A começar: o que Russo Passapusso e companhia fazem é extrair o sumo do que é mais potente da música já produzida no país e no mundo. Uma nova geração da nossa antropofagia, sim, que já passou pelo tropicalismo, pelo BRock e por gente tipo Chico Science. Ou seja, é dos produtos artísticos mais potentes que se pode ter. Vai do heavy metal ao pagodinho. Do carnaval ao baile funk, passando pelo dub, pelo reggae, pelo hip hop. Um grande liquidificador que nos impede de rotulá-lo com facilidade.
Há também toda uma preocupação estética com projeções e interações que me lembrou aquela reclamação do Caetano no VMA: é de um cuidado "profissional" que não deixa a desejar a nada ao seu vizinho de noite do outro lado da rua. O grafismo do Baiana faz referência ao funk, ao passinho, ao desenho animado, ao design, tudo, junto.
Mas o grande ponto do Baiana não é a sua parte "exterior". Isso é ainda muito Ocidental, muito moderno. Em uma palavra apenas: branco. No show do Baiana, quem manda é o público - em grande parte negra.
Assim como estamos vendo acontecer em outras produções artísticas, a arte não termina no filme, no livro, na música - o público pode retrabalhar, remixar, remexer, reabrir a obra e a refazer completamente. E a plateia do Baiana sabe que é ela o centro da questão. É uma experiência de corpo político - a mais forte que presenciei desde junho de 2013.
A música existe para alimentar essa plateia, para dialogar, para ser a causa. Não haveria plateia sem música. A música não é pano de fundo, entretanto, está no meio, entre, ocupando todos os poucos espaços vazios. A plateia já criou códigos, formatos de dança, maneiras de se movimentar que correspondem ao chamado do Passapusso. O que é o "furacão", por exemplo?
Até aí, porém, qualquer show de axé chega. O diferencial do Baiana está em dois aspectos entrelaçados: o contato físico e o perigo constante. Foi como se eles conseguissem transferir o ambiente da pipoca do carnaval baiano para dentro de todos os seus shows. Na frente do palco, uma pequena multidão se espreme, se empurra, dança, se sarra, se beija, se esfrega, pula, soca, sua, treme, se afasta, se organiza, se movimenta, tudo isso seguindo a música. É uma roda típica de shows de punk ou metal, acrescida de ginga, de sacanagem, de balanço, de suingue. É um bonde de baile funk, com muitas variações de encaixe e desencaixe.
As únicas constantes: o contato, e, consequentemente, o perigo iminente. Parece que a cada música você vai tomar uma cotovelada esquecida no supercílio, perder o óculos escorregando no suor, desfalecer de calor, ser jogado no chão ou arremessado contra um punho desprotegido, ser carcado por alguém mais afoito ou receber uma rebolada no seu colo sem você pedir. O seu corpo, ali, não te pertence. Há uma perda de individualidade fortíssima. Uma grande suruba com roupa.
Nesse terceiro show do Arcade Fire, era possível entender os paradigmas da sociedade ocidental moderna, que nos empurraram goela abaixo. O seu espaço é a sua propriedade privada: é sagrado. Você chegou antes, a pessoa não pode entrar à sua frente, sem apresentar uma série de justificativas. Existe a posse. Sabemos o nosso lugar e ele deve ser respeitado.
No show do Baiana, a plateia mostra que não há um espaço fixo. Você está em constante desequilíbrio, se apoiando nas cinco pessoas, no mínimo, em quem está encostando ao mesmo tempo. Você está razoavelmente parado, conseguiu uma estabilidade até que a música volta e a próxima roda se abre e as pessoas começam a pular e a se empurrar e a dançar da maneira como conseguem. Você não sabe onde o seu corpo começa, onde ele termina. É violento, é perigoso. Mas é claro que é um perigo em doses muito baixas (vi apenas uma menina sendo levada para fora, porque havia desmaiado de pressão baixa).
E é claro que é nesse perigo, nessa possibilidade de algo dar errado, nesse estar próximo do abismo, a ponto de poder olhá-lo de frente, que reside a potência desse encontro. Não é coincidência que o tio Aristóteles, na sua Poética, falava da necessidade das tragédias gregas antigas em ter um momento de catarse, de expurgação, de eliminação pelo suor, pelo choro, pelo sangue, pelos fluidos. Nem só de Apolo deve viver a nossa veia artística. Tem que ter também, e muito, Dionísio - ou para fazer um paralelo mais a nosso gosto, Exu.
ps. Curiosamente, foi um pouco essa sensação que eu tive em 2005, quando vi um bando de garotos e garotas pularem do palco na plateia, tocando diversos instrumentos, se divertindo, dançando, alegres. Os então jovens músicos do Arcade Fire pareciam que não estavam preocupados com nada além de serem felizes. Se ontem, mais de uma década de experiência depois, eles pareciam já quase representar perfeitamente os papéis que o tempo lhes reservou, lá no nosso primeiro encontro, eles pareciam saber que a arte tem que ter uma dose elevada de perdição. Parecem ter perdido, um pouco, isso.
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