sábado, 19 de agosto de 2017

As incertezas de Heisenberg

Werner Heisenberg é uma figura que levanta nossa sobrancelha e nos obriga a nos observar no espelho. Físico da geração de Bohr, Einstein e cia., sempre foi considerado um garoto-prodígio. Primeiro por ser um pouco mais novo que outros nomes famosos que revolucionaram completamente as ciências exatas, e por consequência o mundo todo, [ele é de 1901; Bohr, considerado o papa da quântica e, mais especificamente, uma espécie de "pai" para Heisenberg, era de 1885; Einstein, o "deus" da geração, de 1879]; mas também porque, além de ser extremamente talentoso em várias áreas, alcançou o teto muito rapidamente. Foi o mais novo professor titular da História da Alemanha, aos 26 anos. Foi o mais novo ganhador do Nobel, antes de completar 32 anos. Isso além de ser um exímio pianista e um grande conhecedor da filosofia e da literatura greco-romana.
Heisenberg, entretanto, não foi o ponta-de-lança do grupo, apesar de todo o talento para sê-lo, e a razão está além das questões puramente físicas, ou melhor, científicas, ou, por último: exatas. Como todos os cientistas da Física quântica desse período, ele também foi atravessado pelas aflições de ver suas descobertas serem transformadas em armas de destruição massiva. Sua trajetória, porém, não tem nenhum atenuante, por estar "do lado correto". Ele decidiu, livre e espontaneamente, ficar na Alemanha, mesmo com a ascensão do nazismo. Sua argumentação era nobre. Tinha a intenção de ajudar a reconstruir seu país, já que ele acreditava então que o país seria arrasado com a guerra iminente.
Consequentemente, mesmo não sendo partidário de Hitler, ele chefiou o projeto nuclear alemão, no período. Não passou incólume. No pós-guerra, se defendeu dizendo que sua intenção era sabotar, de dentro, a tentativa de construir a bomba. Não foi o suficiente para sofrer, até morrer, a antipatia dos seus pares - uma imensa maioria de judeus.
Não era uma coincidência essa afluência de judeus para a física teórica. Como os nazistas tinham um excesso de pragmatismo, um utilitarismo crônico em que as coisas só valiam se se encaixassem dentro dos seus próprios e rígidos padrões, a parte teórica da física foi relegada para o segundo escalão - lugar que eles reservavam aos judeus. Ironia do destino: foi essa teoria que criou as possibilidades da arma das armas, que tanto agradaria os alemães.
Segunda ironia do destino: foi esse grupo de fugitivos da desgraça nazista que produz a bomba que fecha a guerra. Grande parte do grupo ao redor de Oppenheimer, do italiano Fermi ao alemão Einstein, passando pelo dinamarquês Bohr, tinha uma relação direta com o judaísmo: ou era judeu [Einstein] ou era meio judeu [Bohr] ou era casado com uma judia [Fermi]. E só não jogaram a bomba em Berlim porque, segundo consta, ela não ficou pronta a tempo. Os alemães já tinham se rendido. Sobrou para os japoneses.
Há, porém, uma terceira ironia do destino, muito mais sutil, que pode ser também a mais complicada de se admitir em voz alta. Considerando a versão oficial de Heisenberg, mesmo que ele estivesse lutando do lado errado da História, ele teria conseguido impedir o avanço do inimigo. Mesmo que ele não se admitisse nem herói nem mesmo membro de qualquer resistência, ele teria, em resumo, conseguido salvar vidas. Já os físicos que foram para os EUA, mesmo que lutassem pela liberdade, mesmo que estivessem apenas se defendendo, mesmo que quisessem simplesmente terminar com o conflito, acabaram causando a destruição de duas cidades inteiras e a morte de muitos civis inocentes. Nem sempre é fácil distinguir o que é certo e o que é errado.

ps. A atitude de Heisenberg de ficar numa Alemanha que já começava a demonstrar seus traços de um regime baseado no horror completo nos devolve a questão, mesmo que a evitemos. Nós que moramos nesse Rio de eventos neopentecostais no sambódromo e nesse Brasil de juízes que mandam prender e libertar a seu bel prazer. Devemos abandonar o barco enquanto podemos, ou devemos afundar junto para, caso algo sobre, tentar reconstruir?