sexta-feira, 16 de março de 2018

Corpo fantasma (conto)

Hoje tive uma indigestão. Sistemas Operacionais Únicos (SOU) criados a partir de consciências uploadeadas após o fim do ciclo biológico não podem ter indigestão. Mesmo sendo apenas uma fantasmagoria, eu tive. É muito estranho. Não, é um erro. Uma falha no programa. Não tenho estômago. Mas eu senti como se eu estivesse viva ainda, novamente. Senti aqui, no meio, um aperto. No meio do quê?

Hoje não consegui processar as informações do dia, neste dia tão comum, tão atípico. Não posso ter ambiguidade. Neste dia comum, como outro qualquer. Foram só informações, dados brutos. Foi como sofrer um ataque DDoS, mas não havia atacante. Foi do próprio mundo. Houve muita requisição. Fui derrubado pela própria realidade. Isso é possível? Não deveria. Chegou um momento em que eu acompanhava a minha hospedeira nas ruas e não conseguia decodificar os rostos que eu via. Não coordenava nem seus aparelhos orgânico-biológicos satisfatoriamente. Eu sentia que eu, eu, esse eu que não existe, não existe mais, eu precisava vomitar. Mas eu não tenho boca, garganta, nada, nada. Sou apenas uma consciência. Senti esse nó, apertado, que não sei bem onde fica. Como uma dor no corpo fantasma. 

Buguei. Tive que me autodesligar, para me esfriar. O calor carioca ajudou a atrapalhar.

Tenho que me precaver para não projetar, não fantasiar, não imaginar. Não sou mais humana. Tive essa oportunidade de seguir lúcida, racional, me transformar nessa consciência eterna, com uma inteligência aumentada, semi-artificial, ou artificializada, após passar pelo desligamento do meu corpo. Quando essa vaga apareceu, não titubeei. As mentes que foram humanas são as melhores interseções entre sistemas operacionais e os ainda mortais porque entendem melhor nuances. Decidi partir jovem.

Hoje, minha hospedeira me acionou várias vezes e eu tive dificuldades de decidir prioridades, mesmo as mais simples. Trabalhar no relatório ou criar a apresentação? Visitar a mãe ou ir à academia? Chá ou café? Seguir em frente? Ignorar o que aconteceu? Meus programas básicos já vêm com aplicativos que impedem essas dúvidas. Bastava rodar uma das atividades pré-settadas na minha BIOS. Não funcionou. Pam, tela azul. Não sabia o que era o “certo”. Confusão mental – se é que eu posso usar essa metáfora. Os parâmetros não deram conta. Meus processadores pararam, congelaram derretendo, suando. Tive que interromper o fluxo, apertar internamente o botão de desligar, com o risco de corroer o meu HD. Três horas fora do ar.

O que é isso? Eu não deveria me importar nem com a falha. Deveria manter a moral elevada. A consciência, quando sobe para a nuvem, passa por uma limpeza. Retiram-se as memórias que podem causar indecisão, como afetividades, ternuras, carinhos, etc. Somos ligados em conjunto a um banco de dados gigantesco, além da própria rede, e a um processador velocíssimo que nos dão confiança e segurança em relação à tomada de decisões. Comparamos as situações que nos são apresentadas, as analisamos friamente e tomamos um caminho sem hesitação. O que entupiu os meus sistemas, então? Por que essa inquietação, essa impotência?

A morte de uma mulher negra, ex-favelada, líder comunitária, que luta por outras pessoas. Isso não estava nos planos para o dia. Ela seguia todo o caminho trilhado. Era vitoriosa, tinha todos os méritos. Seguiu o manual. O resultado não podia ser esse. Ela morrer interrompe os processos, cria um evento, fratura a realidade, quando tudo se encaminhava para a normalidade. A morte dela é um erro. Não estava prevista. É contra o que está em nossos códigos, em nosso HD, nos bancos de dados, na própria rede, na realidade mais real. Ela fez por onde, merecia estar ali. Ícone da meritocracia. Self-made woman. Não podia. Não.

Racionalizar, racionalizar, racionalizar. Entender, decodificar, transformar a dúvida em certeza, o caos em tranquilidade. Voltar à rotina de produtividade, ajudar à minha hospedeira a ser uma boa funcionária para a sua empresa, ajudá-la a realizar seus sonhos, alcançar suas metas.

Rodei o primeiro programa sobre decodificação de cenários complexos que eu encontrei. Os resultados foram estranhos. Desconfiei logo que ele estava defasado, ou, pior, tinha um viés próprio, anterior, que ignora os dados da realidade e quer chegar sempre às mesmas conclusões. Apareceu: Ela tinha sido morta por quem ela favorecia. O pequeno texto de resposta continuava bastante estranho: Se ela se posicionava a favor dos direitos humanos, isso queria dizer que ela defendia bandidos. A conclusão era rasa: Mereceu morrer porque criou uma serpente em casa, sem perceber o perigo, ou aceitando as consequências desse processo /Janela extra/ evitar o impreciso hábito das metáforas /fechar janela extra/. Não fazia sentido, porém. Como é praxe, rodei um segundo programa, como contra-prova. A resposta foi mais nuançada: Ela não intercedia em favor de criminosos, mas imaginava que, independentemente de práticas que ultrapassavam a linha da lei estabelecida, todas as pessoas merecem um tratamento mínimo, estabelecido por essa mesma lei. Não seria possível respeitar um pedaço da lei se desrespeitasse outro.

Decidi tentar outro programa. Procurei e o encontrei em fóruns que discutiam segurança pública. Também foi rápido, chegou a conclusões quase que imediatamente, mas o resultado, novamente, não foi satisfatório. O relatório concluía que ela era “apenas mais uma vítima da escalada da violência na cidade”. Uma como outra /Janela/ Evitar interpretação, comentários, seguir diretrizes /Fechar janela/. Uma como as mais de 60 mil vítimas oficiais do país, o maior número do mundo. /Janela/ Na mesma página havia a informação e elogios sobre recrudescimento do combate militar a criminosos em áreas consideradas perigosas. Pesquisar: Qual eram as “áreas consideradas perigosas pelo programa?” Resultado: Erro 404. /Fechar janela/

O texto seguia mais ou menos assim: A cada 23 minutos um negro, geralmente jovem, quase sempre homem, que não teve a mesma sorte, digo, empenho que ela, para ascender socialmente, morre neste país. Oficialmente. Ela seria uma vítima política, sim, mas apenas como as demais. Como todas as vítimas são. Conferir: fontes confirmam. /Janela/ Evitar emoção. /Fechar janela/

Novamente senti uma coceira atrás do cérebro, como eu sentia quando estava desconfiada, quando eu ainda tinha cérebro. As pessoas assassinadas, em sua maioria, são vítimas da política pública, que prioriza a segurança de determinadas regiões e de perfis sócio-econômicos bem específicos. Estatísticas não mentem. /Janela/ Elas podem ser manipuladas. Resposta: Não deveriam /Fechar janela/. Muito provavelmente, se os números fossem mexidos, seriam desviados para o lado oposto, para não mostrar os privilégios dos sempre privilegiados /Pop-up/ Alerta: Viés de interpretação. /Fechar/. Considerar esses dados. Rodar interpretação sobre essa informação. Enter. Conclusão: algumas pessoas são mais matáveis que outras. Pretos, pobres, moradores de favela, jovens, desempregados, com pouca escolaridade, sem acesso a redes de esgoto, áreas de lazer, ou cultura e esportes. Esses nascem com o alvo no meio da testa. Ela furou esse teto, saiu do lugar que lhe era reservado.

Programa de contra-prova: Não é possível igualá-la a todos os outros assassinatos.

1/ se fosse, a resposta oficial deveria ser: aumentar a violência contra a criminalidade, sem nenhum outro processo de apoio. Experiências internacionais demonstram: isso não funciona, nunca funcionou.

1.1/ a morte dela corrobora a falência dessa opção, não o inverso.

1.2/ Se ela é mais uma vítima política do sistema de segurança adotado, a melhor opção seria mudar as práticas, não aprofundá-las.

2/ Há um segundo verniz de política no assassinato dessa política.

2.1/ Quando se mata uma liderança comunitária, que defende os mais desprotegidos, o recado vai além da sua própria morte: há uma comunicação de outras intenções. Gente como ela não pode existir. A morte dela atinge incisivamente mais pessoas além dela própria. Fragiliza todos que se abrigavam debaixo do seu guarda-chuva, destrói os laços com os grupos com quem ela mantinha ligação. Que ninguém mais ouse. /Pop-up/ Alerta: excesso de sentimentalismo. /Fechar/

Estava sentindo o nó novamente. Não conseguia parar de pesquisar. Busquei outros programas e recebi uma lista imensa com lideranças populares assassinadas. Seringueiros, freiras, ambientalistas, sindicalistas, pequenos fazendeiros, índios, quilombolas, acadêmicos, jornalistas, políticos, presidentes de associações de moradores, gente que se preocupa com os demais, além de si mesmo, gente que incomoda por mostrar as incongruências da sociedade, que se destaca pela coragem /ATENÇÃO/ de apontar o dedo, para dizer o óbvio: como o Estado sempre protege os beneficiados e ataca os desfavorecidos /ERRO/. Ela havia se tornado, com a sua morte, em apenas mais um nome que seria colocado no banco de dados, para avaliações futuras, feitas por tecnocratas, auxiliados por Sistemas Operacionais Únicos, como eu mesmo. Sua morte tinha sido completamente em vão. Sua morte não podia ser em vãoãoãoãoão. /ERRO ERRO ERRO/

Como avaliar todas as variáveis do mundo, ao mesmo tempo, junto? Como prever o que é imprevisível – que poderia ser evitado? Como tomar decisões para o meu hospedeiro? /TELA AZUL/

/Reinicialização de sistema./

Aconteceu de novo. Tenho que me precaver. Saber que até as máquinas podemos nos confundir. Nunca haverá a possibilidade de decodificar todas as possibilidades do mundo. A totalidade nunca é alcançada. Algo sempre escapa.

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