quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

DIVISAS, por Humberto Ádvena

Posso escrever? Eu, do alto da minha torre sem marfim, construída silenciosamente com os meus privilégios sempiternos, desde a tenra idade? Se me for dada essa liberdade (ou seria esse fardo?) sobre o que eu poderia, ou melhor, sobre o que estaria eu apto a escrever? Se não, se eu não me sentisse capaz de tão desconcertante façanha – de enfrentar a história que construiu a mim e à minha volta essa posição de destaque –, o que eu deveria fazer? Qual seria, então, uma atividade justa neste momento de grandes e necessários enfrentamentos?

Se eu escrever, se eu tiver essa coragem, o que eu devo fazer após o ponto final? Publico? Publico bem publicamente? Alardeio aos infinitos ventos sem nomes? Ou queimo antes mesmo de ler? Destruo qualquer prova de que um dia algo como um texto possa ter existido? Afinal, para que publicar hoje em dia? Quem lê tanta letra? Não seria apenas uma vaidade das mais infantis? Queimar, mas queimar também: para quê? Para citar tantos outros escritores inéditos? Queimar para não enfrentar a realidade? Queimar por ideal, por não ser perfeito? Esse também não é um dos formatos da vaidade?

Escrever? E escrever sobre o quê? O que me é permitido escrever? Qualquer assunto não é, necessariamente, um roubo? Não estaria eu usurpando a vida de outras pessoas como um sanguessuga para tão somente o meu prazer, a minha exibição, de peito inflado de ar vazio? Aliás, eu tenho autoridade de falar sobre quais assuntos, em especial? Pois é: do que eu sei verdadeiramente falar?

E por que há tanta necessidade de falar, de aparecer, de se mostrar? Só existe aqui, neste tempo e neste espaço, o que é visto – curtido, compartilhado, comentado? Não deveria ser o oposto: num mundo em que todas as pessoas lutam para sobressair, para levantar a cabeça da lama grudenta, ficar no lugar não deveria ser uma das formas mais inusitadas – portanto, valorizadas – de se destacar? Não deveria haver – não deveria sobrar um leitor, ao menos, para justificar tantas palavras jogadas nesses papéis em branco virtuais? Ou vamos ficar nesse jogo de compadres, em que um lê o outro, como dois cachorros se cheirando, e, automaticamente, se autocongratulando, um ao outro, pelo espelho?

É possível, porém, não escrever? É possível, alguém sabe? Silenciar, pacientar, se acalmar? Por que não apenas escutar – ouvir os outros, abertamente? Ou escrever é uma necessidade – uma forma de sobreviver, um formato para sobreviver? Escrever seria, então, apenas e somente uma forma pernóstica de terapia ocupacional? Uma maneira cabotina de colocar em prática uma psicologia de botequim das mais infames e prepotentes, de tomar uma dose da mais vergonhosa psicanálise barata? É a cura pela escrita, agora? Quem vai, volto a perguntar, porque é necessário, quem vai doar os próprios olhos para a literatura? Ou será só olvido, um longo, escuro, e silencioso olvido?

Para começar: existe arte só com o artista, sem espectador? Para terminar: escrever é arte? Como intermezzo fora de lugar: Será que vamos um dia trafegar fora do âmbito do mais puro egoísmo?

Ou ainda: seria escrever uma maneira de dialogar consigo mesmo? Uma ponte entre nossos dois ou multi-lados? Um modo de encontrar equilíbrio – um equilíbrio tenso, que nunca se resolve, dentro de uma personalidade dupla neurótica, ou pulverizada esquizofrênica, certa e infalivelmente obsessiva-compulsiva, como a de todos nós? É uma tentativa, um trabalhoso esforço para mudar o paradigma do ser ou não ser – transformando-o em ser e não ser? Em vez de negar, somar? Em vez de excluir, abrir sendas, criar pontes, trabalhar para a comunhão, enxergar a interseção?

Não sabemos, sabemos, não.

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