "verdade" no período em que "deus" ainda estava "vivo" se transformou em um tipo de "certeza", em que, após o mergulho em profundidade de algum tipo de fonte, formamos o nosso caminho e seguimos em frente, como se nada pudesse afetar o caminhar. Ou melhor: em que NADA PODE [no sentido de não ser capaz de] afetar o nosso caminho, porque eu nem enxergo qualquer rachadura em minha certeza. Ela é a única possibilidade, o único jeito, a única forma de ser.

Assim, acontece o fenômeno em que nós nos encontramos agora. Quando descobrimos que o nosso ídolo tem pés de barro, que ele pode cair e se quebrar no mais fraco suspiro, nos sentimos traídos. É quando percebemos que todas as nossas convicções foram sem razão. É um decepção do tamanho da nossa fé. Quanto maior a crença, maior o tombo. Perde-se o rumo e, para evitar o desconfortável porém ocasionalmente necessário caos interno, vira-se o leme e aponta o barco para o outro lado.

Se a estrutura da minha vida estava apoiada sobre uma determinada certeza e essa certeza se mostrou incerta, tenho que montar outra estrutura de vida, exatamente na certeza de que temos que destruir qualquer resquício da certeza anterior. É um jogo com os mesmos números, mas com sinais trocados.

São as viúvas que descobrem que o marido não era o santo que se mostrava quando em vida e que passam a criticá-lo como o pior dos homens que já passou sobre a terra, mesmo tendo idolatrado o sujeito quando vivo. É a carola xiita que percebe que o sacerdote não segue todos os ritos e dogmas mais estritos de sua igreja e acha que sabe mais da religião que o próprio padre/pastor/rabino/pai-de-santo etc.. É o ex-petista que acreditou que o PT iria mudar as estruturas de poder no Brasil sem participar do jogo sujo da política nacional, fez campanha em diretórios, participava de reuniões, seguia a doutrina religiosamente, colocava toda a sua energia no processo, e que agora, percebendo o óbvio, que o PT se lambuzou dos processos criminosos, usa toda a sua energia para destruir a legenda.

Outros, em negação, continuam não aceitando o que aparece na frente, dando desculpas muito parecidas com as certezas que aparecem nos decepcionados. Não enxergam os pés de barro, nem as pernas de pau, nem o nariz que cresce. Só enxergam o que querem enxergar. Também se baseiam em fontes que somente confirmam suas próprias convicções e não podem entrar em modo de dúvida, porque isso destruiria seu curso de vida, e eles entrariam em parafuso. O medo é da incerteza, da falta de rumo, do desnorteamento.

Esses comportamentos, creio, ainda são uma herança que temos do monoteísmo: ao apostar toda a nossa existência, todo nosso modo de ser em apenas um número do tabuleiro, qualquer outro número que sair na roleta vai parecer completamente errado. A lógica facebookiana, de transformar todas as discussões em códigos binários, em que um é positivo para o outro ser necessariamente negativo, até diminuiu as possibilidades mais óbvias para se apostar. Nosso tabuleiro tem cada vez menos quadradinhos visíveis. Os grupos ficam, assim, cada vez mais coesos. Mais fanáticos. Mais radicais. Mais fundamentalistas.

Não basta se aprofundar no que se acredita, para reforçar o que se segue. Suspeito até que não basta nem mesmo ler o adversário, com o intuito de conhecer abertamente o inimigo. Também não dá - ou não deveria dar - para se pensar em, apenas, uma terceira via, uma alternativa que rapidamente seria cooptada por um dos dois lados. É o momento de pensar que podemos duvidar, duvidar até mesmo de nós mesmos. Somente sob o signo da interrogação poderemos enxergar caminhos e mais caminhos, inúmeras possibilidades, que ainda não são óbvios. Somente sem certezas, de quaisquer natureza, podemos criar diálogos com o outro, não importa que cor de camisa ele usa.