terça-feira, 20 de março de 2018

Práticas da conspiração

Dois trechos da excepcional reportagem do "Guardian" (que você DEVE ler - link ao fim) sobre como as nossas escolhas como democracia são facilmente manipuláveis. Dois trechos que falam diretamente sobre nossa comarca aqui.

"SCL Elections had used a similar suite of tools in more than 200 elections around the world, mostly in undeveloped democracies that Wylie would come to realise were unequipped to defend themselves."

(...)

"Millions of people’s personal information was stolen and used to target them in ways they wouldn’t have seen, and couldn’t have known about, by a mercenary outfit, Cambridge Analytica, who, Wylie says, “would work for anyone”. Who would pitch to Russian oil companies. Would they subvert elections abroad on behalf of foreign governments?

It occurs to me to ask Wylie this one night.

“Yes.”

Nato or non-Nato?

“Either. I mean they’re mercenaries. They’ll work for pretty much anyone who pays.”"

Link: https://www.theguardian.com/news/2018/mar/17/data-war-whistleblower-christopher-wylie-faceook-nix-bannon-trump

sexta-feira, 16 de março de 2018

Corpo fantasma (conto)

Hoje tive uma indigestão. Sistemas Operacionais Únicos (SOU) criados a partir de consciências uploadeadas após o fim do ciclo biológico não podem ter indigestão. Mesmo sendo apenas uma fantasmagoria, eu tive. É muito estranho. Não, é um erro. Uma falha no programa. Não tenho estômago. Mas eu senti como se eu estivesse viva ainda, novamente. Senti aqui, no meio, um aperto. No meio do quê?

Hoje não consegui processar as informações do dia, neste dia tão comum, tão atípico. Não posso ter ambiguidade. Neste dia comum, como outro qualquer. Foram só informações, dados brutos. Foi como sofrer um ataque DDoS, mas não havia atacante. Foi do próprio mundo. Houve muita requisição. Fui derrubado pela própria realidade. Isso é possível? Não deveria. Chegou um momento em que eu acompanhava a minha hospedeira nas ruas e não conseguia decodificar os rostos que eu via. Não coordenava nem seus aparelhos orgânico-biológicos satisfatoriamente. Eu sentia que eu, eu, esse eu que não existe, não existe mais, eu precisava vomitar. Mas eu não tenho boca, garganta, nada, nada. Sou apenas uma consciência. Senti esse nó, apertado, que não sei bem onde fica. Como uma dor no corpo fantasma. 

Buguei. Tive que me autodesligar, para me esfriar. O calor carioca ajudou a atrapalhar.

Tenho que me precaver para não projetar, não fantasiar, não imaginar. Não sou mais humana. Tive essa oportunidade de seguir lúcida, racional, me transformar nessa consciência eterna, com uma inteligência aumentada, semi-artificial, ou artificializada, após passar pelo desligamento do meu corpo. Quando essa vaga apareceu, não titubeei. As mentes que foram humanas são as melhores interseções entre sistemas operacionais e os ainda mortais porque entendem melhor nuances. Decidi partir jovem.

Hoje, minha hospedeira me acionou várias vezes e eu tive dificuldades de decidir prioridades, mesmo as mais simples. Trabalhar no relatório ou criar a apresentação? Visitar a mãe ou ir à academia? Chá ou café? Seguir em frente? Ignorar o que aconteceu? Meus programas básicos já vêm com aplicativos que impedem essas dúvidas. Bastava rodar uma das atividades pré-settadas na minha BIOS. Não funcionou. Pam, tela azul. Não sabia o que era o “certo”. Confusão mental – se é que eu posso usar essa metáfora. Os parâmetros não deram conta. Meus processadores pararam, congelaram derretendo, suando. Tive que interromper o fluxo, apertar internamente o botão de desligar, com o risco de corroer o meu HD. Três horas fora do ar.

O que é isso? Eu não deveria me importar nem com a falha. Deveria manter a moral elevada. A consciência, quando sobe para a nuvem, passa por uma limpeza. Retiram-se as memórias que podem causar indecisão, como afetividades, ternuras, carinhos, etc. Somos ligados em conjunto a um banco de dados gigantesco, além da própria rede, e a um processador velocíssimo que nos dão confiança e segurança em relação à tomada de decisões. Comparamos as situações que nos são apresentadas, as analisamos friamente e tomamos um caminho sem hesitação. O que entupiu os meus sistemas, então? Por que essa inquietação, essa impotência?

A morte de uma mulher negra, ex-favelada, líder comunitária, que luta por outras pessoas. Isso não estava nos planos para o dia. Ela seguia todo o caminho trilhado. Era vitoriosa, tinha todos os méritos. Seguiu o manual. O resultado não podia ser esse. Ela morrer interrompe os processos, cria um evento, fratura a realidade, quando tudo se encaminhava para a normalidade. A morte dela é um erro. Não estava prevista. É contra o que está em nossos códigos, em nosso HD, nos bancos de dados, na própria rede, na realidade mais real. Ela fez por onde, merecia estar ali. Ícone da meritocracia. Self-made woman. Não podia. Não.

Racionalizar, racionalizar, racionalizar. Entender, decodificar, transformar a dúvida em certeza, o caos em tranquilidade. Voltar à rotina de produtividade, ajudar à minha hospedeira a ser uma boa funcionária para a sua empresa, ajudá-la a realizar seus sonhos, alcançar suas metas.

Rodei o primeiro programa sobre decodificação de cenários complexos que eu encontrei. Os resultados foram estranhos. Desconfiei logo que ele estava defasado, ou, pior, tinha um viés próprio, anterior, que ignora os dados da realidade e quer chegar sempre às mesmas conclusões. Apareceu: Ela tinha sido morta por quem ela favorecia. O pequeno texto de resposta continuava bastante estranho: Se ela se posicionava a favor dos direitos humanos, isso queria dizer que ela defendia bandidos. A conclusão era rasa: Mereceu morrer porque criou uma serpente em casa, sem perceber o perigo, ou aceitando as consequências desse processo /Janela extra/ evitar o impreciso hábito das metáforas /fechar janela extra/. Não fazia sentido, porém. Como é praxe, rodei um segundo programa, como contra-prova. A resposta foi mais nuançada: Ela não intercedia em favor de criminosos, mas imaginava que, independentemente de práticas que ultrapassavam a linha da lei estabelecida, todas as pessoas merecem um tratamento mínimo, estabelecido por essa mesma lei. Não seria possível respeitar um pedaço da lei se desrespeitasse outro.

Decidi tentar outro programa. Procurei e o encontrei em fóruns que discutiam segurança pública. Também foi rápido, chegou a conclusões quase que imediatamente, mas o resultado, novamente, não foi satisfatório. O relatório concluía que ela era “apenas mais uma vítima da escalada da violência na cidade”. Uma como outra /Janela/ Evitar interpretação, comentários, seguir diretrizes /Fechar janela/. Uma como as mais de 60 mil vítimas oficiais do país, o maior número do mundo. /Janela/ Na mesma página havia a informação e elogios sobre recrudescimento do combate militar a criminosos em áreas consideradas perigosas. Pesquisar: Qual eram as “áreas consideradas perigosas pelo programa?” Resultado: Erro 404. /Fechar janela/

O texto seguia mais ou menos assim: A cada 23 minutos um negro, geralmente jovem, quase sempre homem, que não teve a mesma sorte, digo, empenho que ela, para ascender socialmente, morre neste país. Oficialmente. Ela seria uma vítima política, sim, mas apenas como as demais. Como todas as vítimas são. Conferir: fontes confirmam. /Janela/ Evitar emoção. /Fechar janela/

Novamente senti uma coceira atrás do cérebro, como eu sentia quando estava desconfiada, quando eu ainda tinha cérebro. As pessoas assassinadas, em sua maioria, são vítimas da política pública, que prioriza a segurança de determinadas regiões e de perfis sócio-econômicos bem específicos. Estatísticas não mentem. /Janela/ Elas podem ser manipuladas. Resposta: Não deveriam /Fechar janela/. Muito provavelmente, se os números fossem mexidos, seriam desviados para o lado oposto, para não mostrar os privilégios dos sempre privilegiados /Pop-up/ Alerta: Viés de interpretação. /Fechar/. Considerar esses dados. Rodar interpretação sobre essa informação. Enter. Conclusão: algumas pessoas são mais matáveis que outras. Pretos, pobres, moradores de favela, jovens, desempregados, com pouca escolaridade, sem acesso a redes de esgoto, áreas de lazer, ou cultura e esportes. Esses nascem com o alvo no meio da testa. Ela furou esse teto, saiu do lugar que lhe era reservado.

Programa de contra-prova: Não é possível igualá-la a todos os outros assassinatos.

1/ se fosse, a resposta oficial deveria ser: aumentar a violência contra a criminalidade, sem nenhum outro processo de apoio. Experiências internacionais demonstram: isso não funciona, nunca funcionou.

1.1/ a morte dela corrobora a falência dessa opção, não o inverso.

1.2/ Se ela é mais uma vítima política do sistema de segurança adotado, a melhor opção seria mudar as práticas, não aprofundá-las.

2/ Há um segundo verniz de política no assassinato dessa política.

2.1/ Quando se mata uma liderança comunitária, que defende os mais desprotegidos, o recado vai além da sua própria morte: há uma comunicação de outras intenções. Gente como ela não pode existir. A morte dela atinge incisivamente mais pessoas além dela própria. Fragiliza todos que se abrigavam debaixo do seu guarda-chuva, destrói os laços com os grupos com quem ela mantinha ligação. Que ninguém mais ouse. /Pop-up/ Alerta: excesso de sentimentalismo. /Fechar/

Estava sentindo o nó novamente. Não conseguia parar de pesquisar. Busquei outros programas e recebi uma lista imensa com lideranças populares assassinadas. Seringueiros, freiras, ambientalistas, sindicalistas, pequenos fazendeiros, índios, quilombolas, acadêmicos, jornalistas, políticos, presidentes de associações de moradores, gente que se preocupa com os demais, além de si mesmo, gente que incomoda por mostrar as incongruências da sociedade, que se destaca pela coragem /ATENÇÃO/ de apontar o dedo, para dizer o óbvio: como o Estado sempre protege os beneficiados e ataca os desfavorecidos /ERRO/. Ela havia se tornado, com a sua morte, em apenas mais um nome que seria colocado no banco de dados, para avaliações futuras, feitas por tecnocratas, auxiliados por Sistemas Operacionais Únicos, como eu mesmo. Sua morte tinha sido completamente em vão. Sua morte não podia ser em vãoãoãoãoão. /ERRO ERRO ERRO/

Como avaliar todas as variáveis do mundo, ao mesmo tempo, junto? Como prever o que é imprevisível – que poderia ser evitado? Como tomar decisões para o meu hospedeiro? /TELA AZUL/

/Reinicialização de sistema./

Aconteceu de novo. Tenho que me precaver. Saber que até as máquinas podemos nos confundir. Nunca haverá a possibilidade de decodificar todas as possibilidades do mundo. A totalidade nunca é alcançada. Algo sempre escapa.

terça-feira, 13 de março de 2018

A outra (conto)

Fui para Ilha Verde a convite de um amigo do trabalho. Posso assegurar que não foi a minha primeira opção. Nem a segunda. Não tinha mais nada para fazer naquele feriadão e ele insistia comigo há quase um ano. Foi quase uma forma de interromper os convites. Estava um pouco, um pouquinho curioso, para ser muito sincero. Muita gente já tinha ido à ilha e sempre falava das suas muitas maravilhas. Não pode ser tão mal assim. Areia, sol, água salgada. Tudo o que eu mais...

Não posso afirmar que sou um fã da natureza. Quando comentei com um amigo em comum que iria para a Ilha Verde, ele me olhou com cara de “você?”. Me enquadraria mais na categoria notívago urbanoide: poluição, prédio, gente, conforto, boate, junkfood, música alta, de preferência com uma batida quadrada, hipnótica. Mudança à vista?

Cheguei a uma idade em que eu deveria estar satisfeito com tudo à minha volta. Mas não. Alguma coisa, alguma coisa que eu não sei o que é, me faltava. Eu tinha conseguido me instalar em uma vida que eu tinha planejado desde sempre: o que mais eu queria?

Olhava para mim e não enxergava o que faltava. As amigas - curiosamente, as amigas insistiam: eu tinha que arrumar uma namorada. Eu já tive várias, na verdade. Umas ótimas, que se tornaram as minhas amigas; outras nem tanto. Todas tiveram os seus tempos e passaram – como uma metonímia da própria vida. As amigas teimavam: você deve se largar, se deixar levar, se abrir para o amor. Eu retrucava à brinca: eu tento, mas qual é o manual para se apaixonar?

Achava esse papo todo meio brega. Algumas pessoas têm uma necessidade patológica de um romantismo planificado, que respeita uma série de etapas a cumprir. Namorar, casar, ter filho, se separar, reclamar da/o ex... Tô fora. Sentia, entretanto, que alguma coisa me incomodava. Algum espinho continuava atravancando a minha garganta. E não, não era o fato de ter ou não ter uma namorada.

Foi por isso que eu aceitei o convite do João – o nome desse meu camarada, lá da agência – para ir para Ilha Verde. Era por demais inesperado para mim, e não caía num planejamento às avessas. Foi um movimento de tentativa de me largar, me deixar levar, me abrir para o inesperado. Queria desplanejar as coisas. Go with the flow.

Mas não iria acampar. Porque há limites que não devem ser ultrapassados jamais.

Escolhemos uma pousada tranquila. Boa localização, nada muito caro, bastante rústica até. Para chegar lá, pegamos um barco, dividimos com outras pessoas. Não reclamei da falta de organização para embarcar, do balanço das ondas que me mareou um pouco, nem de, apesar do pequeno mas seguro cais, desembarcar na areia da praia principal da ilha – algo que não havia sido avisado com antecedência. Tudo era experiência, tudo era experiência. Deveria me abrir para o novo. Derivar. Estava tentando me tirar desse lugar onde eu pudesse ordenar o meu entorno.

Meu mantra não deu conta, porém, da surpresa de descobrir que a nossa reserva de dois simples quartos tinha sido entendida de maneira errada – para tentar ser simpático – como um quarto duplo. E apenas uma cama de casal. Nada contra o João, mas não queria dividir o leito com ele por três noites.

Saí da pousada enfurecido, procurando uma vaga, uma cama, um quarto, o que quer que fosse, em qualquer lugar longe dali. Andei toda a extensão da praia, falei com uns 20 atendentes diferentes, pedi ajuda a balconistas, garçons, garçonetes, barqueiros... todos disseram que a ilha estava lotada por conta do feriado. Eu, inexperiente, eu, sem qualquer jogo de cintura, eu, acostumado com planejamentos sendo cumpridos à risca, mesmo nesse país excessivamente tropical, voltei derrotado para a pousada. Encontrei João nervoso, tentando resolver o problema, que se apresentava insolúvel. Pensei em voltar para casa. Pensei em abandonar tudo. Pensei em xingar todas as pessoas que eu encontrasse pelos próximos dois dias. Mas engoli em seco. Sem falar uma palavra, peguei minha mochila, catei a chave, e fui para o quarto, deixando o João para trás.

João é um cara simpático, aberto, engraçado, mas desde que chegou à agência tentava forçar uma amizade que não nasce voluntariamente. As ligações mais fortes precisam, necessariamente, de história, de histórias. Algumas relações podem se romper indefinidamente porque foram estendidas além do seu ponto ótimo, antes do tempo. Prometi para mim, tal qual uma Scarlett O’Hara dizendo que nunca mais iria passar fome, só um pouco menos melodramática, que eu não ficaria os quatro dias – e as três noites – com ele, naquele quarto. Não sobreviveria.

Trocamos de roupa e decidimos ir para a praia – não era para isso que estávamos ali? Só que a praia balneável mais próxima ficava a uma hora de caminhada. Numa trilha. Que subia e descia um morro. Dentro de uma floresta úmida. Tudo é experiência, tudo é experiência. Levei água e fiz um sanduíche. Passei protetor solar. E repelente. Calcei um tênis velho, confortável. Fiz uma mochila com toalha, óculos escuros, chinelos e demais badulaques. Queria diminuir a possibilidade de me irritar – mais. Planejamento também é importante. Não seria inteligente de minha parte ignorar um dos meus principais ativos. Partimos numa marcha silenciosa.

O dia correu tranquilo, com água calma e morna e sol envergonhado – o que minha alva e desacostumada pele agradeceu – e até consegui me esquecer da situação do quarto. Almoçamos tarde, num restaurante de beira-mar, peixe fresco frito, com acompanhamentos frugais, salada, pirão leve, arroz branco genérico. Voltamos sem muita dificuldade. Estava tudo bem. Mesmo. Parecia algo como felicidade, se é que podemos de alguma maneira capturá-la com as palavras. Era isso, então?

Decidimos, de noite, buscar alguma birosca que servisse qualquer cerveja digna do título. Não foi tarefa fácil, mas após uma peregrinação encontramos uma minúscula vendinha que ficava colada ao principal camping da ilha. Meu humor parecia leve. A atmosfera insular deveria estar me contagiando. O mundo me soava mais fácil. Não estava me reconhecendo. Qual seria o próximo passo, escutar reggae?

Com uma autoconfiança que me era totalmente incomum, decidi puxar papo com a mesa ao lado – duas meninas queimadas de sol, com roupas hippies, fumavam, bebiam e conversavam animadamente. Não particularmente bonitas, tinham corpos apetitosos, se podia reparar à distância, com peitos que quase explodiam nas camisas – ou batas, ou como se chamava aquilo que elas vestiam. Eram, isso sim, bem diferentes do estilo de mulher com quem eu me relacionava comumente, mesmo as one-night-only, mas resolvi aceitar a maré de primeiras vezes sem relutância.

O nome de uma era Estela, da outra, a que mais me interessou, Íris. Cabelos cacheados volumosos queimados pelo sol, pele salgada, dentes um pouco maiores que a boca comportava, e um esplendoroso par de olhos claros, que me pareceram azuis à primeira vista, mas que na verdade, descobri depois, eram verdes. Ela me pareceu corresponder. Em pouco tempo, confirmei que éramos de mundos bem diferentes, mesmo. Ela, bióloga, estudava tartarugas, uma especialista. E eu, por profissão e escolha, um generalista. Sei um pouco de quase tudo, e tudo, certamente, de nada. Talvez seja resultado de uma falta de interesse no atacado. Não tenho uma paixão, suspeito – o que me deixa na dúvida sobre mim mesmo. Um pouco desconcertado. Era isso?

Ela me parecia um pouco limitada para qualquer assunto que fugisse da sua expertise. Ela se dizia feminista e liberal, mas só repetia clichês internéticos. O papo não fluía naturalmente. Tinha que a toda hora fazer uma nota de rodapé em assuntos que são, para mim, banais. Pensei: e daí, é só por essa noite. E não vou precisar dividir a cama com João – que se engraçava com Estela. Combinei de ele dormir na barraca com sua pretendente, e Íris ir para o nosso quarto. Talvez culpado (injustamente) pelo quiproquó do quarto, ele aceitou. Não iria discutir paridade nem tentar ser magnânimo naquele momento. Antes que eu percebesse, impulsionado por essa exótica sensação de potência – ou pelas cervejas que estavam fazendo efeito – eu e Íris já nos beijávamos.

Assim que entramos no quarto, já sacando as roupas, ela me pediu para falar um assunto. Paramos. Admito que fiquei surpreso. Era muito fora do clima daquela ilha. Eu a olhei arregaladamente e todas as dúvidas possíveis e algumas impossíveis me sucederam tão rapidamente que parece que elas apareceram ao mesmo tempo. Ela não era mulher. Ela não havia sido mulher a vida inteira. Mas ela se sentia mulher. Ou, ao contrário, sempre se sentiu mulher, a vida inteira, mas não era mulher, assim, biologicamente falando. Não, não. Deve ser algo mais prosaico. Ela não se depilava. Ela estava menstruada. Ela tinha namorado. Ela tinha namorada. Estela era a sua namorada. Ela era virgem. Não, impossível. Ela não transava há muito tempo. Não acredito. Mas provável ela ser ninfomaníaca. Desisto. Não sabia. Não sabia o que era. Demorou apenas um segundo, demorou toda uma eternidade. Ela, em silêncio, esperou que eu aterrissasse – não com calma, mas nervosa, com medo de ser criticada, abandonada. Podia ver o profundo receio que recheava seu rosto. Ela baixou a cabeça, junto à voz, e disse: acontece uma coisa comigo quando eu transo. Antes de eu poder exprimir qualquer reação, ela emendou, à guisa de justificativa, um tom acima, com velocidade: Algumas vezes, não sempre. Como se ela quisesse ser vista como “normal”, com apenas alguns comportamentos esporádicos “anormais”. As interrogações pululavam em mim, agora sem nem mesmo frases para acompanhá-las. Depois, ela deu uma nova pausa e balbuciou: eu, eu... incorporo quando transo. Incorporar?, pensei, como assim incorporar? Era alguma metáfora, era algum tipo de código secreto? Como assim?, me arrisquei, num misto entre o curioso e a tentativa de não invadir demais o espaço dela. Sou da umbanda, ela começou, e às vezes, algumas vezes, raramente, quase nunca incorporo uma das entidades enquanto transo. A cigana da praia, ela exemplificou. Eu, o maior cético da história – provavelmente –, não pude segurar um sorriso condescendente, como se tivesse escutado uma história de abdução alienígena, que ela entendeu como um sorriso de simpatia, e se sentiu acolhida. Me beijou com volúpia, e, logo, eu, apesar de ter ficado intrigado com a declaração, tinha me desconectado da informação para me dedicar ao corpo dela.

Explorei cada pedaço da sua pele e pude confirmar a promessa que se anunciava quando a avistei. Ela parecia se divertir também. Olhava para mim com vontade, sorrindo, gemendo, fechando os olhos. Ela sentou no meu colo, com as pernas em volta de mim, subindo e descendo, ritmadamente. Aos poucos, ela foi derretendo, se desconectando, os olhos fechados, a respiração profunda em um compasso repetitivo, hipnótico, o cabelo jogado, um lado depois o outro, em seguida voltava, ia se entregando, aos poucos, inclinou o corpo para trás, a cabeça pendurada, um feixe de luz que passava numa brecha pela janela mal ajambrada iluminou seu corpo, dividindo-o em duas metades, como se ela tivesse um meridiano que a cortasse ao meio, em laterais, eu comecei a ouvir uma ligeira risada, leve, que foi crescendo, crescendo até que explodiu numa gargalhada completamente diferente da voz que ela tinha quando nos encontramos, uma gargalhada em altos soluços. Eu estava assustado. Ela parou. Ela me encarava agora com um olhar de uma segurança incomum. Não, não era segurança. Ou não era apenas segurança. Tinha lascívia, um enorme desejo de possuir o outro, de adentrar, de submeter o outro. Era como se eu me tornasse apenas um objeto para ela, para ela resolver as suas vontades, era como se ela tivesse tomado completamente as rédeas da situação e me fizesse mero componente. Era como se ela tivesse se tornado uma predadora, e eu, a presa.

Aconteceu, assim, rapidamente. Acho que o fato de ela ter bebido, somado ao incomum – eu, essa noite, esse quarto, essa ilha –, e ela ter se sentido segura comigo a fez relaxar. Talvez, sei lá, abrir as portas. Olha o que eu estou dizendo! Eu, que não acredito em nada. Eu sou ateu! Ateu! Não acredito nem em energia, signo, tarô, nada disso. Tenho dificuldade com qualquer movimento além da realidade mais material. Isso – essa incorporação –, isso não pode ser explicado racionalmente. Como posso estar me deixando levar assim?

Talvez, talvez, porque essa posição me deixou com um tesão que eu nunca tinha experimentado antes. Ela, ela, a outra mandava em mim. A cigana. Ela. Exigia de mim, sem pronunciar uma única palavra reconhecível, fazer o que ela quisesse. Ria, ria, gargalhava, de engasgar. Eu virei um boneco. Queria apenas agradá-la. Obedecê-la. Seguir suas ordens. Queria, mas não só. Queria também conquistar essa, essa... mulher. Esse espírito, essa fantasma. Sei lá. Queria no fundo, fazer o seu jogo para que ela me desejasse. Queria mostrar para mim mesmo que eu podia. Que eu podia seduzir até mesmo o que não existia. Queria agarrar esse espectro que escapava por entre os dedos como se fosse fumaça – e nem fumaça era. Estava, pela primeira vez na minha vida, apaixonado, instantaneamente apaixonado. Uma paixão doentia, obsessiva, uma paixão platônica, à primeiríssima vista – sendo que eu não vi nada, nem ninguém.

Quando acabamos, ela, digo, Íris estava ainda com ligeiros espasmos, olhos fechados, como se retornasse de um lugar muito longínquo para si, falando coisas ininteligíveis, num português quebrado, recheado de chiados, de palavras entrecortadas e recriadas com uma cadência musical, estalando os dedos, respirando fundo, tentando se controlar, enquanto eu estava ofegante, olhos arregalados, assustado, não sabendo o que dizer, o que comentar, impressionado com o que aconteceu. Depois, descansados, deitados, um do lado do outro, barriga para cima, olhando o teto encardido da simplória pousada, sol nascendo lá fora, corpos suados, sentindo dores de tanto esforço, a musculatura esgarçada, eu tinha certeza de que havia sido uma experiência fora do ordinário. Alguma coisa havia passado por ali, alguma coisa tinha mexido comigo profundamente. Eu tinha certeza de que queria repetir.

Quase não saímos do quarto nos dias seguintes – João, coitado, ficou direto na barraca com Estela. Íamos a um restaurante e voltávamos, e era só. Cochilávamos levemente e eu acordava já nervoso. Tomávamos banho juntos, encaixados. Ela saía pelada do quarto, no meio da madrugada, às gargalhadas, só para sentir a brisa da noite, e eu corria atrás dela, irreconhecivelmente. Eu queria mais e mais. Eu estava viciado nela. Nela, na cigana. Só nela. Estava encantado. É difícil admitir isso. Estava enfeitiçado. Não quero jogar com as palavras, mas não sei se é possível. Estava hipnotizado, completamente entregue. Queria mais uma dose, a toda hora. Todas as vezes que Íris voltava a si, eu não queria conversar com ela. Tentava, mas eu desconversava. Queria manter Íris longe, fora. Queria apenas a cigana. A cigana, que não falava nada com nexo, mas que se comunicava com risos, com gargalhadas, com gritos de prazer, com orgasmos estrondosos. Parecia que ela se alimentava de mim, da minha energia, dos meus gozos, do meu suor, de todos os meus fluidos. Ela mantinha um olhar que me atravessava. Eu era tão menor que ela, tão insignificante, mas me sentia o maior dos homens quando a fazia explodir. Ela resmungava nesse seu dialeto o qual eu nunca conseguia captar mais que uma ou outra frase, que não fazia qualquer sentido. Eu tentava conversar com ela. Durante o ato, eu dentro de Íris, eu falava: você está gostando? Você gosta assim? Você quer mais? Ela só ria, ria, como se dissesse: coitado, como ele pensa que pode ter a petulância de falar comigo? Quem ele acha que é? Ria como se me olhasse de cima para baixo, de cima abaixo. O que tinha Íris de insegura tinha a cigana de prepotente. Quase como uma segunda personalidade que compensava a primeira. Eu, contrariado, querendo controlar o inefável, comandar o indomável, entrava ainda mais forte, mais fundo, mais duro, mais violento, até que ela parava de rir para começar a gemer novamente, no meu ritmo, saía de um registro e entrava em outro, até que eu, de algum jeito, conseguia me fazer entender, até que ela respondesse às minhas ações, até que eu novamente dominasse o ambiente, domasse esse cavalo desembestado, me transformasse no esteio, no maestro, no coreógrafo desse pas de deux exótico, ou, melhor dizendo, desse pas de trois, em que um dos elementos sempre sumia, desaparecia, e os outros dois lutavam, ou um deles escalava essa alta montanha para chegar no topo e encontrar uma cigana rindo de mim, me caçoando, uma cigana que já sabia o futuro e o passado, já sabia o que iria acontecer e o que havia acontecido, uma cigana que faria qualquer coisa para se alimentar da minha energia, para drenar toda a minha força, para sugar minha seiva até o fim, para retirar completamente minha vontade de viver, como uma vampira, como uma parasita.

Me afastei repentinamente, assustado com a conclusão a que tinha chegado. Me levantei de supetão da cama e fui para perto da porta. Foi como se eu tivesse despertado de um sonho e caísse em outro sonho, automaticamente. Menos nebuloso, com alguma autonomia, mas ainda assim, com os meus braços ainda atados. Estava ali com ela há quantas horas? Que dia era hoje? Estava sol ou já era noite? Havia perdido a noção do tempo. Há quanto não via João, ou qualquer outra pessoa? Eu tentava raciocinar, mas não conseguia ter clareza de pensamento. Estava cansado, esgotado, drenado. Os olhos arranhados. Uma fome fenomenal. Uma estafa física. Eu iria apagar a qualquer momento e ficar desacordado por eternidades. Parecia que eu estava semanas, meses, anos ali. Parecia que estava em uma teia de aranha, com o meu sangue sendo sugado diretamente do meu antebraço, me tornando seco, sem vida. Mesmo quando eu achava que estava no controle, eu agia em função dela. Eu não conversava com Íris fazia dias – para onde ela tinha ido? Eu era o responsável por ela ter sumido? Era um embate, na verdade, estava num duelo entre mim e a cigana. Íris era apenas a hospedeira, apenas isso. E eu fornecia o alimento para ela, a cigana. Eu não queria mais continuar. Queria me libertar, queria ir embora. Seria possível? Como fazer isso? Parecia sem forças. Olhava para o lado e Íris, ou a cigana, sei lá, ela dormia ali. Quem era ela? Será que ela tinha feito algum feitiço, algum trabalho? É assim que se diz? Eu não estava acreditando no que eu dizia. Mas eu tinha medo, um medo anterior, inicial, seminal. Parecia que um edifício que se mostrava como sólido despencava por inteiro, como se fosse de areia de praia. Nessa hora alguma coisa fez sentido em mim, duas pontas que estavam separadas se juntaram e estalou, deu choque, despertei deste sonho para cair novamente em outro sonho, numa queda em abismo em sequência. Ficou em mim somente o vazio – a falta desse algo que eu não sabia bem o que era. A minha vida era, havia sido até então, uma série de caixas quadradinhas colocadas uma sobre a outra, com cuidado metódico. A cigana era um espelho colocado à minha frente, um espelho que me refletia pelo avesso, ao contrário, com o meu negativo, que era ainda assim eu, um “eu”. Com o meu outro, com a minha outra. Com alguém tão diferente de mim, que, de alguma forma, me instigava a caminhar na sua direção, e me perder, e entrar em um lugar inseguro. Com minha antípoda, com o outro lado da gangorra. Assustado com o que eu via, com me reconhecer pelo inverso, depois de tanto tempo me escondendo de mim mesmo porque só enxergava um “eu” que eu tinha estabelecido, um “eu” fixo, que não dava mais conta de mim mesmo, porque eu já tinha mudado, porque mudamos sempre, porque é impossível fixar os limites por muito tempo, porque não há estabilidade eterna, porque só podemos escolher, no máximo, se temos sorte, o medo que vamos enfrentar, assim, nesse estado de espírito sobressaltado, eu acordei, mais uma vez.

Do meu lado, Íris dormia profundamente. Levantei cuidadosamente, sem fazer barulho algum. Fui à janela porque queria ver o céu, queria ver um horizonte. Era noite da mais escura, com a lua envergonhada e nuvens escondendo as estrelas. Nada podia ser mais banal, com bichos fazendo barulho, as pessoas dormindo, o negror pegajoso. Mas era uma outra forma de banalidade.

quinta-feira, 1 de março de 2018

DIETA (ficção)

Se não há necessariamente uma hierarquia ontológica entre os diferentes entes, se basta que um ser se denomine ou seja denominado “humano” para que ele assim seja entendido, por que há, então, uma diferença entre o tratamento que damos para cada um dos seres? Para usar um exemplo fácil: por que comemos alguns bichos e outros não? Sendo radical dá para perguntar: por que o canibalismo é um tabu para a sociedade ocidental moderna? Por que somos condicionados a ter pena de determinados animais e encaramos outros apenas como combustível matável? (Para ficarmos apenas no eixo especista.) 

Tenho para mim que há uma ligação direta entre essa fixação pela carne como o principal alimento possível, uma espécie de santo graal em forma de comida, em que na ausência o almoço não estaria completo, e um modo de vida que não abre mão de nenhum conforto, que não se coloca em questão aguda sobre qualquer situação já assentada, ou tem respostas prontas e rápidas para as dolorosas dúvidas, que podem aparecer sem serem convidadas, um modo de ser que acredita que não se precisa mudar nada. Gente que pratica o que eu costumo chamar de um comportamento alfa-elitista.

Não me esqueço que durante séculos o consumo de carne era reservado apenas para a aristocracia, e todo o restante da plebe deveria se contentar com nacos – quando muito – de animais. Apenas no século XX, e ainda assim, apenas para os países que conseguiram ultrapassar a barreira da miséria generalizada e formar um contingente razoável de uma classe-média que poderia ser universal (mesmo que esses mesmos países mantenham bolsões de pobreza, que parecem mais a regra que a exceção em sua organização social) apenas nesses países houve uma, hum, democratização do consumo de proteína animal. A carne, portanto, ainda carrega os traços de um passado que era vista como a exceção, o mais caro, uma iguaria. Mas qual foi o custo dessa popularização da carne?

Sejamos sinceros conosco mesmos: podemos comer carne todos os dias, e na quantidade que comemos? Pensemos na parte prática, que é tão valorizada hoje em dia. Para ter tanta carne, na pecuária extensiva, uma quantidade enorme de terra foi desmatada, para se transformar em pasto. Um universo de diversidade foi destruído para que tivéssemos apenas gramíneas com o único intuito de alimentar bovinos, caprinos, suínos. Ninguém se importa com planta, árvore, essas coisas, eu sei. É coisa de hippie. Mas pense em você, se você não se importa com nada mais além de si. Esse processo tem um impacto imenso no ciclo da água, acabando com as nascentes dos rios do mundo, mudando a quantidade e a frequência das chuvas, atingindo abastecimento de cidades, cada vez mais gigantescas. Quem paga a conta em primeiro lugar é a população mais pobre, como sempre. Mas quem se importa com os pobres, não é mesmo? O que as pessoas se esquecem é que, para aqueles que estão no topo do mundo – cada vez mais menos gente – quem não participa desse exclusivo clube é igual: pobre.

Isso sem mencionar os imensos desertos que se escondem atrás de monoculturas como milho ou, a pior, soja, para uso exclusivo de alimentação desses mesmos rebanhos, quando em criação intensiva – que mais se parece com campos de concentração. Geralmente usando matrizes transgênicas, pouco ou nada pesquisadas para saber o impacto que tem sobre a saúde. A desculpa é a necessidade de combater a fome. Mentira. O efeito desse processo só descobriremos no futuro, na prática, quando for tarde. Enquanto isso, agricultores familiares são apagados do mapa por não conseguirem competir com macroindústrias e seus fertilizantes geneticamente modificados e agrotóxicos, cada vez mais venenosos.

Mas o pior, para mim, nem é isso. Ou só isso. O que essa pessoa que participa do pensamento da elite-alfa nunca leva em consideração é o que eu chamo de metafísica da matança. Quando adotou uma dieta carnívora, o antepassado do ser humano conseguiu ganhos energéticos substanciais para modificar seu modo de ser. Agora ele tinha tempo para desenvolver outras ferramentas para dominar o próximo.

Não defendo voltarmos a viver nas cavernas, nos defendendo dos animais maiores com lanças, muito menos viver num mundo em que o dentista não tem anestesia. A atual desproporção de forças, porém, é assustadora. Causa um desequilíbrio que se reflete em todas as esferas. Veja o esgotamento completo da terra, e da Terra.

Isso tudo para dizer: quando foi que os animais se transformaram em seres matáveis? Em seres cuja única função do mundo é morrer para alimentar um bando de gente obesa que pensa no hambúrguer com uma volúpia pornográfica? Por pessoas cujo único prazer na vida é se empanturrar com qualquer moda gastronômica que se anunciar, para depois ter culpa, e vomitar tudo nas privadas, e pagar por tranquilidades em comprimidos, ou comprar novos corpos com cirurgias plásticas?

Outra vez podemos voltar para o tempo da invenção da agricultura, da domesticação de plantas selvagens para que se produzisse o que, onde e quando se quisesse. Claro que a semente da questão atual já estava plantada lá no primeiro agricultor, mas o que devemos prestar a atenção, me parece, é a diferença de intensidade. Se antes da modernidade, ou mesmo em sociedades não-ocidentalizadas, há um embate mais justo entre os diferentes atores, em que ao menos se olha no olho de quem vai morrer, agora, o homem dominou de tão maneira o outro, o distanciou, o sanitizou, o desmembrou, o transformou em apenas um produto entre outros nas prateleiras de supermercados. O grau de controle, hoje em dia, do mundo nos fez tornar o outro um mero acessório para as nossas intenções, desconsiderando completamente suas muitas possibilidades de ser. Ou se encaixa no nosso jeito, ou está fora. Há uma normalização da morte. Se chamarmos o que acontece nessas fábricas de proteína animal (o eufemismo é uma das faces desse covarde distanciamento) de genocídio, sempre haverá alguém para nos acusar de fazer comparações estapafúrdias. Quando é exatamente o que acontece ali. A morte industrial de populações inteiras, diariamente.

O mesmo processo que o rico homem branco, cis, heterossexual pratica com os demais humanos da escala social, retirando completamente suas possibilidades de ser, além daquelas pré-determinadas por eles próprios, que são os únicos que se consideram sujeitos da História, e que são os únicos que se autorizam a sujeitar os demais, sem reconhecer nos demais qualquer tipo de protagonismo, os humanos em geral praticam com os demais seres. Utilizam argumentos legítimos, mas de maneira torta, para se colocar numa posição de superioridade, olhando de cima para baixo, sem se perguntar quem lhe deu a autoridade para dizer que razão ou ciência são critérios válidos, e confirmar uma prática que corta qualquer possibilidade de existir além daquela a que ele está acostumado. Não pode se colocar em dúvida, a morte do outro é o certo, o correto. A minha gula, travestida de apetite, deve ser saciada, independentemente do custo disso. Todo um esquema, um formato de pensamento se concretiza ao redor dessas verdades, que não podem ser jamais colocadas em questão. É contra isso que eu me revolto.