quarta-feira, 4 de maio de 2016

Sentimento de humildade

No clássico da sessão da tarde "Caçadores de emoção" [direção da Kathryn Bigelow, vocês sabiam?], como todo mundo lembra, o policial Johnny Utah [Keanu Reeves] tem que se infiltrar numa gangue de assaltantes de banco que, em todas as outras horas, aproveita para aumentar a produção de adrenalina no corpo: é salto de paraquedas, é festas all night long, e é, principalmente, surfe.

Para conseguir ser aceito pela gangue de Bodhi [Patrick Swayze], Utah, um ex-jogador de futebol americano, decide aprender a arte de se equilibrar sobre uma prancha dentro do mar ondulado. O filme mostra o policial nesse processo à medida que o ator está verdadeiramente descobrindo o surfe - ou a atuação de Reeves é tão convincente que eu até hoje vejo dessa maneira.

Primeiro Utah cai a toda hora. Depois, consegue ao menos ficar de joelhos - e ele viu que isso era bom. Em seguida, com um pouco mais de paciência, ele cria uma técnica para ficar de pé meio desengonçadamente (bem diferente do balé fluido e natural de outros surfistas) que consiste em se apoiar primeiro sobre um joelho para depois ficar de pé por completo. Dá para ver algo disso nesse clipe feito por um fã do filme:



Após conseguir finalmente surfar, Utah - e por extensão Reeves - parece se divertir para valer. Mesmo que os seus movimentos sejam bem menos graciosos que os dos demais surfistas, mesmo que, assim, ele não carregue a aura de juventude associada ao surfe, já que parece um coroa tentando se equilibrar sobre uma prancha dentro d'água, em vez de alguém em uma comunhão com a água. Parece artificial, falso, forçado, mas, para ele, é uma vitória.

Não apenas porque ele conseguiu alcançar algo que antes parecia inviável ou improvável, ou mesmo que não estava em seus planos de vida - sim, o sentimento de expansão, de concluir, mesmo que "imperfeitamente" uma meta, chegar ao topo de uma montanha após uma longa caminhada, dá mesmo uma satisfação, um sentimento de dever cumprido. Mas, também, e, talvez principalmente, porque a visão lá de cima, ao fim da trilha - para continuar com a metáfora - é bem bonita. Em outras palavras, porque (mesmo que eu não saiba) surfar é bom, é divertido, é, enfim, maneiro.

Há um outro aspecto, entretanto, que não é ressaltado de maneira explícita no filme - porque não é nem de longe o foco do filme -, mas que, acredito, faz parte dessa satisfação, dessa alegria renovada de viver. Chega um certo momento da vida do classe-média que nos impomos ou enfrentamos poucos desafios verdadeiramente vitais, em que, de alguma maneira, estamos sólidos, com poucas questões desestabilizadoras, algo que nos expõe diante das outras pessoas, e diante de nós mesmos, algo que demonstre toda a fluidez do mundo lá fora; estamos seguros de nós mesmos, com nosso papel já consolidado, nossa rotina, assentada. Sabemos no que somos bons e só queremos fazer aquilo que fomos sempre bons, num processo de especialização que nos torna ainda melhores.

Não é um processo danoso, por si só: talvez os grandes cientistas precisem se transformar em cegos para o seu arredor para focar apenas no ponto luminoso ao fim do micro ou do telescópio. Também devemos levar em consideração que ter segurança na vida é uma meta buscada por muitas pessoas: saber finalmente o que se é, o que se quer, e deitar, enfim, em berço esplêndido. Qualquer abalo nessa estrutura é mexer com todas as verdades assentadas dentro de si, como as primeiras neves que se transformaram na base dos grandes glaciares. Duvidar das verdades que se propõem eternas é criar uma fissura no dique que segura toda a água para não invadir a cidade.

Fazer algo que nos expõe ao ridículo, mesmo que ligeiramente, mesmo que em um aspecto colateral, pequeno no todo, mesmo que verdadeiramente isso não seja importante: isso é uma grande lição de humildade. Saber que há algo que você tem que aprender e que todos os demais no seu entorno fazem tão automaticamente, é descobrir que você não é nada melhor nem pior que os outros. É se ver como alguém com qualidades e defeitos, como todos os demais. É saber que, se você é um sujeito bem-sucedido, essa coincidência acontece simplesmente porque a sociedade em que você está inserido valoriza as qualidades que você alimentou desde sempre. Mas essa valorização é tão aleatória quanto outra qualquer. E o fato de você ter se dedicado a isso, e não a outra coisa, não lhe faz alguém melhor que outra pessoa. Talvez só mais neurótico, compulsivo, obsessivo.

Esse é o meu sentimento quando ando de bicicleta hoje.